Augusto de Franco

Democratas liberais, em quem votar em 2022?

Augusto de Franco / Democracia Política e novo Reformismo

Democratas liberais não esperam que as mudanças sejam feitas de cima para baixo a partir de um líder escolhido para chefiar o governo. A democracia liberal não é propriamente sobre governo e sim sobre controlar o governo a partir da auto-organização da sociedade.

Por isso, o que nós - os democratas liberais - desejamos é um chefe de governo que assegure um ambiente democrático para que a sociedade, diretamente e por meio de seus representantes eleitos, introduza inovações políticas que, salvaguardada a democracia que temos, permita a continuidade do processo de democratização para que alcancemos as democracias que queremos.

Dito isto, fica claro que a opção dos democratas para chefiar o governo não pode ser manter ou recolocar na presidência um populista, seja um populista-autoritário de extrema-direita (como Bolsonaro), seja um neopopulista de esquerda (como Lula). Líderes populistas, pela sua alta gravitatem, são espécies de buracos negros que introduzem perturbações no campo social, engolindo as energias da sociedade.

Pela sua própria natureza, caudilhos e condutores de rebanhos populistas, desarmam continuamente a sociedade democrática para que ela não possa cumprir o seu papel de controlar o governo e de realizar mudanças moleculares que permitam a continuidade do processo de democratização. Sua busca constante por hegemonia se contrapõe aos legítimos desejos de autonomia de pessoas e comunidades.

Também fica claro, por razões semelhantes, que não se pode entregar a chefia do governo a qualquer líder antipolítico, que pretenda implantar cruzadas de limpeza (como Moro). Nenhuma cruzada de limpeza - seja étnica, ética, religiosa ou nacional - resultou em mais democracia. Pelo contrário, essas iniciativas, em geral moralistas e punitivistas, em qualquer lugar do mundo ou época da história em que foram tentadas, constituíram-se como antessalas de governos mais autoritários.

Via de regra toda antipolítica de limpeza - como o restauracionismo robespierriano - exige a terra arrasada para começar de novo, separando os bons dos maus e com isso sacrificando as liberdades em nome da pureza ou da segurança.

Afastada essas três tentações messiânicas, qualquer candidato que não seja populista ou punitivista - que se comprometa a manter a democracia realmente existente, sem tentar enfrear a continuidade do processo de democratização - é bem-vindo.

Não é necessário que tal candidato seja um democrata radical (quer dizer, liberal - no sentido democrático original do termo). Pode ser um democrata eleitoral ou liberal formal que não queira dar um golpe de Estado (rápido, com tanques nas ruas, ou lento, por erosão da democracia).

Pode ser qualquer um que não queira transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral ou mesmo paralisar o processo de democratização para que nossa democracia eleitoral não chegue a ser uma democracia liberal.

Pode ser qualquer um que não queira usar seu cargo para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado por um partido ou por algum movimento para se delongar no governo.

Pode ser qualquer um que não queira, a partir do Estado, educar a sociedade.

O melhor é que não seja alguém muito carismático, que ocupe excessivamente a cena pública com seu protagonismo, sufocando os demais atores e suas iniciativas.

O ideal é que seja alguém discreto, que cumpra suas funções constitucionais e que seja como aquele juiz que pouco aparece numa partida. Governos existem para servir a sociedade e não para tomar o seu lugar.

Sendo assim, não estaríamos mal-servidos com (em ordem alfabética) Amoedo, Doria, Eduardo Jorge, Huck, Leite, Maia, Mandetta, Marina, Meirelles, Roberto Freire, Rossi, Tasso, Tebet - entre outros. Ou até, como última alternativa, com Ciro (ainda que isso possa significar ter que assinar um contrato temporário com o século 20).

*Consultor, palestrante e escritor


Augusto de Franco: Sinais de envenenamento da democracia

Uma das descobertas mais importantes dos estudos (de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) sobre a terceira onda de autocratização em curso é que 70% dos esforços de autocratização são feitos por meios legais (1).

Desde que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial – ocorreram em todo o mundo. A maioria não envolveu violência física. Ou seja, em mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as instituições funcionando).

As democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico, por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição, fechar as instituições (e empastelar a imprensa).

Tanques nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar ocorrendo normalmente.

Ah!… mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a esta pergunta é preciso entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições (2).

Todavia, mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos do nosso déficit de democratas.

Para onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando as democracias lentamente? E que sinais são esses?

Recolocando a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo (as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da “doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.

O Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura para cuidar da segurança da Microsoft.

É por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.

É justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia (3).

Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas (4).

Alguns sinais de envenenamento da democracia

Se houvesse um número suficiente de democratas, alguns sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia teriam sido percebidos por uma parcela maior de pessoas e teriam alertado a sociedade sobre os perigos que está correndo.

Quais seriam esses sinais? Vão abaixo alguns exemplos. O primeiro deles – o marco zero de qualquer processo de desconsolidação da democracia – é o crescimento de uma retórica autoritária por parte de líderes emergentes que conseguem infectar a esfera pública; e o último, que resume tudo, é a dilapidação progressiva do estoque de capital social.

Tirando os itens mais óbvios, como os ataques à imprensa profissional, o surgimento de propostas de armamentismo da população (não apenas para defesa pessoal ou como política de segurança pública e sim como preparação para combater algum inimigo interno) e o florescimento de seitas fundamentalistas que misturam religião com política, cabe examinar aqui o que é menos óbvio ou menos percebido pelas análises políticas.

Registre-se que o caso brasileiro tem uma singularidade em relação a outros processos de autocratização da democracia que estão ocorrendo no mundo atual. Aqui há, historicamente, a permanência da tutela militar sobre o poder civil e a presença de forças armadas (ou policiais) possuídas pela ideologia do “inimigo interno”. É alto o grau de aparelhamento do governo por oficiais das forças armadas (sendo altíssima a porcentagem de militares da ativa ou da reserva que ocupam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões). Além disso, oficiais das forças armadas, da ativa ou da reserva, emitem declarações políticas tentando intimidar ou pressionar as instituições civis (como os tribunais superiores e o parlamento). Não vamos tratar agora, porém, dessa particularidade.

Mas estes – ataques à imprensa, armas e munições para abastecer milícias, tutela militar e militarização – não são sinais de envenenamento lento da democracia. Já são ofensivas abertas e declaradas à democracia. Vamos examinar aqui apenas sete sinais, portanto:

1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia.

2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.

3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).

4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).

5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.

6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.

7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.

Vamos examinar a seguir cada um desses sinais.

1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia

Como já foi dito, tudo começa com a retórica. É sempre o primeiro sinal. Se candidatos,  governantes ou representantes das forças políticas que o apoiam, têm a coragem de vir à esfera pública proferir ideias autoritárias (ainda que sejam só ideias), então isso – se não for um ato isolado, episódico, marginal, mas uma prática sistemática – é um indício de que um processo de autocratização está em curso.

“Ah! Mas é pura retórica” – argumentam as pollyannas que sempre pontificam nessas horas. Nada disso. Retórica é política. Se há a presença de uma retórica autoritária é porque já há uma política autoritária (às vezes em embrião).

O discurso intolerante é um sintoma de que uma guerra (contra a democracia: e a guerra, qualquer guerra, até mesmo a política praticada como continuação da guerra por outros meios, já é contra a democracia) está chegando. Quando as palavras começam a ser usadas como armas para atingir as instituições e os procedimentos democráticos, alguma coisa muito ruim está vindo. Tudo começa com a fala.

Se Jair Bolsonaro, quando era deputado, ao fazer apologia da ditadura e da tortura e falar em matar adversários políticos – tudo “pura retórica” – tivesse sido punido, talvez hoje não estivesse capitaneando, como presidente da República, a depredação da democracia no Brasil. Isso nos remete diretamente ao Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper (1945): “A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância” (5).

Diz-se que a democracia é o tipo de regime onde é lícito discordar publicamente do próprio regime. E que atos ilícitos em uma democracia são aqueles que levem a ações concretas que ponham a democracia em risco real e iminente. Este é um erro muito comum, sobretudo sob a terceira onda de autocratização em que vivemos. Pois como definir  “risco real e iminente” numa época em que as democracias não caem mais por golpes armados, mas são derruídas lentamente, em alguns casos até sem violar explicitamente as leis e rasgar as constituições. Numa época como esta, quando os regimes democráticos são vítimas de um envenenamento diário, baseado – antes de qualquer coisa – em retórica autoritária e propaganda da intolerância, não vale mais o velho argumento principista de que vale tudo “se for só retórica”.

Argumentar, em termos teóricos, contra a democracia, é lícito, por certo, em democracias. Mas não fazer propaganda da ditadura, do fechamento do parlamento, da prisão dos membros dos tribunais, da volta de leis de exceção. Isso não é liberdade de opinião e sim apologia da ditadura. Apologia de ditadura não é liberdade de opinião: é crime. Pergunte-se a qualquer um na Alemanha se fazer apologia do nazismo é liberdade de opinião. Apologia do fim da liberdade de opinião não pode ser encarada como liberdade de opinião. Por isso a pregação da intolerância não pode ser tolerada.

O discurso intolerante pode ser detectado por perguntas simples. No caso brasileiro atual elas chegam a ser óbvias (6). Não é por falta delas que não se detecta precocemente a autocratização do regime e sim porque não há uma visão clara das condições para que uma democracia não se desconsolide. E não há, entre muitas outras razões, porque os populismos tomaram de assalto a esfera pública de opiniões.

O fato é que todos os populismos, digam-se “de esquerda” ou “de direita”, usam e abusam da retórica antissistema. Querem jogar o povo (quer dizer, seus seguidores) contra o sistema (o establishment, representado pelas elites). O problema é quando o sistema que denunciam é o sistema democrático. Aí é necessário acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.

Antes de qualquer coisa é necessário entender o que são os populismos contemporâneos. Não é a velha demagogia, que raramente ameaça de morte à democracia. Se a democracia não pudesse metabolizar os demagogos, fisiológicos e corruptos que sempre aparecem, então nunca teria havido democracia. O que a democracia não consegue metabolizar é um grande aumento de populistas antidemocratas, i-liberais e majoritaristas – que são uma forma contemporânea e maligna de populismo.

Populistas contemporâneos caracterizam-se por esposar as seguintes crenças: 1 – A sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do establishment (as elites); 2 – A polarização (elites x povo) deve ser encorajada. Os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo); 3 – As minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.

Definitivamente, daí sai não política, mas guerra. Ora, a guerra é o contrário da democracia (que é um modo pazeante, ou não-guerreiro, de regulação de conflitos): seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política como continuação da guerra por outros meios (na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A predominância ou a incidência relevante de uma política como guerra do “nós” contra “eles” é um sinal de desconsolidação da democracia.

Quando uma força política populista (dita de esquerda, de direita ou de extrema-direita) consegue alcançar, digamos, uns 20% de adesão, já é sinal de que a democracia foi envenenada (e pode vir a se desconsolidar).

Mas se houver dois populismos (ditos “de esquerda” x “de direita”) polarizando o cenário político, então é sinal de que a democracia foi seriamente comprometida. Porque a polarização tende a marginalizar quem não está em um dos polos. Ela deforma o campo de tal maneira que uma partícula qualquer não pode ter uma trajetória livre nesse campo: escorrerá por creodos, por sulcos já cavados, indo parar em um dos polos, excluindo os democratas e, no limite, defenestrando-os da cena pública.

Quando um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar. Cabe registrar que o conceito de ‘centro’, aqui mencionado, não é o geométrico, evocando uma equidistância entre esquerda e direita. Centro é o centro de gravidade da política. Então, repetindo, é possível afirmar que quando um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar.

Não raro, populismos ditos “de esquerda” preparam o terreno para o surgimento de populismos ditos “de direita”. No Brasil deste século, o neopopulismo lulopetista começou a envenenar a democracia com a insistência no “nós” contra “eles” e a degeneração da política como guerra. Isso tornou o ambiente propício à reação extremada e surgiu então um populismo-autoritário bolsonarista, muito pior do que o anterior. Mas o inverso também pode acontecer. Ou re-acontecer.

Uma vez a esfera pública esteja vincada pela polarização entre dois populismos, dificilmente a democracia conseguirá se recuperar. Alerta vermelho, portanto, no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).

Esta é uma falha genética da democracia dos modernos. Na democracia representativa, um dos critérios da legitimidade democrática (a eletividade) acabou se sobrepondo aos outros cinco critérios (a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade). Os populistas então encontraram uma falha no arranjo representativo (e resolveram explorá-la): descobriram que é possível usar as eleições contra a democracia.

Para falar a verdade, os oligarcas atenienses – membros da aristocracia fundiária que se contrapunham à democracia, já haviam descoberto que é possível ganhar votações (7).

O fato é que a democracia virou, para todos os efeitos práticos, sinônimo de regime eleitoral. Surgiram até visões teóricas minimalistas da democracia como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue. Se essa é a visão de democracia então pode-se fazer qualquer coisa para desconstituí-la, desde que se mantenha o processo eleitoral.

Ocorre que os regimes não-eleitorais, na atualidade, são muito poucos e estão em extinção. Os adversários atuais da democracia, salvo um outro caso exótico (como Myanmar), não querem acabar com a democracia para instaurar ditaduras de manual como a Coréia do Norte ou Cuba. Os processos de desconstituição de democracia avançam hoje para transformar democracias liberais em democracias (apenas) eleitorais e para transformar democracias eleitorais em autocracias eleitorais.

As ditaduras clássicas ou autocracias fechadas (não-eleitorais), até muito recentemente, estavam presentes em apenas 27 países. Pela classificação do V-Dem (Varieties of Democracy da Universidade de Gotemburgo), em dados de 2017 (que não se alteraram significativamente), tínhamos apenas 39 democracias liberais, 55 democracias eleitorais e 56 autocracias eleitorais (que tendem, estas últimas, a crescer).

Quer dizer, a tendência aponta para o surgimento de regimes autoritários (autocracias) com a manutenção – não mais com a abolição – do processo eleitoral. Para lá caminharam Rússia e Turquia. Para lá caminham Hungria e Polônia. E para lá se tentou levar os Estados Unidos e ainda se tenta levar o Brasil.

O maior perigo hoje para os regimes democráticos é o uso da democracia contra a democracia. A subversão da democracia por meios legais, com a manutenção dos processos eleitorais. Quando populistas são eleitos é bom acender o alerta amarelo. Se eles são reeleitos, é caso para alerta vermelho no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).

Este é outro indicador de depredação da política (democrática). É um ataque insidioso, uma vez que ninguém pode, em sã consciência, ser a favor da corrupção ou colocar-se contrário à luta para coibi-la.

Cruzadas de limpeza nunca resultam em mais-democracia. Cruzadas de limpeza da política – animadas por conclamações do tipo: “vamos caçar os corruptos” – nunca conferem à política a tarefa de consertar os erros da própria política. Querem reparar as mazelas da política por cima da política (e por fora da democracia) – muitas vezes a partir de estamentos corporativos do Estado. São, assim, antipolíticas.

Em geral as cruzadas de limpeza ética da política são tentativas de reeditar o jacobinismo, o terra-arrasadismo e o restauracionismo robespierriano. Exploram e instrumentalizam o moralismo da população, vendendo a ideia de que as pessoas estão nas péssimas condições de vida em que estão porque alguém está desviando e embolsando o dinheiro da saúde, da educação e de outros serviços sociais prestados pelo Estado. Investem no punitivismo, apoiando-se no ressentimento social, no desejo de vingança e na vontade de revanche (para “dar o troco”). Quando parte do público que acompanha a obra de limpeza entra em transe punitivista – vê uma cabeça rolar e só se satisfaz quando mais uma cabeça rola, e mais uma, e mais uma… – então é sinal de que a espiral da vingança já está instalada.

A grande inspiração para essas cruzadas – o jacobinismo da revolução francesa – não tinha qualquer compromisso com a democracia. Queria arrasar a terra para restaurar o mundo a partir do zero, de modo autocrático. O famoso discurso parlamentar de Robespierre, de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção, dominada pelos jacobinos, deixa claro que se trata de instaurar processos de exceção, abrindo mão dos ritos jurídicos e do contraditório, apressando a condenação e a execução de Luís XVI: “Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós” (9). Um mês depois (em janeiro de 1793), Luís XVI seria executado na guilhotina. Logo em seguida, ainda no verão de 1793, o jacobino Marat seria assassinado pela aristocrata Marie-Anne Charlotte de Corday d’Armont. Robespierre então voltou a discursar: “Que o gládio da lei caia, que seus assassinos, que seus cúmplices, que todos os conspiradores pereçam. Que o sangue deles seja derramado para satisfazer a alma do mártir da liberdade. Nós o exigimos em nome da dignidade nacional ultrajada” (10). A partir daí instalou-se o Terror, e as cabeças começaram a rolar em julgamentos sumários sem provas.

As duas principais cruzadas contra a corrupção foram, nos últimos tempos, a operação Mani Pulite, na Itália dos anos 90 e a Operação Lava Jato, no Brasil a partir de 2014. Elas seguiram mais ou menos o seguinte roteiro: a) Deslegitimação do sistema político (que de tão apodrecido já não pode mais tomar medidas para sua própria restauração); b) Crítica à ineficiência ou excesso de liberalismo do sistema judicial e das leis (que seriam ineficazes para combater a corrupção); c) Prisões antes do julgamento e coação dos presos para forçar delações; d) Vazamentos para a imprensa (para conquistar a simpatia dos meios de comunicação e o seu apoio e formar uma opinião pública favorável aos seus procedimentos heterodoxos); e) Criação de movimentos sociais em apoio à cruzada de limpeza ética; e f) Constituição de uma força política com características jacobinas e restauracionistas após a terra-arrasada (de preferência com a cruzada lançando seus próprios candidatos nas próximas eleições: o que de fato aconteceu na Itália e pode acontecer no Brasil) para conquistar o poder de Estado (11).

Trata-se de um engano e de uma maneira de enganar a opinião pública. Nem a situação de penúria da população é consequência (a não ser em pequeníssima parte) do roubo dos corruptos, nem a corrupção destrói a democracia. Não há um só caso na história de um país democrático que tivesse virado uma ditadura em razão do aumento do número de corruptos por metro quadrado.

Como já foi dito anteriormente, a corrupção endêmica na política é metabolizável pela democracia: embora a enfraqueçam ou diminuam a sua qualidade, não a eliminam. Ao contrário, não raro, líderes honestos, verdadeiros Varões de Plutarco, podem acabar instaurando regimes autoritários: o exemplo mais eloquente são os autocratas espartanos que, aliás, financiaram, e operaram mesmo, em 411 e 404 a.C., dois golpes contra a democracia ateniense, que consideravam um regime de veadinhos e ladrões (sempre brandindo o espantalho do “corrupto” Péricles, não por acaso o principal expoente da democracia).

Mas as cruzadas de limpeza não ocorrem apenas contra a corrupção na política. Elas, às vezes, têm caráter de classe. As revoluções russa e chinesa promoveram verdadeiros massacres para limpar o país dos elementos capitalistas remanescentes. Também podem ocorrer por motivos étnicos ou nacionais, como na perseguição aos judeus na Alemanha nazista, na guerra da Bósnia e em vários genocídios africanos. Nestes casos são bem piores, considerando-se suas consequências anti-humanas. A origem de todas, entretanto, repousa na mesma ideia de pureza ou de purificação que seria necessária para preparar uma restauração do mundo. A matriz desse pensamento pode ser encontrada no pensamento totalitário de Platão que, por sua vez, deita raízes no tribalismo patriarcalista dório (Esparta, Creta e Siracusa) e nas urdiduras sacerdotais que inauguraram o modo próprio de pensar do patriarcado (12).

Em todo caso, quando aparece uma cruzada de limpeza, seja qual for seu pretexto, pode-se acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia. Coisa boa não virá na sequência.

5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.

Como já foi dito no artigo As falhas genéticas da democracia (13), a democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.

Esta falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas, acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de regulação de conflitos.

De qualquer modo, o assunto requer um tratamento mais aprofundado que extravasa o escopo (e o tamanho) deste artigo. Um texto resumo da problemática é A abolição da opinião pública pelos populismos, mas existem muitos outros (14).

Por ora, é suficiente ver que se há esses ataques sistemáticos, promovidos por alguns hubs (poucas centenas são suficientes) de uma rede descentralizada e tendo como correia de transmissão milhares de pessoas-bot (que, por sua vez, também usam bots), é sinal de que a democracia está indefesa. Alerta vermelho em nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.

Em geral, presta-se pouca atenção a esse sinal. Mas ele é um dos mais importantes. Basicamente, a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.

Existem regras não escritas que não devem ser violadas, nem mesmo em contendas acirradas. Alguns exemplos: √ Aceitar a derrota; √ Parabenizar o vencedor; √ Não tripudiar sobre o derrotado; √ Não mentir; √ Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota; √ Não tentar mudar as regras do jogo durante o jogo; √ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude; √ Não deslegitimar o adversário; √ Não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”); √ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus); √ Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário; √ Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso; √ Fazer oposição leal.

Se estas regras não escritas começarem a ser violadas – no todo ou em grande parte, como fez Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro está repetindo no Brasil – então é sinal de que a democracia está em risco. Alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.

7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.

A melhor maneira de detectar precocemente o avanço do autoritarismo é monitorar o fluxo de capital social. Se ocorrem instabilidades ou perturbações nesse fluxo é sinal de que há uma corrente subterrânea alterando profundamente a “produção” de capital social, antes que o seu estoque decaia perceptivelmente. Infelizmente, não temos ainda como fazer isso. Não há um consenso sobre quais seriam os indicadores de capital social e, muito menos, sobre os sinais que indicariam variações nos fluxos interativos da convivência social (pois é deste fluxo que se trata) quando o processo de autocratização ainda é subterrâneo (15).

Alguma coisa já se sabe, porém. Sabe-se, em primeiro lugar, que abaixo de certo nível de capital social nenhuma democracia pode perdurar. O livro pioneiro de Robert Putnam (1993) sobre as tradições cívicas na Itália moderna foi importante, além de tudo, pelo título: Making democracy work.

Sabemos também, em segundo lugar, que o capital social diz respeito aos padrões de convivência social, quer dizer, à configuração da rede social existente e à fenomenologia da interação que nela se manifesta. Quando algum processo de autocratização está em curso, a rede social que suporta (a palavra não seria bem essa, mas vá lá) a democracia começa a se esgarçar – e a fenomenologia da interação que nela se manifesta se altera – antes que isso seja percebido como mudanças nas instituições. Um indicador perceptível disso é que há um decréscimo na inovação social: os inovadores desaparecem, os atalhos entre seus clusters se desfazem e coisas novas deixam de ocorrer no mesmo ritmo com que ocorriam. Outro indicador é o aumento dos graus de belicosidade (ou de comportamento inamistoso) na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos, com um clima de “guerra fria” instalando-se em localidades e setores. Este comportamento adversarial atravessa inclusive as famílias e outras formas primárias de sociabilidade (como os grupos de amigos e colegas de trabalho e as vizinhanças residenciais, como condomínios, ruas e bairros).

Em terceiro lugar, sabemos que o capital social pode ser dilapidado – ou mantido abaixo de certos níveis ótimos para a continuidade do processo de democratização – pela manutenção de políticas públicas de oferta estatal centralizada, assistencialistas, clientelistas. Ainda que isso não seja decisivo para autocratizar a democracia, seu resultado é o enfreamento do processo de democratização. Indiretamente a democracia perde credibilidade quando não consegue mais responder tempestivamente aos anseios das pessoas, parecendo algo atrasado, anacrônico e inútil (o que é sinal de desconexão e desconsolidação democráticas).

Infelizmente, porém, quando conseguimos detectar, mesmo indiretamente, sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia, é porque um processo de autocratização já está em curso. Quando percebemos que a democracia poderá ser envenenada é porque ela já foi envenenada. Ou seja, não temos ainda um bom sistema de detecção precoce. Mas é necessário continuar trabalhando nisso.

*Augusto de Franco,escritor, palestrante e consultor, com várias dezenas de importantes obras

Notas

(1) Cf. Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019), Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?, Democratization, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029.

(2) Um estudo empírico recente mostrou que das 47 vezes que um líder populista assumiu o poder (via eleições) entre 1990 e 2014, em apenas oito casos (17%) ele deixou o cargo depois de perder eleições livres e justas: em geral os líderes populistas deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Além disso, eles duram mais no cargo (duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas e são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos). Mas tem mais: no geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro  vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas. E ainda: mais de 50% dos líderes populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles sobre o poder executivo. Por último, os populistas atacam os direitos individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de 7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% – sem que nenhuma dessas três coisas deixe de existir. Confira Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018), The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment, Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018.

(3) Foa e Mounk (2017) escreveram que “o fenômeno da desconsolidação democrática é conceitualmente distinto das avaliações sobre quão democraticamente um país está sendo governado em um dado momento. Uma importante linha de pesquisa na ciência política tenta medir o grau no qual um país permite eleições livres e justas ou oferece a seus cidadãos direitos básicos, como liberdade de expressão. Os dois trabalhos mais influentes nesse sentido são os índices Polity e o da Freedom House, que são muito bons para se medir o estado atual da democracia em determinado país. Mas a questão da consolidação ou desconsolidação democrática não diz respeito ao grau de democracia, mas à sua durabilidade”. Cf. Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2017), The signs of deconsolidation, Journal of Democracy, Volume 28, Número 1, Janeiro de 2017 © 2017 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins.

(4) Com efeito, como escrevi no artigo Não é possível salvar a democracia, “por incrível que pareça o que mantém a democracia não é o que aparece e sim o que não aparece, o que não é tão tangível (como, por exemplo, a produção e o estoque de capital social). Como se sabe, abaixo de certo nível de capital social a democracia não pode funcionar. O problema é que a democracia pode continuar (aparentemente) funcionando enquanto o capital social está sendo erodido. Este é, precisamente, o problema das nossas democracias sob ataque dos populismos”. Cf. Franco, Augusto (2021). Não é possível salvar a democracia. Dagobah (25/01/2021).

(5) Em uma nota de rodapé, em O Feitiço de Platão, primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, ele escreveu (segue a nota inteira): “A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim, podem proibir a seus adeptos, por exemplo, que deem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos”. Popper, Karl (1945). A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Vol. 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

(6) As perguntas seguintes, sugeridas pelo caso brasileiro atual, também podem valer, mutatis mutandis, para outros países e regimes – conquanto se apliquem melhor a regimes democráticos parasitados por forças populistas-autoritárias. 1 – Existem e são significativas, por parte do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de demonizar os meios de comunicação não-alinhados ao governo, acusando-os de divulgarem fake news ou de serem “os inimigos” e estarem traindo a pátria? 2 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de priorizar ou hierarquizar os sujeitos dos direitos humanos, como, por exemplo, as que afirmam que os direitos humanos devem ser destinados principalmente aos “humanos direitos” em detrimento dos “humanos tortos” ou dos “bandidos”? O candidato, o governante ou a forças políticas que o apoiam, difundem preconceitos contra os direitos humanos (por exemplo, os de que “bandido bom é bandido morto”)? 3 – Há tentativas de estabelecer uma associação automática – mesmo que feita somente através de discursos das forças políticas que apoiam um candidato ou governante – entre crime, corrupção e adesão a alguma ideologia considerada exótica? 4 – O candidato, ou governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem que o combate às visões ideológicas julgadas perversas (por uma ideologia particular, tal como esposada pelo candidato ou pelo governo) será o mesmo (ou da mesma natureza) que o combate aos crimes? 5 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de instalar uma guerra cultural (entre crenças, valores, costumes, cuja adesão cabe à decisão privada dos cidadãos)? 6 – O governante ou as forças políticas que o apoiam, qualificam como terroristas grupos sociais e forças políticas que se opõem ao governo? 7 – Há, por parte do candidato, do governo ou das forças políticas que o apoiam, manifestações de algum tipo de xenofobia e de fundamentalismo nacionalista (mesmo que disfarçado de patriotismo)? 8 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, a defesa de algum tipo de controle estatal da expressão artística, mesmo a pretexto de combater a zoofilia, a pedofilia, a sexualização precoce ou a indução ao gayzismo (que afetaria crianças e jovens)? E se não há, o candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, emitem declarações ou organizam ações de propaganda a favor desse tipo de controle? 9 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem algum tipo de intervenção estatal no ensino escolar a pretexto de coibir a doutrinação com alguma ideologia considerada exótica – ou com alguma ideologia com a qual não se identificam – em sala de aula? 10 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, estimulam a militarização da educação com a adoção de algum tipo de “religião patriótica”, que instaure um culto aos heróis da pátria? 11 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de reescrever a história (e, sobretudo, de ensinar tais falsificações históricas nas escolas ou em cursos paralelos de deformação política), enaltecendo regimes autocráticos do passado ou promovendo antigos violadores de direitos humanos (por exemplo, conhecidos torturadores) como heróis da pátria? 12 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, alegações de que não faz sentido, em uma sociedade tradicionalmente cristã (ou hindu, ou islâmica, ou judaica), que o Estado seja laico? 13 – O candidato ou o governante se apresenta – e assim é visto pelas forças políticas que o apoiam – como escolhido ou guiado por deus para cumprir uma missão redentora? Apresenta-se como defensor da civilização contra algum inimigo universal que quer destruir os seus valores e instituições – a família, a religião, a pátria ou a nação (conferindo-lhe o status de entidade acima de tudo e colocando acima de todos um deus capaz de intervir na história ou na política) contra a qual haveria uma conspiração?

(7) Se a reforma de Clístenes, em 509 a.C., em vez de instaurar uma centena de poleis (comunidades políticas, instaladas nos demoi), tivesse introduzido a eleição geral de governantes pelo voto majoritário de todos os habitantes de Atenas, jamais teríamos ouvido falar a palavra democracia. Clístenes é comumente considerado o inventor da democracia. Mas a democracia não é invenção de ninguém. Ele não tinha a menor noção das consequências da sua reforma que substituiu o genos (os clusters das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo demoi (os cerca de cem distritos onde se formaram poleis, comunidades políticas). Aliás, a reforma de Clístenes só vigorou mesmo cerca de meio século depois. Os oligarcas de Atenas continuaram dominando as assembleias e elegendo seus representantes. Somente com a reforma do Areópago, proposta por Efialtes (antecessor de Péricles) em 461 a.C., alterou-se a composição de forças políticas na condução dos assuntos da cidade. Mas, subterraneamente, um movimento democratizante estava em curso a partir de 509 a.C. Ninguém sabe ao certo como foi introduzido o sorteio para a escolha dos membros do Areópago. Mas o sorteio foi decisivo para impedir que os oligarcas – mais organizados do que os simpatizantes da democracia (que nem sabiam o que era ou seria a democracia) – continuassem controlando os processos eleitorais. Sim, os oligarcas usavam as eleições contra a democracia. Parece óbvio. Quem está organizado para vencer eleições tem mais condições de vencer eleições. Pode-se dizer que, nos primeiros cinquenta anos, as eleições para o arcontado em Atenas foram usadas contra a democracia. Explica-se. As eleições sempre podem ser usadas como variantes de uma guerra (a “política como continuação da guerra por outros meios”). E a guerra é a autocracia.

(8) Cf. Regimes of the world (ROW): Opening new avenues for the comparative study of political regimes, por Anna Lührmann V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Marcus Tannenberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Staffan I. Lindberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden, 19/03/2018 in Politics and Governance (ISSN: 2183–2463), 2018, Volume 6, Issue 1, Pages 60–77 | DOI: 10.17645/pag.v6i1.1214.

(9) O trecho inteiro de Robespierre é o seguinte. “Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós. Vocês duvidariam daquilo que a nação acredita fortemente. Vocês seriam estrangeiros à nossa revolução e, em vez de punir o tirano, estariam punindo a própria nação… Cidadãos, trair a causa do povo e nossa própria consciência, abandonar a pátria a todas as desordens que a lentidão desse processo deve excitar, eis o único perigo que devemos temer. Está na hora de ultrapassarmos o obstáculo fatal que nos prende há tanto tempo no início de nossa carreira. Assim, sem dúvida, marcharemos juntos para o objetivo comum da felicidade pública. Assim, as paixões odiosas, que brandam muito frequentemente neste santuário da liberdade, darão lugar ao amor pelo bem público, à santa emulação dos amigos da pátria. Todos os projetos dos inimigos da ordem pública serão vexados”. Maximilien de Robespierre: discurso de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção. Cf. Gumbrecht, Hans Ulrich. As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa – Estudos preliminares para uma pragmática histórica do texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

(10) Idem.

(11) Cf. Franco, Augusto (2020). O texto de Moro sobre a Mani Pulite com alguns comentários. Dagobah (29/10/2020): http://dagobah.com.br/o-texto-de-moro-sobre-a-mani-pulite-com-alguns-comentarios/

(12) Isso já foi mostrado no artigo de Franco, Augusto (2019): Fundamentos filosóficos das teorias da corrupção. Dagobah (28/04/2019): http://dagobah.com.br/fundamentos-filosoficos-das-teorias-da-corrupcao/

(13) Franco, Augusto (2020). As quatro falhas genéticas da democracia. Dagobah (09/11/2020). http://dagobah.com.br/as-quatro-falhas-geneticas-da-democracia/

(14) Franco, Augusto (2020). A abolição da opinião pública pelos populismos. Dagobah (02/03/2020) http://dagobah.com.br/a-abolicao-da-opiniao-publica-pelos-populismos/. Pode-se ler também os numerosos artigos encontrados na seguinte busca: http://dagobah.com.br/?s=midias+sociais

(15) O conceito de capital social, com o sentido que hoje lhe atribuímos, foi cunhado por Jane Jacobs (1961) em Morte e vida de grandes cidades.  Em artigo de 2001 O conceito de capital social em Jane Jacobs já expus as razões dessa atribuição de autoria. As raízes da ideia devem ser buscadas, entretanto, em Alexis de Tocqueville (1835-1840) no seu A democracia na América. Mostrei, também em 2001, porque se trata de um conceito político no artigo O conceito de governo civil em Alexis de Tocqueville. Todavia, o conceito de capital social foi usado e ficou mais conhecido como uma noção metafórica, formulada em linguagem utilizada em teorias do desenvolvimento, para fazer referência a uma variável sistêmica que não é facilmente medida (ou sequer percebida) nas equações que tentam relacionar os diversos tipos de “capitais” tomados como fatores do desenvolvimento: os propriamente econômicos, como a renda e a riqueza (os capitais stricto sensu: capital financeiro e capital físico ou empresarial) e os demais “capitais” (lato sensu) tomados como externalidades e que se referem aos fatores humanos, ambientais e sociais (como o capital humano, o chamado capital natural e, finalmente, o capital social – que seria a tal variável sistêmica, que tem a ver com os índices de confiança e cooperação presentes em uma sociedade). No entanto, esse tipo de abordagem, que se tornou corrente quando o assunto passou a ser considerado no âmbito das teorias do desenvolvimento (ainda sob forte viés economicista e produtivista) a partir do célebre artigo de James Coleman (1988), Social Capital in the Creation of Human Capital  – e em seguida no seu tratado Foundations of Social Theory (1990) – está defasado em relação às recentes descobertas da fenomenologia da interação (sobretudo nos Highly Connected Worlds em que já vivemos no dealbar do terceiro milênio).