autogolpe

Fausto Matto Grosso: Golpismo e autogolpe

Se há uma permanência na história brasileira, é a do golpismo. Nossa história republicana sempre foi marcada por rupturas institucionais. A Proclamação da República Brasileira, também referida como Golpe Republicano, foi liderada em 1889 pelo Marechal Deodoro e um grupo de militares do exército brasileiro, que destituíram o então chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.

Em 1891 Deodoro enfrentou a oposição, fechando o Congresso e governando com o estado de sítio. Foi o primeiro autogolpe da República que nascia. Obrigado a renunciar, assumiu o vice Floriano Peixoto que deveria convocar as eleições, o que não fez. Aferrando-se ao poder, governou como ditador. Outro autogolpe.

Em 1937 Getúlio Vargas realizou um autogolpe dos mais bem-sucedidos na História brasileira, impondo o Estado Novo e governando com poderes ditatoriais por oito anos, até 1945.

Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, pretendia voltar nos braços do povo, como acontecera com o general Charles de Gaulle na França. O autogolpe desta vez falhou.

Assim chegamos ao golpe civil-militar de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart, assumindo Castelo Branco. Este deveria convocar eleições em 1965, mas ampliou seu mandato até 1967. Daí se iniciou uma sequência de autogolpes dentro do próprio regime militar. Costa e Silva, já em 1968, decreta o AI-5, fechando o Congresso e implantando um dos períodos mais repressivos da ditadura.

Com a morte de Costa e Silva, deveria assumir seu vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, mas, num novo golpe, assumiu a Junta Militar que preparou a transição para o general Garrastazu Médici. Em um embate entre a linha dura e a moderada das forças armadas, acabou assumindo o general Geisel, que fechou o Congresso.

Na sequência tivemos o general Figueiredo, que entregou o país, melancolicamente falido, para o primeiro governo civil, o de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves eleito pelo Congresso Nacional. Com a primeira eleição democrática já sob a Constituição de 1988, assume o primeiro civil diretamente eleito, Fernando Collor de Mello, logo cassado por corrupção.

Tivemos a partir daí com Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula um período de razoável estabilidade, até o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, cassada pelo Congresso Nacional. O país, então, se dividiu gravemente, mobilizado pela narrativa do PT de que impeachment era golpe. Esse tipo de narrativa pode futuramente acabar sendo usado pelos seguidores de Bolsonaro, seus antípodas.

As palavras são perigosas, pois sempre têm contexto e visam a construir narrativas. Buscando significados, golpe de Estado consiste na derrubada ilegal de um Estado ou de uma ordem constitucional legítima. Já autogolpe é uma forma de golpe que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o  Congresso Nacional, anulando a Constituição e suspendendo tribunais civis. Com essa compreensão entendo que contra Dilma não houve golpe, mas destituição dentro de todos os parâmetros constitucionais.

Em 2018 surge em cena o capitão Bolsonaro, vindo de uma longa tradição parlamentar de defesa do golpe militar e até de elogios a torturadores, como o general Brilhante Ustra. Tosco, o tenente terrorista que pretendeu lançar bombas acabou sendo excluído do Exército como capitão, não tendo feito nem o curso de Estado-Maior.

Bolsonaro, entretanto, teve inegável sucesso na organização de um movimento reacionário de massas, de extrema direita, que mobiliza até agora cegas paixões. Já na campanha, seu filho Eduardo Bolsonaro assinalava confrontos institucionais, dizendo que para fechar o Supremo bastava mandar um soldado e um cabo. Não era preciso nem um jipe.

Já no governo, não tem um mês em que o Capitão Bolsonaro, com seu governo militarizado, não comete uma provocação contra o Congresso e o Supremo e toma medidas que favorecem a hipótese de um autogolpe. Entre elas, a tentativa de controle das polícias militares, o afrouxamento do controle de armas e o incentivo de suas milícias para que cometam atos de desatino contra as instituições democráticas.

Bolsonaro se encontra hoje sob forte pressão da CPI da Covid, que pode levá-lo ao impeachment. Está sem saída. Segundo o general chinês Sun Tsu, um adversário sem saída lutará ainda mais desesperadamente. Portanto, é hora de cuidado extremo com a democracia. Uma eventual tentativa de (auto)golpe não está afastada da nossa tradição política.

*Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS

 

Leia também:

Câmaras municipais republicanas
Revendo o futuro
Os desafios dos prefeitos
Entre vórtices, ciclones e cavados
O jacaré e o Presidente

Fonte:

Gramsci e o Brasil

https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2459


Fausto Matto Grosso: Golpismo e autogolpe

Se há uma permanência na história brasileira, é a do golpismo. Nossa história republicana sempre foi marcada por rupturas institucionais. A Proclamação da República Brasileira, também referida como Golpe Republicano, foi liderada em 1889 pelo Marechal Deodoro e um grupo de militares do exército brasileiro, que destituíram o então chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.

Em 1891 Deodoro enfrentou a oposição, fechando o Congresso e governando com o estado de sítio. Foi o primeiro autogolpe da República que nascia. Obrigado a renunciar, assumiu o vice Floriano Peixoto que deveria convocar as eleições, o que não fez. Aferrando-se ao poder, governou como ditador. Outro autogolpe.

Em 1937 Getúlio Vargas realizou um autogolpe dos mais bem-sucedidos na História brasileira, impondo o Estado Novo e governando com poderes ditatoriais por oito anos, até 1945.

Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, pretendia voltar nos braços do povo, como acontecera com o general Charles de Gaulle na França. O autogolpe desta vez falhou.

Assim chegamos ao golpe civil-militar de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart, assumindo Castelo Branco. Este deveria convocar eleições em 1965, mas ampliou seu mandato até 1967. Daí se iniciou uma sequência de autogolpes dentro do próprio regime militar. Costa e Silva, já em 1968, decreta o AI-5, fechando o Congresso e implantando um dos períodos mais repressivos da ditadura.

Com a morte de Costa e Silva, deveria assumir seu vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, mas, num novo golpe, assumiu a Junta Militar que preparou a transição para o general Garrastazu Médici. Em um embate entre a linha dura e a moderada das forças armadas, acabou assumindo o general Geisel, que fechou o Congresso.

Na sequência tivemos o general Figueiredo, que entregou o país, melancolicamente falido, para o primeiro governo civil, o de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves eleito pelo Congresso Nacional. Com a primeira eleição democrática já sob a Constituição de 1988, assume o primeiro civil diretamente eleito, Fernando Collor de Mello, logo cassado por corrupção.

Tivemos a partir daí com Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula um período de razoável estabilidade, até o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, cassada pelo Congresso Nacional. O país, então, se dividiu gravemente, mobilizado pela narrativa do PT de que impeachment era golpe. Esse tipo de narrativa pode futuramente acabar sendo usado pelos seguidores de Bolsonaro, seus antípodas.

As palavras são perigosas, pois sempre têm contexto e visam a construir narrativas. Buscando significados, golpe de Estado consiste na derrubada ilegal de um Estado ou de uma ordem constitucional legítima. Já autogolpe é uma forma de golpe que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o  Congresso Nacional, anulando a Constituição e suspendendo tribunais civis. Com essa compreensão entendo que contra Dilma não houve golpe, mas destituição dentro de todos os parâmetros constitucionais.

Em 2018 surge em cena o capitão Bolsonaro, vindo de uma longa tradição parlamentar de defesa do golpe militar e até de elogios a torturadores, como o general Brilhante Ustra. Tosco, o tenente terrorista que pretendeu lançar bombas acabou sendo excluído do Exército como capitão, não tendo feito nem o curso de Estado-Maior.

Bolsonaro, entretanto, teve inegável sucesso na organização de um movimento reacionário de massas, de extrema direita, que mobiliza até agora cegas paixões. Já na campanha, seu filho Eduardo Bolsonaro assinalava confrontos institucionais, dizendo que para fechar o Supremo bastava mandar um soldado e um cabo. Não era preciso nem um jipe.

Já no governo, não tem um mês em que o Capitão Bolsonaro, com seu governo militarizado, não comete uma provocação contra o Congresso e o Supremo e toma medidas que favorecem a hipótese de um autogolpe. Entre elas, a tentativa de controle das polícias militares, o afrouxamento do controle de armas e o incentivo de suas milícias para que cometam atos de desatino contra as instituições democráticas.

Bolsonaro se encontra hoje sob forte pressão da CPI da Covid, que pode levá-lo ao impeachment. Está sem saída. Segundo o general chinês Sun Tsu, um adversário sem saída lutará ainda mais desesperadamente. Portanto, é hora de cuidado extremo com a democracia. Uma eventual tentativa de (auto)golpe não está afastada da nossa tradição política.

*Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS

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Marcelo Godoy: Exército se vê vencedor da batalha com Bolsonaro, o 'capitão pitoresco'

Chamado de 'pitoresco' por Pujol, o presidente queria alguém que lhe fosse leal no comando da Força Terrestre, no fim, escolheu entre os 3 generais mais antigos

uma semana antes de ser demitido do Ministério da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva procurou o general Augusto Heleno. Revelou seu desconforto com o presidente por Jair Bolsonaro ter pela enésima vez se referido às Forças Armadas como sua guarda pessoal, como se a lealdade delas fosse à um líder e não à Constituição. Bolsonaro estava em plena campanha contra os governadores e as medidas restritivas para o combate à covid-19. Foi ao Supremo Tribunal Federal contra o toque de recolher, enquanto o deputado federal Vitor Hugo (PSL-GO) tentava obter para o capitão o domínio das polícias estaduais.

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Foto publicada pelo Exército da visita dos generais Edson Pujol e Paulo Sérgio ao general Eduardo Villas Bôas Foto: Reprodução/Twitter

No  sábado, dia 27, Bolsonaro esteve reunido no Alvorada. Seus interlocutores negaram que tivesse tratado da reforma ministerial. Só no dia seguinte ele teria decidido fazer a troca na Defesa, ainda que quase ninguém acredite que o presidente tenha resolvido em 24 horas montar uma complicada dança das cadeiras. O movimento na Esplanada congelou Brasília nos dias seguintes e fez com que os brasileiros incrédulos redescobrissem as listas de antiguidade dos oficiais generais, como não se fazia desde os anos 1970. Seu esboço, no entanto, começara a ser traçado muito antes. 

Edson Leal Pujol só havia se tornado o comandante do Exército porque o general Augusto Heleno soube contornar a primeira intriga feita contra Pujol, ainda em 2018, quando ele dirigia o Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. O general chamou a atenção do então candidato Bolsonaro sobre os extremos de seu comportamento e a forma como expunha as coisas. “Elas não se enquadram na figura de um candidato a presidente”. Pujol completou: "Bolsonaro tem uma personalidade muito pitoresca. Se ele perdesse um pouco dessa identidade, talvez não tivesse tantos eleitores." 

A fala de Pujol despertou reações entre os oficiais engajados na campanha de Bolsonaro. Heleno pôs panos quentes usando o argumento de que era necessário garantir a unidade dos militares. O episódio, no entanto, ficou arquivado. Escolhido comandante por ser o oficial mais antigo – e o critério de antiguidade foi respeitado com as demais Forças – Pujol se esqueceu do que dissera naquela entrevista. Os generais pensavam então que tinham um governo para chamar de seu e obtiveram vantagens orçamentárias e salariais, além de milhares de cargos na Esplanada

Bolsonaro, no entanto, nunca dissimulou o que sentia. Deixava claro o desconforto com Pujol toda a vez que este era elogiado pela imprensa em contraste com a reprovação que recebia. Lembrava-se de ter sido chamado de “pitoresco”. E se preocupava com cada notícia sobre os humores dos generais, escalando o general Luiz Eduardo Ramos para auscultar os colegas. Foi na passagem para a reserva do general Antonio Miotto que dois fatos curiosos aconteceram: o primeiro foi o ministro Ramos aparecer fardado na cerimônia e o segundo foi o cumprimento com o cotovelo que Pujol estendeu à Bolsonaro, que ficou com a mão no ar. 

O vídeo com a imagem do general preocupado com a covid-19 diante do presidente da gripezinha foi compartilhado por muitos militares, inclusive generais da ativa – um deles chegou a postá-lo no Twitter após retirar a identificação de sua conta. Bolsonaro ficou irritado. Depois, em novembro, quando Pujol se manifestou contra a política nos quartéis, Bolsonaro fez questão de lembrar que o general só comandava o Exército por causa da tinta de sua caneta.

Enquanto arrumava mais uma pessoa para brigar, Bolsonaro assistia ao fracasso de Eduardo Pazuello na Saúde, o que levou o Exército a tentar se dissociar da gestão que levou cloroquina em vez de oxigênio à Manaus e atrasou a vacinação no País. A Força Terrestre exibia seu plano para se manter aberta por meio do uso de máscaras e distanciamento social, além do álcool em gel, tudo o que Bolsonaro e seus ministros se recusavam a fazer.  

A estratégia de tratar Bolsonaro como pitoresco não bastava para salvar reputações. Exemplo disso era o ministro da Defesa. Mesmo que Azevedo e Silva tenha em nota defendido a preservação das Forças Armadas como instituição de Estado, seu papel na crise foi questionado até por colegas, como o general Francisco Mamede de Brito Filho. "Participou do famigerado tuíte do general Villas Bôas. Foi assessor de Toffoli em circunstância questionável. Permitiu militares da ativa em cargos civis." E concluiu: "Fica-se a imaginar o que ele teria preservado. É preciso vir a público com a verdade." 

A verdade é que Bolsonaro foi o escolhido pelos generais como candidato em 2018. Quase todos o conheciam, pois haviam sido contemporâneos de academia ou mesmo colegas de turma, como Pujol, Paulo Humberto Oliveira, Mauro Cesar Cid e Carlos Alberto Barcellos. Sabiam de seu passado no Exército e de seu comportamento no Congresso. Apesar disso, havia euforia com o Cavalão. Basta consultar – se alguém as guardou – as mensagens daquela época no grupo de WhatsApp Aman 77.  Raros se opunham à ideia de tê-lo como presidente e quem dizia isso publicamente era atacado pelos colegas. 

O general Otávio do Rêgo Barros tornou-se o porta-voz do novo governo. Fora o responsável pela comunicação do comandante Villas Bôas no momento do polêmico tuíte às vésperas do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um ano depois de deixar o governo e após o presidente patrocinar a defenestração do ministro da Defesa e da cúpula militar do País, Rêgo Barros escreveu: “O mandatário não é mais um militar. Ele detém, tão somente, uma carta patente que indica ter obtido, em um determinado momento da vida, os requisitos para exercer as funções intermediárias na hierarquia da oficialidade das Forças Armadas.” 

O general continuou ainda, em artigo, publicado no dia 31 de março, a descrição que fez de seu antigo chefe: "O amadurecimento intelectual – característica marcante na formação dos atuais chefes - não esteve presente em sua trajetória".  Disse ainda que os atributos aprendidos na caserna por Bolsonaro foram "substituídos por conceitos não aplicados dentro de uma instituição como é o Exército Brasileiro". "Seu aparente desejo de transformar essa centenária instituição, detentora dos mais altos índices de confiabilidade, em uma estrutura de apoio político, afronta tudo o que defendem as Forças Armadas em sua atitude profissional."

Um leitor de Weber afirmaria que generais como Santos Cruz, Rêgo Barros, Paulo Chagas e tantos outros que estiveram com Bolsonaro estão dizendo que o presidente dispõe ao mesmo tempo de elementos da dominação tradicional e da dominação carismática, mas ele se apresenta distante da dominação legal-burocrática sine ira et studio. De fato, já se notou que Bolsonaro é avesso à impessoalidade das leis e da administração. Devia ele saber que, mesmo na ditadura militar, quem governou o País foi o Exército e não um  líder. Não houve no Brasil um Augusto Pinochet, mas presidentes com mandato.

Nossos generais pensavam na ditadura romana, como um regime de crise e não em uma tirania. É no exemplo de Lúcio Quíncio Cincinato que se miravam. Cincinato, não é demais lembrar, foi buscado pelo Senado para exercer o poder em Roma quando um exército inimigo ameaçava a República. O poder não estava em uma pessoa, mas no papel, na lei, na tradição. Para Bolsonaro ter o seu Exército, seria necessário subverter a lógica de poder da própria corporação, o que limita esse tipo de projeto golpista.

Desde os anos 1930 os militares gostam de pensar que fazem a política do Exército e não política no Exército. Quando pensa em fazer do quartel uma propriedade privada, Bolsonaro se bate contra um dos marcos referenciais nos quais a cadeia de comando trabalha há décadas. O poder pessoal de um Mito é muito diferente do poder exercido segundo o pensamento conservador que prevalece no Exército. Afrontar essa estrutura é que levou Santos Cruz a chamar a ação de Bolsonaro de "tiro no pé". E fez Rêgo Barros concluir: "Buscar adentrar as cantinas dos quartéis com a política partidária é caminho impensado para as Forças Armadas. Elas já estão vacinadas contra esse vírus."

 Pior ainda. A identificação com o Centrão, o enterro da Lava Jato e as manobras para salvar o filho Flávio da Justiça e dos questionamentos sobre os R$ 6 milhões pagos em uma mansão em Brasília fizeram-no ouvir do general Paulo Chagas: "Bolsonaro exonerou os três comandantes das Forças Armadas porque eles não apoiaram a sua intenção autoritária de usar a força das Forças para, ao lado do centrão/ladrão, impor-se ao Congresso."  Com a política de volta entre os militares, a questão seria saber quem a pode fazer e em nome de quem. Por isso tudo, ao término da crise, o Alto Comando do Exército cantava vitória e publicava a foto de Villas Bôas e Pujol com o novo comandante, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

Para os generais, a corporação saiu do imbróglio em que se meteu com Bolsonaro como "grande vencedora" do episódio que levou à demissão de Leal Pujol. Primeiro porque o pitoresco Bolsonaro escolheu o sucessor de Pujol dentro da lista de antiguidade que trazia os generais José Luiz Freitas, Marcos Antonio Amaro dos Santos e Paulo Sérgio. Depois, porque todo o ônus da troca recaiu sobre Bolsonaro, expondo seu desejo de nomear três Pazuellos para cada uma das Forças. Prevaleceu a ideia de continuidade, de que seja quem for o comandante, Bolsonaro não poderá contar com o Exército para se tornar ditador. E, se tentar, é mais fácil ele acabar deposto do que um cabo e um soldado arriscarem o pescoço por um mito. Os generais podem agora sonhar em 2022 com a eleição de um governo do qual participem sem o inconveniente de lidar com o pitoresco capitão. 


José Luis Oreiro: 'Sem medidas efetivas para controle da Covid-19, pandemia custará ainda mais caro ao Brasil'

Para o economista, “enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer”, o setor de serviços não vai se recuperar e a indústria não conseguirá retomar sua capacidade de investimento e modernização

Patricia Fachin, IHU Online

O professor e economista José Luis Oreiro não tem meias palavras: “precisamos ter clareza de que o que afeta negativamente a economia não são as medidas de isolamento social, mas o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele ainda detalha que “a negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida”. “Enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer, as atividades ligadas ao setor de serviços serão duramente afetadas”, completa.

Já na indústria, pela natureza do negócio, ele diz que o impacto parece não ser tão grande. No entanto, chama atenção para o fato de que a pandemia pegou a indústria nacional num processo de desindustrialização que já dura pelo menos 20 anos. “Se o Brasil tivesse um percentual maior da sua força de trabalho na indústria de transformação, a queda do PIB teria sido menor. Vemos isso claramente nos países europeus. Países como a Alemanha, onde a indústria responde por um percentual maior do PIB e da força de trabalho empregada, tiveram uma queda menor do nível de atividade”, exemplifica.

E, ainda, há aqueles que são acometidos em cheio com a perda de renda e que encontraram no Auxílio Emergencial de 2020 a última saída para fugir da fome e do desespero. Cenário que, como bem lembra Oreiro, não se repetirá em 2021. “Não só os valores são menores, como ainda houve uma redução significativa do acesso ao benefício. Estima-se que, pelo menos, 20 milhões de pessoas que tiveram acesso ao auxílio no ano passado ficarão sem receber o benefício este ano. Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021”, dispara.

Para enfrentar a crise pandêmica, além de agir com a responsabilidade de promoção de um efetivo isolamento social e promover vacinação ampla e irrestrita, o professor defende a extensão do Auxílio Emergencial nos patamares do ano passado enquanto estivermos em pandemia. “Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura (mobilidade urbana, geração de energia, logística, estradas e ferrovias) com foco na descarbonização da economia”, indica.

José Luis da Costa Oreiro é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, possui mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ e doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ. Atualmente é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília - UnB. Entre as inúmeras publicações, destacamos o livro Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (publicado pela LTC em 2016) e o livro Macrodinâmica Pós-Keynesiana: crescimento e distribuição de renda (Alta Books, 2018).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou contrário ao isolamento social com a justificativa de que o isolamento poderia prejudicar a economia. Qual é a situação econômica do país neste momento em que também estamos imersos em uma crise sanitária e com altos índices de desemprego?

José Luis Oreiro – Antes de mais nada, precisamos ter clareza de que o que afeta negativamente a economia não são as medidas de isolamento social, mas o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19. As medidas de distanciamento social têm por objetivo reduzir o número de contágios para impedir o colapso do sistema de saúde. Essas medidas tiveram um relativo sucesso em 2020, mas agora em 2021 foram adotadas de forma tardia pelos governos subnacionais.

A população também relaxou as medidas de proteção, em parte por causa do cansaço com a situação posta pela pandemia, mas em parte por falta de uma campanha nacional de conscientização sobre os riscos da Covid-19. Caberia ao Ministério da Saúde vincular, por intermédio dos meios de comunicação social, informações para a população se prevenir do vírus. Isso não só não foi feito pelo Ministério da Saúde, como o presidente da República adotou comportamentos públicos que incentivaram as pessoas a minimizar o risco do novo coronavírus.

O resultado está aí, 300 mil brasileiros mortos e com o sistema de saúde entrando em colapso em várias cidades brasileiras. A negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida. Quero aqui deixar claro que não existe trade-off entre vidas e economia. Enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer, as atividades ligadas ao setor de serviços serão duramente afetadas, mesmo na ausência de medidas de distanciamento social.

Patamares piores que na grande depressão

Em 2020, o PIB brasileiro teve uma contração de 4,1%, a maior desde a grande depressão de 1929. A taxa de desemprego atingiu 14% da força de trabalho e cerca de 9 milhões de brasileiros tiveram que se retirar da força de trabalho. O que salvou o ano de 2020 de ter sido muito pior foi o Auxílio Emergencial. Isso permitiu que milhões de pessoas tivessem uma condição financeira mínima para sustentarem a si mesmos e suas famílias num contexto em que o setor de serviços (responsável por cerca de 70% do PIB) se contraiu fortemente por conta da pandemia.

O peso da desindustrialização

Veja que a indústria não foi tão afetada pela pandemia como o setor de serviços, devido à natureza das relações de trabalho na indústria, que permitem distanciamento social sem interrupção do trabalho. A pandemia afetou muito a economia brasileira por conta do processo de desindustrialização prematura que ocorre há mais de 20 anos. Se o Brasil tivesse um percentual maior da sua força de trabalho na indústria de transformação, a queda do PIB teria sido menor. Vemos isso claramente nos países europeus. Países como a Alemanha, onde a indústria responde por um percentual maior do PIB e da força de trabalho empregada, tiveram uma queda menor do nível de atividade.

Já países onde o setor de serviços, particularmente o turismo, tem uma participação expressiva no PIB e na força de trabalho ocupada, como a Espanha e a Itália, tiveram quedas assombrosas do nível de atividade econômica. 

A negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida – José Luis Oreiro

IHU On-Line – Que balanço faz das políticas econômicas adotadas durante o primeiro ano de pandemia? O que poderia ter sido feito para além do que se fez?

José Luis Oreiro – O Auxílio Emergencial foi, de longe, o maior acerto da política econômica, embora tenha sido iniciativa do Congresso Nacional, não da equipe do Ministério da Economia. Foi o auxílio que impediu que o PIB brasileiro caísse entre 8 e 9% em 2020, como era previsto por organismos internacionais como o FMIBanco MundialBanco Central Europeu e Comissão Europeia.

Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Pronampe, que tinha por objetivo conceder crédito para essas empresas e assim permitir que elas pudessem sobreviver durante o período da pandemia, foi bem menos eficiente, no sentido de que os desembolsos realizados pelo programa ficaram aquém do esperado. Esse programa foi interrompido em 31/12/2020 e ainda não existe previsão de retorno. Já o BEm (Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e Renda), que permitiu às empresas reduzir a jornada de trabalho (e os vencimentos) dos seus funcionários ou suspender temporariamente os contratos de trabalho, com o governo cobrindo uma parte da perda de renda dos funcionários dessas empresas, foi mais bem-sucedido, pois evitou um grande número de demissões e ajudou a manter a renda (ainda que com uma certa redução) dos trabalhadores. O problema é que esse programa também foi extinto em 31/12/2020 e não existe previsão de retorno.

Se o governo tivesse renovado o estado de calamidade pública no dia 31/12/2020 por, pelo menos, mais 120 dias, a Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra continuaria válida, permitindo ao governo manter o pagamento do Auxílio Emergencial, bem como o Pronampe e o BEm, pois não seria obrigado a retornar à "disciplina fiscal" imposta pela EC do Teto de Gastos e pela "Regra de Ouro". Estamos quase no final de março e nenhum desses programas foi retomado. Acredito que o efeito sobre o nível de atividade econômica e o emprego será devastador.


IHU On-Line – Como avalia o novo Auxílio Emergencial para trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa Família, que será pago a partir de abril, em quatro parcelas, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375?

José Luis Oreiro – Representa uma redução gigantesca com relação aos valores pagos no ano de 2020, num contexto em que o Brasil entrou com força numa segunda onda de contágios e mortes por Covid-19, na qual o índice de óbitos por dia já se encontra 2,5 vezes maior do que na pior fase da primeira onda.

Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021 – José Luis Oreiro

Não só os valores são menores, como ainda houve uma redução significativa do acesso ao benefício. Estima-se que, pelo menos, 20 milhões de pessoas que tiveram acesso ao auxílio no ano passado ficarão sem receber o benefício este ano. Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021.

IHU On-Line – A inflação está subindo, a atividade econômica desacelerando em alguns setores e, do ponto de vista sanitário, o país está em colapso. O aumento da inflação representa algum risco no atual contexto de crise econômica, desemprego e crise sanitária?

José Luis Oreiro – O aumento da inflação ocorrido nos últimos meses é resultado de um choque de oferta, não devido a pressões de demanda, por isso mesmo trata-se de um fenômeno transitório: a partir de junho/julho de 2021 a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA acumulada em 12 meses começará a ceder após alcançar um pico entre 6 e 7%, fechando o ano de 2021 em torno de 4%.

Por que a inflação se acelerou nos últimos 12 meses? Em primeiro lugar, devido ao aumento dos preços dos alimentos causado por uma combinação de fatores: desvalorização acentuada da taxa de câmbio em 2020 (cerca de 40% entre janeiro e dezembro de 2020); aumento dos preços dos alimentos nos mercados internacionais em função da demanda precaucional de alimentos por parte de diversos países dada a incerteza sobre os efeitos da pandemia no abastecimento de alimentos; e a eliminação dos estoques reguladores de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento - Conab levada a cabo nos governos liberais de [Michel] Temer e [Jair] Bolsonaro.

Sem estoque, sem controle

Se o Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, tivesse mantido um estoque grande de alimentos em 2020, então o governo poderia vender esse estoque no segundo semestre do ano passado, o que contribuiria para reduzir a pressão sobre os preços dos alimentos, assim reduzindo a inflação. Mas Paulo Guedes achava que era muito caro manter esses estoques e decidiu vender praticamente tudo em 2019. O resultado é que o Estado Brasileiro ficou sem um importante instrumento para conter pressões inflacionárias vindas do lado da oferta da economia.

IHU On-Line – Em que consiste sua proposta para a retomada do crescimento da economia, baseada no Auxílio Emergencial, no ajuste fiscal e na reindustrialização? Como essa arquitetura pode resolver o problema da renda, do emprego e da retomada da economia?

José Luis Oreiro – O Auxílio Emergencial, como o próprio nome diz, é para atacar uma emergência: trata-se de transferir renda para aquelas pessoas que, devido à pandemia, ficaram sem emprego ou sem condições de exercer alguma atividade remunerada. Esse auxílio deve permanecer até que o país atinja, por intermédio das campanhas de vacinação, a chamada imunidade de rebanho, o que seria, talvez, 70% da população com mais de 14 anos.

Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura (mobilidade urbana, geração de energia, logística, estradas e ferrovias) com foco na descarbonização da economia, ou seja, com a redução da emissão de CO2 por unidade de PIB, ou seja, aumentar a eficiência ambiental da economia brasileira. Trata-se de uma verdadeira mudança estrutural verde na economia brasileira, em que será estimulada a adoção de tecnologias não poluentes e/ou que permitam a captura de CO2 da atmosfera.

Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura com foco na descarbonização da economia – José Luis Oreiro

Isso vai exigir vultosos investimentos tanto do setor público, como do setor privado. Como são investimentos em novas tecnologias, o governo deverá, por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES e da Financiadora de Estudos e Projetos - Finep, conceder crédito subsidiado para a realização dos mesmos, exigindo contrapartidas concretas e mensuráveis em termos da redução de emissão de CO2. Essa transformação estrutural será um elemento importante para a reindustrialização da economia brasileira.

Carga de impostos

Esse pacote de investimentos terá que ser financiado por intermédio do aumento da carga tributária. É uma falácia dizer que não é possível aumentar a carga de impostos no Brasil. É possível sim, conforme artigo de Alexandre Sampaio Ferrazpublicado recentemente no Nexo Jornal

A alíquota efetiva do imposto de renda das pessoas físicas começa a cair a partir dos 2% mais ricos, e despenca quando chegamos nos 0,1% mais ricos da população brasileira. Isso é o resultado da combinação entre isenção de imposto de renda para lucros e dividendos distribuídos, crescente pejotização dos profissionais liberais e alíquota mais baixa de imposto de renda para a renda financeira (ganhos de capital sobre ativos e juros das aplicações financeiras). Como a proporção de lucros, dividendos e renda financeira na renda total é muito mais alta no topo da distribuição de renda do que na parcela intermediária (a "classe média"), os brasileiros mais ricos pagam, como proporção da sua renda, muito menos do que os funcionários públicos (que a Faria Lima diz serem a elite do Brasil) ou os pequenos e médios empresários.

Daqui se segue que uma reforma tributária que contemple não apenas a criação do Imposto sobre Bens e Serviços - IBS, como previsto na PEC 45, como também a tributação de lucros e dividendos distribuídos e o aumento do imposto de renda sobre ganhos financeiros irá resultar num aumento expressivo da arrecadação de impostos, permitindo uma consolidação fiscal de médio prazo pelo lado da receita.

IHU On-Line – Os economistas costumam se situar em polos extremos: ou defendem o gasto social sem restrições ou defendem o equilíbrio das contas independentemente da situação social do país. O senhor tem defendido "um limite para o aumento da dívida pública". Em que consiste sua proposta?

José Luis Oreiro – A dívida pública como proporção do PIB não pode aumentar indefinidamente, mesmo sendo denominada na moeda que o país emite; mas não existe um número mágico a partir do qual os mercados deixam de financiar o Tesouro. O importante é desenhar um plano de consolidação fiscal de médio-prazo (5 a 10 anos) que mostre que a relação dívida pública/PIB irá começar a cair dentro desse horizonte de tempo. Para isso a combinação de aumento do investimento público com reforma tributária será absolutamente necessária: o aumento do investimento público irá acelerar o crescimento da economia e a reforma tributária permitirá que uma parcela maior do crescimento do PIB se transforme em aumento da arrecadação de impostos.

Esse é o ajuste fiscal inteligente que o Brasil precisa, não esse terraplanismo econômico do "teto de gastos" adotado em 2016 e que foi totalmente ineficaz no que se refere ao propósito para o qual foi criado, a saber: a redução do endividamento do setor público.

IHU On-Line – Em decorrência da crise pandêmica e também do Auxílio Emergencial concedido no ano passado, voltou à tona a discussão sobre a elaboração de programas de transferência de renda mais amplos e abrangentes. Alguns, inclusive, propõem uma renda mínima universal incondicional. Como o senhor tem refletido sobre essa questão, especialmente na atual conjuntura? Que desenho de programa de transferência de renda é desejável e possível neste momento?

José Luis Oreiro – Sou favorável a um programa emergencial de renda básica enquanto durar a pandemia, aliás, fui signatário do manifesto do Movimento Direitos Já em defesa do pagamento de um valor de R$ 600,00 a título de Auxílio Emergencial até, no mínimo, o final de 2021. Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Mas não gosto de um programa de renda mínima universal incondicional.

Sou favorável a um programa emergencial de renda básica enquanto durar a pandemia. Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Mas não gosto de um programa de renda mínima universal incondicional – José Luis Oreiro

renda mínima deve ser concedida apenas para aquelas pessoas que, por diversas contingências da vida, são incapazes de se inserir de forma produtiva na sociedade. Aqui tem um julgamento de valor meu, o qual reflete minha visão cristã e católica do homem e do mundo: Deus criou o homem para guardar e cuidar do jardim do Éden. É o trabalho que dá ao homem sua dignidade como criatura feita à imagem e semelhança de Deus. O trabalho não é apenas um meio para se ganhar a vida, mas é a forma pela qual o homem coopera com Deus na obra de criação.

Tendo esse princípio em mente, eu prefiro um programa de garantia de Emprego pelo Estado, tal como o defendido pelo senador Bernie Sanders nos Estados Unidos. Todo cidadão, não importa gênero, idade, orientação sexual, religião ou etnia, tem direito a um emprego digno com o qual possa não apenas ganhar seu sustento, mas contribuir para o bem comum.

IHU On-Line – Como avalia a decisão do Comitê de Política Monetária - Copom de elevar a taxa Selic para 2,75%? O que essa medida indica e sinaliza para os próximos meses em relação à política de juros no país?

José Luis Oreiro – Foi uma decisão errada, que mostra a força do rentismo no país. Em linhas gerais, o Banco Central reagiu a um choque temporário de oferta com uma elevação da taxa de juros em 0,75 p.p. e sinalizou que irá continuar o processo de "normalização" da política monetária nos próximos meses, ou seja, irá continuar aumentando a Selic.

Segundo estimativas do próprio Banco Central, um aumento de 1,5 p.p. na Selic irá produzir uma elevação de R$ 47,7 bilhões na dívida bruta do governo geral; um valor equivalente a um mês de Auxílio Emergencial de R$ 600,00 para um público de 67 milhões de pessoas. Em outras palavras, o governo não tem dinheiro para pagar o mesmo valor de Auxílio Emergencial que pagou em 2020, mas tem dinheiro para o PESFL, “Programa Emergencial de Socorro à Faria Lima”. É muita cara de pau.

O governo não tem dinheiro para pagar o mesmo valor de Auxílio Emergencial que pagou em 2020, mas tem dinheiro para o PESFL, "Programa Emergencial de Socorro à Faria Lima" – José Luis Oreiro Tweet

IHU On-Line – Em fevereiro deste ano, o Congresso aprovou a autonomia do Banco Central, que foi sancionada pelo presidente Bolsonaro, com a justificativa de "evitar pressões políticas na condução da política de juros da instituição". Como o senhor avalia essa medida?

José Luis Oreiro – Foi essa medida que deu ao Banco Central os graus de liberdade para tomar a decisão insana de aumentar a taxa de juros no meio da pior crise econômica e sanitária de nosso país. Veja que a autonomia do Banco Central foi aprovada antes da PEC emergencial e até mesmo antes de o Congresso Nacional ter aprovado o orçamento de 2021.

Por que tanta pressa dado que essa discussão já se arrasta há mais de 30 anos? Foi porque a turma do mercado financeiro receava a intervenção do presidente da República no Banco Central do Brasil caso o mesmo fizesse o que acabou fazendo. Agora não só Bolsonaro como o próximo presidente da República estarão de mãos atadas no que se refere à condução da política monetáriaPerdeu a Democracia, ganhou a Plutocracia.

IHU On-Line – O senhor costuma criticar o que chama de "porta giratória" do Banco Central, mas também do Ministério da Economia, no sentido de que economistas, depois de trabalharem para essas instituições do Estado, passam a atuar no mercado financeiro. Que problemas percebe nessa relação?

José Luis Oreiro – É um problema de captura do regulador pelo regulado. Por que um economista que não concluiu seu doutorado, que nunca estudou ou trabalhou com finanças é convidado para ser economista chefe e sócio de um dos maiores bancos de investimento do país depois de ter trabalhado no Ministério da Economia? Na minha cabeça só existe uma explicação possível: recompensa pelos bons serviços prestados ao setor financeiro quando de sua atuação no setor público. Assim, simples.

IHU On-Line – Quais são suas projeções para a economia brasileira no decorrer deste ano?

José Luis Oreiro – Eu estaria sendo néscio se cravasse um número para o crescimento do PIB em 2021. A incerteza é muito grande. Ao que tudo indica, a pandemia está fora de controle no Brasil. A base de apoio do governo no Congresso começa a mandar sinais de descontentamento. O Ministério da Economia não tem um plano concreto de medidas de incentivo econômico e, para piorar, o Banco Central vai "normalizar" a política monetária. Eu aposto que o PIB irá se contrair no primeiro e no segundo semestre deste ano. O que vai ocorrer no segundo semestre eu não faço a menor ideia. Incerteza pura. Não dá para fazer previsão.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Luis Oreiro – Eu aconselharia o presidente Bolsonaro a adotar um gesto de grandeza e renunciar ao cargo de presidente da República. Seria melhor para todos, inclusive para ele que, aparentemente, se sente sufocado pelo peso da responsabilidade de governar um país onde a maior parte das pessoas não gosta dele e/ou não concorda com as decisões que ele toma.

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Alon Feuerwerker: Ofensiva ou defensiva? E uma lembrança sobre 1964

As movimentações do poder nos últimos dias permitem pelo menos duas leituras. Uma diz que a troca dos comandantes das Forças Armadas faz parte de certo rearranjo numa ofensiva política do presidente da República. Expressão desse raciocínio é a palavra “golpe” ter dado as caras com assiduidade durante algumas horas.

Em especial no intervalo entre a demissão da antiga cúpula militar e o anúncio da nova.

Cada um tem sua própria opinião, mas a minha é que talvez tenha sido o contrário. Talvez o movimento presidencial tenha sido essencialmente defensivo, parte da construção de barreiras protetivas num período em que a ofensiva é dos adversários ferrenhos, circunstância que sempre embute o risco de provocar desequilíbrios em aliados não tão orgânicos assim.

O cenário das últimas semanas combina números trágicos e explosivos da Covid-19, dúvidas disseminadas sobre o ritmo da vacinação, desconforto sobre o valor do novo auxílio emergencial, temores de perda de fôlego da atividade econômica, conflito aberto do presidente com a maioria dos governadores em torno das medidas de isolamento social.

E até dias atrás juntava-se a isso a encrenca do então chanceler com o Senado Federal.

Em certo momento da confusão, o presidente da Câmara, último muro que separa a oposição de entrar no terreno do impeachment, ligou o sinal amarelo. Quem avisa, aliado é. A partir dali, ficar parado não era mais opção para Jair Bolsonaro. Ele entrava na situação corriqueira dos presidentes brasileiros: ter de oferecer os anéis antes de perder os dedos.

Mas só recuar provocaria efeitos colaterais indesejados. Preservaria forças e recursos do poder. Mas também transmitiria sinal de fraqueza. Que sempre tem uma resultante perigosa: acender ainda mais apetites. Na última linha, a política não se define pelo sentimento de gratidão, define-se pela correlação de forças. Quem quer sobreviver precisa ter força, ou ao menos dar a impressão.

É fácil constatar. Se Bolsonaro tivesse apenas trocado o chanceler e aberto espaço no núcleo do Planalto para uma aliada do presidente da Câmara, o noticiário giraria em torno do recuo do presidente sob pressão. Como ele, ao mesmo tempo, deu certo sinal de “manda quem pode”, trazendo as Forças Armadas para dançar, o jogo simbólico ficou algo equilibrado.

Sim, apenas equilibrado, porque restou claro que os novos comandantes foram indicados em consenso com o escalão mais alto de cada força. Assim, ao final, todo mundo mostrou um pouco de dentes: a Câmara dos Deputados, o Senado, o Presidente da República e a turma das quatro estrelas na Marinha, no Exército e na Aeronáutica.

E segue o jogo. E qual é esse jogo? Há a necessidade de combater a pandemia e retomar a economia, claro, mas a bússola política está apontada mesmo é para 2022. Aliás, esse talvez seja o principal saldo semiótico das últimas semanas. Tem projeto? Então foco. Prepara-te para outubro do ano que vem. As outras opções são bem menos prováveis.

Pois, a rigor, ninguém relevante está, tirando a retórica, interessado numa ruptura. Entre os vários motivos: ao contrário de Fernando Collor e Dilma Rousseff, o vice agora não é uma ponte potencial dos políticos para a ocupação do governo. E outro detalhe: numa ruptura digna do nome, não tem seguro que proteja 100% de ser tragado pelo tsunami.

Sobre tsunamis, esta semana registrou-se mais um aniversário de 31 de março de 1964. Como habitual, reacendeu-se a discussão sobre o que teria acontecido se Jango não tivesse sido derrubado. Debate que persistirá para a eternidade. Uma coisa, porém, é certeza. Nem Juscelino Kubitschek, nem Jânio Quadros e muito menos Carlos Lacerda eram comunistas.

Todos apoiaram a deposição de João Goulart. E quem não souber o que aconteceu depois com eles, é só procurar no Google.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Heloisa Starling: 'Altas patentes da ativa estão em silêncio eloquente'

Pesquisadora alerta para o nível de tensão entre governo e Forças Armadas mas vê como bom sinal a falta de manifestações políticas da cúpula militar

Janaína Figueiredo, O Globo

RIO - A inédita troca simultânea dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, semana passada, colocou historiadores brasileiros como Heloisa Starling em estado de alerta. A professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, coautora de "Brasil: uma biografia", se pergunta, por exemplo, se existem fissuras nas Forças Armadas, e se a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de contar com respaldo militar para seu projeto político tem adesão nas baixas patentes. "O silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia", afirmou a historiadora, em entrevista ao GLOBO. Heloisa não vê risco de golpe, mas faz uma ressalva: "o projeto autoritário do governo corroi por dentro a democracia. A novidade é essa".

Qual é a sua avaliação sobre a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e a cúpula militar?

Os sentimentos são vários. O Brasil vive numa montanha-russa, a cada dia temos um solavanco maior, sem respiro. Um dos pensamentos que tive foi me perguntar como é possível que, num momento em que mais de 300 mil brasileiros morreram, se faça uma reforma de ministério. Ao invés de todas as forças do governo federal estarem voltadas para o enfrentamento da pandemia e para dizer à sociedade que a vida de cada brasileiro vale igual, o governo faz uma reforma e arruma uma crise com as Forças Armadas? Isso é muito assustador e dá a dimensão do grau de degradação do país. Muitos nos perguntamos o que realmente está acontecendo.

Que precedentes históricos devem ser levados em conta na hora de analisar o estremecimento da relação entre Bolsonaro e a agora ex-cúpula das Forças Armadas?

Se você olhar, do governo Deodoro da Fonseca até o governo Geisel, você tem umas 15 tentativas de intervenção militar no Brasil, duas deram certo e liquidaram a democracia: o Estado Novo, em 1937, e a ditadura militar, em 1964. Desde a redemocratização, não temos esse quadro de tensão entre Planalto e Forças Armadas. Se o ministro da Defesa precisa dizer que as Forças Armadas são uma instituição do Estado republicano, isso significa que alguém estava forçando para que não fosse. Por outro lado, as Forças Armadas são politicamente heterogêneas. Isso inclui diferença de arma, geração e carreira; também possui interesses próprios e capacidade de promovê-los. Gostaria de entender o que está acontecendo dentro delas. No período Geisel, por exemplo, o projeto de abertura era defendido por um setor, mas houve uma reação muito forte contra essa abertura. Essa reação culmina com uma tentativa de golpe militar em 1977, com Sylvio Frota, através de um pronunciamento que buscou insuflar as tropas contra Geisel. Ele era uma das lideranças mais importantes do setor mais reacionário das Forças Armadas. Às vezes, me parece o mesmo filme. No manifesto, Frota faz a defesa do alinhamento incondicional com os EUA, ataca Geisel pela aproximação com a China e por críticas a Israel. Seriam provas de uma “escalada socialista” no Brasil, como ele diz. Também reclama que Geisel é complacente com as críticas da mídia às Forças Armadas e permite propaganda subversiva. Tem um caldeirão ideológico no pronunciamento dele que vale a pena olhar. Recém promovido a capitão, o general Augusto Heleno era seu ajudante de ordens.

Merval Pereira:  Não será fácil usar as Forças Armadas para autogolpe

A senhora se pergunta se o discurso e as pretensões de Bolsonaro de politizar as Forças Armadas têm algum respaldo dentro do mundo militar ativo?

Minha dúvida é: tem fissuras hoje nas Forças Armadas? Se sim, quais são essas fissuras? Tem alguma cunha sendo metida dentro das Foças Armadas, no sentido de buscar adesão nas baixas patentes para um projeto de poder? Isso já aconteceu no passado, tivemos a revolta dos marinheiros, dos sargentos, entre outras. Na ditadura, tivemos fissuras, que vieram dos setores mais ideológicos das Forças Armadas. Não quero saber se tem partidários do presidente Bolsonaro, quero saber se tem fissuras.

Até agora, o que a senhora responderia a essa pergunta?

Se ligarmos para o passado, para entender o que estamos vendo hoje, ele nos dirá que as Forças Armadas não são homogêneas, já se dividiram, existe uma tradição de intervenção política, e já se manifestaram de diferentes maneiras. Posso supor que a força institucional, pelo que tudo indica, está sendo demonstrada. Mas e as patentes inferiores? O presidente tem uma atuação frequente, uma presença que não é comum entre chefes de Estado em formaturas militares. Até agora, o silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Bolsonaro não tem tropas ao seu redor, tem muito militar da reserva. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia. O general (Pedro Aurélio) Góis Monteiro, um dos mais importantes da história do Exército brasileiro, responsável pela grande modernização das Forças Armadas nos anos 30, dizia que o Exército é o grande mudo. Temos de lembrar do Góis Monteiro, enquanto estiver mudo, é bom.

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Semana passada, representantes do governo comemoraram o golpe de 1964...

Existe uma ideia de que Bolsonaro constantemente evoca a ditadura. Mas não é a ditadura, ele evoca um momento da ditadura, os anos 70, o período mais violento e repressivo. Se você observar a história dele e dos generais que estão em torno dele, são todos formados nos anos 70, por coronéis instrutores que vieram da repressão à luta armada, principalmente no Araguaia. A nostalgia não é da ditadura, é do porão.

Quais são os riscos que a democracia brasileira corre hoje?

A vertente dessas pessoas que mencionava antes foi derrotada por Geisel nos anos 70, derrotada pela abertura e o início da transição democrática. Eles poderiam, e aqui estou especulando, alimentar um projeto messiânico. Isso significa um projeto de poder, no mínimo, autoritário. Estamos lidando com um pensamento muito autoritário, e não é uma aventura, tem uma história.

Reforma:  Bolsonaro troca seis ministérios para atender Congresso e aproximar Forças Armadas

O presidente disse que joga dentro da Constituição, mas que outras autoridades atuam no limite.

O projeto autoritário do governo corrói por dentro a democracia. A novidade é essa. Todas as vezes que a democracia sucumbiu no Brasil foi por força de golpe de Estado. Hoje, temos um processo de corrosão, dentro das instituições, das agências. Cada vez que as instituições reagem a esse projeto, por exemplo o Supremo Tribunal Federaç (STF), elas se enfraquecem. Isso esgota a energia das instituições. Exauridas, elas vão perdendo capacidade de reação. Outro mecanismo de corrosão são gestões muito incompetentes dentro de agências do Estado, como foi a do Ministério da Saúde. Lembro que em janeiro de 2019, Bolsonaro tinha acabado de tomar posse, e fez um discurso num jantar em Washington no qual ele diz que seu governo não vai construir nada, vai desconstruir. Tem método, e está em ação.

Hoje, esse projeto de poder está acuado?

Não vejo esse projeto acuado, ele está em pleno funcionamento. Tenta-se impor, ainda, uma nova língua que parece saída diretamente das páginas do livro “1984”, de George Orwell: a apropriação das palavras e a inversão de seu significado. Ditadura militar significa liberdades democráticas; os inimigos da democracia se dizem vítimas de ditadura; liberdade de expressão virou licença para delinquir. É um processo lento, e não ocorre apenas no Brasil. Acontece na Hungria, na Polônia, Venezuela, os Estados Unidos de Trump, Índia. Tem um padrão, um modo como governantes com vocação autoritária, eleitos democraticamente, agem para corroer por dentro as instituições democráticas. O que me preocupa é que as instituições não se defendem sozinhas. Falta uma reação da sociedade, mesmo na pandemia, a sociedade pode ser criativa, e não se pode falar só na internet, é preciso falar na cena pública. Existem, por exemplo, movimentos para defender um luto para os brasileiros mortos na pandemia. A sociedade também deve dizer que a democracia é um valor e não abriremos mão dele. É preciso pensar formas de expressar o respeito à nossa democracia. Como diz a música de Aldir Blanc, uma estrela é um incêndio na solidão. A democracia não acontece na solidão.


Merval Pereira: Autogolpe

A melhor resposta da democracia americana ao autogolpe que o (ainda?) presidente Donald Trump tentou ao incentivar seus militantes a impedir a formalização pelo Congresso da eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos seria utilizar a 25ª emenda para não deixa-lo continuar no cargo por incapacitação física, ou impedi-lo, com o apoio da Câmara, que tem maioria Democrata, e do Senado, com maioria Republicana.

“Autogolpe” é como o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, classifica a invasão do Congresso em entrevista à BBC em espanhol. Consequência de "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump. Também foi um assunto polêmico desde que, na campanha presidencial, o candidato a vice, General Hamilton Mourão, admitiu o ”autogolpe” como uma possibilidade no cenário político brasileiro.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares", e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Essa análise de Levitsky vai ao encontro de diversos estudos acadêmicos sobre a militarização do governo Bolsonaro, ou a “bolsonarizacao” dos quartéis, que estamos discutindo nos últimos dias. Até ontem, podíamos especular sobre a possibilidade de termos aqui os acontecimentos decorrentes da negação de Trump em aceitar a derrota na eleição presidencial. Mas Bolsonaro deixou claro, ao apoiar Trump nas acusações de fraude nas eleições americanas, que pode haver, sim, uma rebelião como a que o presidente americano organizou.

Ao dizer que podemos ter coisa pior, se não houver cédula física nas próximas eleições, ameaça e pressiona a Justiça Eleitoral. Especulamos sobre o assunto quando ele, no início do governo, tentou várias vezes desmoralizar o Congresso, o STF, a imprensa independente, e seus militantes mais radicais atacaram com fogos de artifício o STF. Também quando fez comício contra as instituições em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, numa clara provocação.

A especulação ganha foros de verdade quando ele diz claramente que vai haver problema “mais sério” entre nós. O presidente não convive com a democracia, autoritário, querendo sempre mais poder. Por isso, as instituições da democracia deveriam impedir que essa tendência autoritária se revertesse em influência nas Forças Armadas.

A “transição militar”, que deve ocorrer com a transição política para a democracia segundo Narcís Serra, acadêmico catalão e respeitado ministro da Defesa da Espanha entre 1982 e 1991, é lembrada em um estudo do cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, e Igor Acácio, doutorando em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, sobre o papel político dos militares sob Bolsonaro, publicado na edição em português do Journal of Democracy, editado pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso.

As transições militares têm três etapas: evitar golpes de Estado; remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia; o estabelecimento da supremacia civil.

Para os dois estudiosos, até há pouco o Brasil se encontrava na segunda, e ensaiava ingressar na última etapa. “O primeiro retrocesso decorrente do padrão de relacionamento engendrado por Bolsonaro com as Forças Armadas é óbvio: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa”, diz o estudo.  

Para os autores, “estamos correndo o risco de voltar à primeira etapa da transição militar, pois, no primeiro semestre de 2020, a agenda política brasileira foi marcada por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. O terceiro retrocesso : as tendências recentes do sistema internacional, com crescentes tensões dentro e fora do entorno estratégico brasileiro, podem encontrar o país sem consenso social e político para canalizar recursos para os projetos das Forças Armadas. (Amanhã, sugestões para superar os retrocessos).


Celso Rocha de Barros: Bolsonaro merece ser preso

Durante a pandemia, presidente tentou autogolpe e aparelhar a Polícia Federal

A edição da revista piauí deste mês traz uma matéria, assinada por Monica Gugliano, com o título “Vou Intervir!”. Ela conta a história de uma reunião de 22 de maio, no Palácio do Planalto, em que Bolsonaro teria decidido mandar tropas para fechar o STF.

O plano seria substituir os 11 ministros por 11 puxa-sacos de Bolsonaro, por tempo indeterminado. Uma quartelada vagabunda raiz, nada dessas sutilezas de lenta corrosão democrática “Steven Levitsky” de que eu vivo falando aqui. O presidente teria sido dissuadido pelo general Heleno, que, para apaziguá-lo, soltou uma nota ameaçando o STF.

A princípio, o governo poderia ter desmentido a matéria, que é baseada em depoimentos concedidos off the record. Nessa situação, cabe ao leitor decidir se confia na reputação da revista —que, no caso da piauí, é impecável.

Entretanto, entre os bolsonaristas a desconfiança com relação à imprensa é generalizada. Se o governo quisesse desmentir a matéria, poderia tê-lo feito e considerado o assunto encerrado dentro da bolha que o elegeu.

Não desmentiu.

Houve quem interpretasse que o conteúdo da reunião vazou por interesse do governo, para avisar que o golpismo ainda está vivo. Se for, foi desnecessário: era só mandar o pessoal ler minha coluna, sempre digo isso.

Houve quem suspeitasse que o general Heleno vazou para parecer moderado. Houve ainda uma suspeita de que o governo teria vazado o conteúdo da reunião de propósito, para depois desmoralizar a imprensa com um desmentido (uma gravação, por exemplo). É triste viver em um país em que essa suspeita não é absurda.

De qualquer forma, a revelação da piauí não teve repercussão política nenhuma. E a explicação é simples: em geral, só se admite em voz alta aquilo de cujas consequências práticas se está disposto a arcar.

Muito antes da matéria da piauí, todo mundo já tinha visto Bolsonaro tentar o autogolpe em 2020. Mas, se você disser em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe, a solução é impeachment e cadeia. Se você não puder e/ou não quiser fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe.

Ainda não parece haver correlação de forças para impeachment e cadeia: o centrão está no bolso do governo, o auxílio emergencial ainda deve durar alguns meses. Enquanto for assim, a turma vai fingir que não viu o golpe, os 100 mil mortos, o aparelhamento na Polícia Federal.

Talvez essa correlação de forças não mude nunca. Nesse caso, a fraqueza natural humana fará com que muita gente racionalize que não foi tão ruim assim, “olha só como ele era democrata, até comprou o Roberto Jefferson, todos nós aqui sempre dissemos que isso era a marca do democrata, ninguém aqui nunca reclamou de quem comprava o Roberto Jefferson”.

Eu, aqui, não vou racionalizar isso, não.

O dia de trabalho de Bolsonaro durante a pandemia de 2020 se dividiu entre organizar um golpe de manhã, aparelhar a Polícia Federal de tarde e demitir o ministro da Saúde no telejornal da noite.

Se esses crimes ficarem impunes, prefiro viver com o incômodo dessa injustiça e esperar a maré virar. Se não virar, levo o incômodo comigo até o fim. Não tenho como fazer acontecer, mas deixo registrado para os leitores do futuro: em 2020, nós sabíamos que Bolsonaro merecia ser preso. Todos nós sabíamos.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)