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Sergio Augusto de Moraes: SAPIENS - Harari, Marx e Engels

Mesmo se dizendo breve não é fácil escrever a história da humanidade em 400 pgs, como tenta fazer Yuval N. Harari em seu livro “SAPIENS - Uma breve história da humanidade” (LP&M Editores, 1917). Talvez por isto, entre outras coisas, o livro deixa lacunas imperdoáveis. Mas mesmo assim, ao abordar esta história, o autor transmite informações importantes.

Para atrair o grande público ele usa fórmulas singelas para explicar fenômenos complexos e os fatos sociais surgem naturalmente, como lebre da cartola de um mágico. Se é assim tudo indica que o autor conseguiu seu objetivo, o livro transformou-se num “bestseller” internacional.
Mas se observarmos com mais rigor vemos que Harari cai no ecletismo, no subjetivismo e em omissões inaceitáveis.

Uma das falhas mais notáveis é sua análise do surgimento do homo sapiens. Ele constata que “os primeiros homens e mulheres, há 2,5 milhões de anos , tinham cérebros de cerca de 600 centímetros cúbicos. Sapiens modernos apresentam um cérebro de 1200 a 1400 centímetros cúbicos”. Até aqui tudo bem, boa informação. Estamos falando do homo-erectus.

Todavia mais adiante afirma que “Por mais de 2 milhões de anos as redes neurais dos humanos continuaram se expandindo, mas, com exceção de algumas facas de sílex e varetas pontiagudas, os humanos tiraram muito pouco proveito disso. Então o que impulsionou a evolução do enorme cérebro humano durante esses 2 milhões de anos? Francamente, não sabemos”(pgs 16 e 17).

Singularmente ele assinala pouco depois que “o caminhar ereto sobre duas pernas, a produção de ferramentas sofisticadas, a domesticação do fogo, a vida em sociedade e um cérebro grande deram vantagens enormes a humanidade”. Então como não sabemos?

Se não nos limitarmos aos quatro fatores acima mencionados e levarmos em consideração as mudanças climáticas, o uso contínuo da alimentação carnívora e particularmente o trabalho com as ferramentas, associados às mutações genéticas, identificaremos os principais impulsionadores desta evolução.

Quando a mutação favorecia a sobrevivência e a reprodução, ela permanecia. Quando não, a descendência era descartada pela seleção natural. Em cada ramo da árvore filogenética os fatores acima mencionados atuaram a curto, médio e a longo prazo. O que ainda não sabemos é como todos eles atuaram. Mas já sabemos da ação de alguns.

Por exemplo, sabemos que as fases de aceleração evolutiva se produziram sob o efeito de eventos climáticos; que o cozimento de alimentos, ao reduzir a demanda de energia e o tempo para a digestão, deixou mais tempo para a caça e favoreceu o crescimento do cérebro, um órgão que exige muita energia. Pelo que vem acontecendo na história, a aceleração das descobertas científicas vai permitir outros avanços na identificação do peso de cada um dos fatores apontados na evolução até o homo sapiens.

Em sua análise Harari não leva em conta a unidade dialética entre quantidade e qualidade, especialmente relevante para compreensão de fenômenos de longo prazo, como é o caso do tempo decorrido entre as mutações genéticas que atuaram neste período de aproximadamente 2 milhões de anos.

Harari continua “... mas mesmo com tais atributos, desenvolvidos durante 2 milhões de anos, os homens ...continuaram sendo criaturas fracas e marginais”. Até que há cerca de 150 mil anos surge o homo sapiens.Algumas páginas depois ele atribui o salto do homo sapiens ao topo da cadeia alimentar “...à sua linguagem única”(pg 27). A linguagem foi um fator da maior importância mas há que correlacioná-la com os fatores que agiram durante 2 milhões de anos. Ela evoluiu com eles e é também consequência dos mesmos.

Mais adiante, depois da etapa do homem caçador-coletor, ao constatar que “não existe justiça na história” Harari diz:

“Entender a história humana nos milênios que sucederam a Revolução Agrícola (algo em torno de 12000 anos atrás) se resume a uma única questão: como os humanos se organizavam em redes de cooperação em massa, uma vez que careciam de instintos biológicos para sustentar tais redes? A resposta sucinta é que os humanos criaram ordens imaginadas e desenvolveram sistemas de escrita. Essas duas invenções preencheram as lacunas deixadas por nossa herança biológica”(pg 141).
Depois ele afirma que tais ordens imaginadas nunca foram neutras nem justas e que “todas as distinções mencionadas aqui - entre homens livres e escravos, brancos e negros, ricos e pobres - se baseiam em ficções.”

E continua:

“a Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer. Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais e elites favorecidas. Em média, um agricultor trabalhava mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior.

A Revolução Agrícola foi a maior fraude da história. Quem foi responsável? Nem reis, nem padres, nem mercadores. Os culpados foram um punhado de espécies vegetais, entre as quais o trigo, o arroz e a batata. As plantas domesticaram o homo sapiens, e não o contrário”(Pgs 89, 90).

Vejamos o que diz F. Engels a respeito desta Revolução:

“O desenvolvimento de todos os ramos da produção – criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos – tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra; os prisioneiros foram transformados em escravos (antes eles eram comidos ou eventualmente incorporados à tribo). Dadas as condições históricas gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho (entre tribos dedicadas ao pastoreio e as outras) ao aumentar a produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da atividade produtora, tinha que trazer consigo – necessariamente - a escravidão. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados.” (“A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Ed. Vitória, 1963, pg128).

Aqui Harari, talvez para soar como algo exótico, violenta a história da humanidade, ignora os fenômenos sociais ao atribuir tudo isto a algumas espécies vegetais, destacadamente ao trigo, ao arroz e à batata.

Mas afinal o que move a história da sociedade humana?

Segundo Harari

“Como você faz as pessoas acreditarem em uma ordem imaginada como o cristianismo, a democracia ou o capitalismo? Primeiro você nunca admite que a ordem é imaginada. Você sempre insiste que a ordem que sustenta a sociedade é uma realidade objetiva criada pelos grandes deuses ou pelas leis da natureza... a ordem imaginada está incrustada no mundo material...embora só exista em nossa mente ...e ela, a ordem imaginada é quem ...define nossos desejos”.(pgs 121, 123).

Ao invés da “ordem imaginada” adotada pelo autor, Engels diz que “...Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o fato tão simples, mas que até ele se mantinha oculto pelo cipoal ideológico, de que o homem precisa, em primeiro lugar comer, beber, ter um teto e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião, etc; que, portanto, a produção dos meios de subsistência imediatos, materiais, e por conseguinte a correspondente fase econômica de desenvolvimento de um povo ou de uma época é a base a partir da qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas e inclusive as ideias religiosas dos homens e de acordo com a qual devem, portanto, explicar-se; e não o contrário, como se vinha fazendo até então..."(“Discurso diante da sepultura de Marx” F. Engels).

Para Marx e Engels
“A história de todas as sociedades até agora tem sido a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito” (“ O Manifesto Comunista 150 anos depois”, ed. Contraponto, 1997, pg 8).

Por ter como guia a tal “ordem imaginada” e não os fenômenos sociais da história da humanidade é que Harari afirma “Mas é um fato comprovado que a maior parte dos ricos são ricos pelo simples motivo de terem nascido em uma família rica, enquanto a maior parte dos pobres continuarão pobres no decorrer da vida simplesmente por terem nascido em uma família pobre” (pg 143). Parece que ser ricos ou pobres é para Harari uma lei da natureza. Aliás o autor mistura as leis da natureza com as da sociedade sem muito critério.

Seria longo demais analisar as teses de Harari como, por exemplo, a das vantagens que os imperialismos, no decorrer dos tempos, trouxeram aos povos dominados. Seriam necessárias muitas páginas o que não cabe num texto como este.

Por fim dando um salto para o Epílogo do livro encontramos: “Avançamos de canoas e galés a navios a vapor e naves espaciais - mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder.” (pg 427).

Os opressores, os donos do grande capital, sabem bem o que fazer com “todo esse poder”: aumentar sua riqueza. Eles são poucos. Mas boa parte da humanidade pensa que “todo esse poder” poderia acabar com a fome, reduzir as doenças e as desigualdades entre pessoas, povos e classes sociais. É uma ideia há muito tempo acalentada, pelo menos desde a Grécia clássica.


Sergio Augusto de Moraes: Armênio Guedes - completaria 100 anos neste 30 de maio

Estávamos exilados no Chile. Corria o Governo de Salvador Allende, meses depois derrubado pelo golpe militar de 1973. Numa noite, tomando um bom vinho chileno Armênio me revelou, emocionado, que acabava de saber que seu irmão Célio Guedes, que trabalhava na seção de organização do Comitê Central do PCB, havia sido torturado e morto nos porões da ditadura brasileira.

A dor que aquela revelação causava em meu amigo era visível nos seus olhos e quase possível de se tocar com as mãos. Emocionei-me junto com ele e constatamos que a política da ditadura e de seus órgãos de repressão estava mudando para com o PCB: o assassinato se somava às mais bárbaras torturas.

Mesmo assim, naquele momento, Armênio fez questão de reafirmar que tal fato não mudava sua avaliação de que a política de amplas alianças, o aproveitamento de qualquer espaço legal para organizar o povo na luta pela democracia, adotada por nosso Partido, era a única que poderia derrotar a ditadura, sem permitir que a dor, a revolta e a indignação toldasse sua lucidez.


Sergio Augusto de Moraes: Carnaval e política

De alguns anos para cá o fenômeno já despontava: nos blocos de rua milhões de cariocas, paulistanos, soteropolitanos, recifenses e cidadãos de centenas de outras cidade brasileiras dançam e pulam durante três dias ( no mínimo) ao som das mais diversas músicas, do samba ao funk, em boa parte recheados de críticas às autoridades, aos políticos, às mazelas do Brasil . Mesmo no Rio, com a ameaça da violência e as ausências do Prefeito e do Governador, o povo caiu na folia criticando em particular o Prefeito que havia fugido para a Europa com despesas pagas com nosso dinheiro.

Se nos anos anteriores já despontava em muitos destes blocos alguma crítica política, em 2018 a coisa ganhou outra dimensão. Esta atitude foi generalizada. Algo novo no Brasil.

E não foi só nos blocos, algo mais natural tendo em vista sua independência das autoridades. As grandes escolas de samba também entraram nesta dança, a começar pela Beija-Flor de Nilópolis, campeã do Carnaval Carioca.

Em entrevista dada à revista online “Carnavalesco”, Jack Vasconcelos, responsável pelo bom desfile da Paraíso de Tuiuti, explicou por quê:

“Eu acho que é positivo a gente poder se posicionar. Muito disso tem relação com a troca de governo. Hoje somos oposição e antes éramos parceiros do poder e não podíamos arranhar a relação. Enredos mais críticos não eram incentivados. Agora com uma guerra declarada tem essa abertura maior. Os dirigentes nos deixam livres, e temos mais é que fazer”.

Mesmo com alguns fatos violentos, inaceitáveis, em geral puxados pelos vândalos de sempre, parece que o povo na rua estabeleceu uma outra ordem na cidade. Não a ordem das armas e do temor, a ordem da alegria coletiva. As pessoas caminhavam mais tranquilas, crianças participavam da festa, jovens varavam a noite sem medo dos bandidos. Para a dimensão do evento, com um policiamento pífio, quem estabeleceu a ordem foi a multidão. Uma contribuição à democracia.

Parece que foi um ensaio para outubro de 2018. Os candidatos que se preparem