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El País: Com laudos sob desconfiança, MP faz pente fino para checar risco real de barragens

Documento interno da Vale sobre risco de barragens de junho de 2018 coloca dez estruturas na "zona de atenção". Análise da empresa foi apreendida durante operação que deteve engenheiros de Brumadinho

O rompimento de barragens de mineração consideradas de baixo risco de acidente — como eram as de Brumadinho e de Mariana — tem colocado em xeque os laudos de estabilidade emitidos pelas auditorias contratadas pelas mineradoras. A quebra de confiança nas declarações de estabilidade apresentadas pelas empresas desde que a barragem I da Mina do Feijão ruiu e matou pelo menos 157 pessoas em Brumadinho tem levado procuradores de Minas Gerais a executarem uma operação pente fino para identificar o risco real das barragens à população, que segundo eles não estaria alinhado ao que atestam as mineradoras nos laudos que apresentam.

Em um documento interno apreendido durante a operação policial que prendeu engenheiros e executivos envolvidos na elaboração do laudo da barragem de Brumadinho, a Valejá colocava a estrutura que rompeu no que chama de "zona de atenção". O documento chamado Gestão de Riscos Geotécnicos foi elaborado em junho de 2018 e analisa o risco de 57 barragens da empresa. Além da Barragem I da Mina do Feijão, outras nove minas estão incluídas nesta "zona de atenção". Questionada pelo EL PAÍS, a mineradora não explicou exatamente quais os riscos que envolvem as estruturas assim catalogadas nem respondeu se elas estão em dia com a documentação de fiscalização e monitoramento que é obrigada por lei a enviar para a Agência Nacional de Mineração (ANM). Quase todas elas são consideradas como barragens de baixo risco de acidente, mas alto dano em caso de um eventual rompimento.

Oito destas barragens da "zona de atenção" tiveram suas atividades paralisadas na semana passada por uma decisão judicial. A 22ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte determinou que a Vale se abstenha de lançar rejeitos ou praticar qualquer atividade potencialmente capaz de aumentar os riscos das barragens Laranjeiras, Menezes II, Capitão do Mato, Dique B, Taquaras, Forquilha I, Forquilha II e Forquilha III. As três últimas foram inseridas no plano de descomissionamento da empresa, que desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, havia decidido desativar barragens similares, construídas sob o método de loteamento a montante, considerado mais econômico e menos seguro. Após a tragédia de Brumadinho, cuja barragem também foi construída com esse método, a mineradora anunciou que iria acelerar o descomissionamento dessas estruturas e desativá-las em até três anos.

A análise de risco nas barragens feita pela própria Vale causou preocupação no Ministério Público Federal, que abriu pelo menos quatro inquéritos civis para averiguar se essas barragens de rejeitos específicas, operadas pela mineradora, estão de fato estáveis. Ao órgão, já não é suficiente conseguir as declarações de estabilidade de barragem assinadas por engenheiros de auditorias terceirizadas contratadas pelas mineradoras, mas é preciso ter acesso a todos os documentos de fiscalização e monitoramento das barragens para tentar se aproximar dos riscos reais das barragens. "É uma situação muito preocupante. Brumadinho chamou a atenção das autoridades em relação a estes laudos de segurança. A barragem de fato já tinha alto risco", diz a procuradora Mirian Lima. "O Ministério Público está atuando em procedimentos de natureza preventiva para evitar que novos desastres ocorram por conta de laudos que na verdade não retratam a realidade", acrescenta.

A Barragem I, que rompeu, tinha todos os laudos de estabilidade e documentos de fiscalização reportados à ANM. As autoridades, porém, não sabiam que a estrutura estava destacada na análise de riscos interna da própria Vale. Executivos da mineradora e engenheiros da empresa de auditoria alemã que assinaram o laudo foram presos provisoriamente por uma semana e há suspeita de fraude nestes documentos. "As empresas [que avaliam a estabilidade das barragens] agora [depois das prisões] estão mais temerosas de fazer determinados laudos sem retratar a realidade. Muitas dessas barragens estão tendo seus laudos revistos. Até então, o que a gente observa é que havia uma certa comodidade [nos próprios órgãos de fiscalização] de finalizar procedimentos dessa natureza quando existisse laudo", afirma a procuradora.

Famílias são desalojadas por risco de rompimento

Nesta semana, a empresa contratada para auditar a barragem Sul Superior, no município mineiro de Barão de Cocais, não atestou a estabilidade da estrutura, também de propriedade da Vale. A mineradora então comunicou o fato à ANM, que vistoriou o local e determinou a retirada imediata de 239 pessoas das comunidades do entorno. Na madrugada da última sexta-feira, as sirenes chegaram a ser ativadas no município para alertar à população que ela deveria sair daquela zona pela possibilidade de rompimento. A 180 quilômetros de lá, outra mineradora, a ArcelorMittal, acionou o poder público para desalojar 65 famílias que vivem próximo à barragem de Serra Azul, em Itatiaiuçu, após detectar riscos de segurança em inspeções que já incluiriam dados e aprendizado decorrentes do rompimento de Brumadinho. Essas famílias estão alojadas em hotéis da região e só deverão retornar às suas casas quando as inspeções nas estruturas atestarem sua estabilidade.

"Hoje, não há como definir no Estado uma barragem que esteja com uma condição tranquila. Não é verdadeiro dizer que a barragem tal está em boas condições. O que temos é um retrato do momento em que o engenheiro esteve lá e, de boa fé ou não, atestou. Se acontece algo externo, [a situação] pode mudar", disse a procuradora Claudia Ignez, em entrevista na tarde desta sexta-feira na qual informava sobre as investigações que lidera para averiguar a estabilidade das 26 barragens de mineração sob sua jurisdição na comarca de Nova Lima. "Temos um conhecimento incipiente porque havia pouca informação histórica dessas barragens. Elas já podem até estar descomissionadas. O que estamos buscando é a identificação das barragens e a busca pela periculosidade que elas oferecem", afirma. A procuradora defende mais transparência com o envio da documentação de fiscalização para autoridades e não só para a ANM, que hoje concentra essa documentação. Também sugere a exigência pelo Estado de um monitoramento em tempo real das barragens. "É um sistema até bem barato pelo estrago que se faz [quando há um rompimento]", argumenta.

Está em curso no Ministério Público Federal e Estadual de Minas Gerais uma operação para passar o pente fino nas barragens de mineração. Os procuradores têm feito dezenas de pedidos à ANM nas últimas semanas sobre informações detalhadas sobre a fiscalização e o monitoramento dessas estruturas. O Estado concentra mais da metade das barragens inscritas na Política de Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), que inclui aquelas de resíduos perigosos e dano potencial associado (pelo impacto ambiental e localização em áreas próximas a núcleos urbanos) média ou alta. Um total de 219 das 425 barragens nesta situação está em Minas Gerais.


El País: “Não temos noção do risco em Minas Gerais. Cidades podem desaparecer de uma hora para outra”

O Estado conta com cerca de 450 barragens e pelo menos 22 delas não têm garantia de estabilidade

Miraí, em 2007, Macacos, em 2001, Mariana, em 2015. E agora Brumadinho. Os rompimentos de barragens em Minas Gerais remontam a 1986, quando foi registrado o primeiro acidente desse tipo, e as consequências são, historicamente, as mesmas: assoreamento de córregos e rios, cidades destruída pela lama e vítimas fatais. O Estado conta com cerca de 450 barragens e pelo menos 22 delas não têm garantia de estabilidade, de acordo com a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad). A Mina do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho, que rompeu nesta sexta-feira e deixou pelo menos mortos e mais de uma centena de desaparecidos, estava "devidamente licenciada" e não recebia rejeitos desde 2015, diz a Secretaria. "Isso só mostra que não temos noção do tamanho do risco que há em Minas Gerais. Cidades inteiras podem desaparecer de uma hora para outra", afirma Guilherme Meneghin, promotor responsável pelo caso do desastre de Mariana.

"É uma tragédia anunciada. É a quarta ou quinta ruptura de barragem nos últimos anos com esse caráter tão calamitoso", concorda Marcus Vinícius Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão da Universidade Federal de Minas Gerais, que monitora a atividade econômica e seus impactos ambientais nas bacias hidrográficas. Um dos problemas apontados tanto pelo promotor quanto pelo professor é que as próprias licenças de estabilidade são conseguidas depois de uma auditoria contratada pelas próprias empresas. "É uma furada", resume Polignano.

Os especialistas ouvidos pelo EL PAÍS falam de uma "repetição de Mariana", apesar das diferentes proporções —enquanto a barragem de Brumadinho armazenava uma tonelada de rejeitos, a de Mariana armazenava 50 toneladas—. A estrutura de ambas, no entanto, era similar: eram barragens à montante, o modelo mais barato, construídas a partir da compactação de terra. Essas barragens começam com a construção de um dique e um tapete drenante, que serve para eliminar a água no interior da estrutura. "Se esse tipo de barragem não tiver um sistema de drenagem muito bom, a água vai filtrando, pouco a pouco", explica Polignano. "Hoje nem estava chovendo na região, não houve nenhum fenômeno externo, a estrutura rompeu devido à sua própria fragilidade. Não havia segurança", acrescenta.

O aumento desse tipo de barragem, ou alteamento, como é chamado, é feito com o próprio rejeito em direção à barragem. Tanto em Mariana como em Brumadinho, essas construções foram feitas acima de zonas de aglomeração humana, como cidades e povoados. "O licenciamento ambiental é ridículo no Brasil. Para as empresas, é economicamente favorável construir esse tipo de barragens, mas elas representam um risco. Se a lei proibisse a construção de barragens à montante acima de comunidades humanas, como fazem muitos países, teríamos menos desastres", critica Meneghin.

Outro tipo comum é a barragem à jusante, considerada mais segura, apesar de ser mais cara. Esta também começa com a construção de um dique e do tapete drenante, mas o alteamento é feito para o lado externo da barragem e não usa o próprio rejeito. Normalmente, se usa argila e pedregulhos, retirados de outro ponto da mina, em vez de água, para evitar filtrações e eventuais rupturas. Há três anos, depois do maior desastre ambiental do país, organizações civis mineiras apresentaram à Assembleia Legislativa do Estado o Projeto de Lei de Iniciativa Popular "Mar de Lama Nunca Mais", para exigir maior rigor no licenciamento de barragens e demandar que essas fossem construídas à jusante. O PL nunca foi votada. "É lamentável que mesmo depois de um crime ambiental do tamanho de Mariana não conseguimos mobilização política para fazer mudanças nesse sentido", diz Polignano, um dos impulsores do PL.

Reparação
A lama decorrente da ruptura da barragem de Brumadinho destruiu o córrego do Feijão, afluente do rio Paraopeba, uma importante bacia hidrográfica do ponto de vista do abastecimento público. Os especialistas afirmam que a biodiversidade da região terá sequelas permanentes. “O rejeito de minério da Mina Feijão é parecido ao que atingiu o rio Doce e mata toda a fauna e flora aquática. A descontaminação é muito difícil. No rio Doce, por exemplo, a água não voltou a apresentar condições de uso”, explica Malu Ribeiro, coordenadora da ONG S.O.S. Mata Atlântica.

Mudanças na legislação que garantam a reparação ao meio ambiente e às vítimas é precisamente uma reivindicação de ambientalistas, promotores e cientistas. "Nesses casos, aplica-se o Código Civil, que prevê igualdade das partes, quando é claro que as empresas têm mais recursos que o cidadão cuja vida foi afetada. A Samarco [responsável por Mariana], por exemplo, recebeu mais de 60 multas e, até hoje, só pagou uma", critica o promotor Guilherme Meneghin. "Esperamos que essa nova tragédia desencadeie novos procedimentos de reparação. Se não, só nos restará esperar a próxima tragédia", conclui.