ateliê de Humanidades

Luiz Werneck Vianna: As velas pandas de Ulisses Guimarães

A posse de Joe Biden na presidência dos EUA, a rigor uma solenidade cívico-religiosa concebida para reanimar as crenças nos temas e ideais fundadores da sua sociedade, ao menos por ora afasta em todos os quadrantes os riscos para a segurança comum representados pelo que foi o governo Trump em sua versão degradada do nacional-populismo. De fato, há o que comemorar, embora não se possa desconsiderar que Trump, mesmo que amplamente derrotado nas urnas, obteve mais de 70 milhões de votos e uma legião de fanáticos seguidores, uma parte deles organizados em milícias, vistas a olho nu na tentativa insurrecional de 6 de janeiro de barrar a certificação eleitoral da vitória de Biden. E, para eles, deixou suas últimas palavras de que por algum modo, voltaria.

O augúrio fúnebre tem como ser evitado, as forças democráticas foram testadas em sua vitoriosa campanha eleitoral em que deram provas de sabedoria política, agora confirmada pela decisão de apresentar o impeachment ao senado, e sobretudo pelas medidas de impacto já efetivadas nas frentes sanitária e econômica com que se espera diluir a influência do trumpismo. O processo do impeachment, como se sabe, pode culminar com a interdição definitiva de Trump da vida política. Caso bem-sucedidas, tais intervenções benfazejas põem por terra o projeto de arregimentar em novo partido com os salvados do trumpismo, o Patriota, de óbvia má índole fascista.

Nada disso é estranho à nossa sorte. Uma das marcas do trumpismo esteve na sua tentativa de criar uma internacional reacionária, missão confiada ao ex-estrategista do governo Trump, Steve Bannon, perdoado do crime de fraude num dos seus últimos atos, que conta entre seus aderentes personagens do governo Bolsonaro e da sua família. Tal como a  Hidra de Lerna, o trumpismo tem várias cabeças e somente pode ser exterminada com a amputação delas cauterizadas as suas feridas, sem o que renascem como na mitologia. O governo Bolsonaro é um sobrevivente da debacle do trumpismo nesta nossa América Latina que reinicia seu encontro com sua história de luta por liberdades. Barrar seu caminho importa, além de outros motivos relevantes impedir que nosso país se torne um reduto da central reacionária do trumpismo nesse sub-continente.

Na hora da partida para essa navegação difícil que temos que começar mesmo que ainda incertos os resultados pela miséria da nossa política, ouvem-se as lamúrias do Velho do Restelo para que recolhamos as velas e nos conformemos ao que aí está, por que tudo pode piorar.  Mas como as velas já se enfumam, como as queria Ulisses Guimarães, e de toda parte se ouvem os brados de basta, fora já? Bem mais arriscado do que o da hora presente foi o cenário do movimento das anti-candidaturas de Ulisses e Nelson Carneiro, apenas uma manifestação de força moral, com que se abriu, mais tarde, a via para o movimento em favor das diretas já que desaguou na derrota do regime militar em 1985.

Desde Maquiavel, que estudou as grandes batalhas da Antiguidade em Arte da Guerra, ecoam as lições de que os resultados das batalhas não se podem prever de antemão, eles se decidem no fragor da luta. No nosso caso, o teatro de operações que se tem pela frente, bem distante de desfavorável, apresenta-se como propício, quer pela conjuntura internacional, quer pela catástrofe sanitária a que estamos expostos pelo governo Bolsonaro. A rota do impeachment recém-descoberta como recurso de legitima defesa da sociedade ganha o caminho das ruas com as carreatas que proliferam e o adensamento da opinião pública em seu favor. Diante da miséria política do país, entretanto, nada garante a ela um final feliz.

As longas marchas começam com um pequeno passo. Logo ali, na próxima esquina, nos espera a próxima sucessão presidencial. A envergadura da frente política que ora se ensaia, com o movimento em favor do impeachment consiste no primeiro e decisivo teste que ela enfrentará naquele momento de importância capital. Quanto mais ela se ampliar politicamente, e mais se enraizar capilarmente na vida social em ações de protesto e de recusa a um governo maligno nas lutas imediatas atuais, maiores serão suas possibilidades de dar um fim – se não conseguir antes por outros meios –  ao pesadelo atual. É verdade que nos faltam Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, mas contamos com suas histórias exemplares que bem poderiam emular o que nos sobrou.

Mas, entre tantas faltas a lastimar, não se pode deixar de contar com as novas presenças que nos vêm da vida do associativismo popular, dos profissionais e intelectuais das atividades da saúde, da nova safra de artistas populares e dos que se dedicam com brilho ao colunismo na imprensa e aos comentaristas políticos na TV e no rádio. Nesse rol igualmente devem ser mencionados os parlamentares e os partidos políticos que com sua resistência ao autoritarismo honram seus mandatos, sobretudo os ministros do STF que preservam a integridade da nossa Constituição. São eles que abastecem de oxigênio uma sociedade exangue por falta de ar.

Aos poucos se desvanecem as ameaças que nos prometiam a destruição da obra da nossa civilização, ainda incompleta e precária como se sabe, mas que aos trancos e barrancos teimávamos edificar. A resistência a este novo autoritarismo em nosso país, em meio a uma cruel pandemia, mostrou, mais uma vez, ser eficaz. Tudo somado nesses tempos sombrios, pode-se constatar que, dos salvados do incêndio com que pretendiam nos destruir, salvou-se a nossa alma da sanha de Bolsonaro, Paulo Guedes, Ernesto Araújo et caterva. Não é pouco para quem vivia como nós sob a ameaça de extinção dos nossos valores e das nossas melhores tradições.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio  


Elimar Pinheiro do Nascimento: Fios do Tempo. O impeachment é viável?

Será que o impeachment de Bolsonaro é viável? Esta é a questão que Elimar Pinheiro do Nascimento se propõe a responder hoje no Fios do tempo. A partir de uma perspectiva comparativa, tomando os exemplos anteriores dos impeachments de Collor e Dilma, Elimar do Nascimento expõe cuidadosamente as variáveis normalmente necessárias para haja a viabilidade de um processo de impeachment. Como ele mostra, uma resposta plausível depende de uma análise das relações da “opinião pública”, das ruas, dos mídias, do Congresso e do empresariado com o Governo Bolsonaro. Desta forma, tendo um olhar sociológico com um inteligente distanciamento dos interesses imediatos de militância, o autor faz uma reflexão lúcida sobre como, apesar de muitos desejarem o impeachment, tudo indica que ele é, por enquanto, inviável.

A. M.
Fios do Tempo, 14 de maio de 2020



O impeachment é viável?

13 de maio de 2020

Independentemente do julgamento que fizermos sobre o processo de impeachment já utilizado no País por duas vezes em menos de 30 anos, o assunto veio à ordem do dia quando no domingo 19 de abril o Presidente esteve presente e apoiou uma manifestação que defendia o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, em frente ao quartel general do Exército. O tema foi reforçado, em seguida, quando o Presidente pretendeu humilhar o, até então, ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, comunicando-lhe a mudança do chefe da Polícia Federal pelo simples motivo de que a corporação não estaria lhe prestando as informações sigilosas sobre processos contra os seus familiares e aliados. Um claro abuso de autoridade e desrespeito às instituições democráticas. Antes, preparou a mudança certificando-se, em conversas palacianas, do apoio do Centrão, que conta com cerca de 200 cadeiras na Câmara dos Deputados. Em troca do quê, ainda não sabemos, mas podemos imaginar. Os dois primeiros cargos já foram cedidos a esse agrupamento político: a direção do DNOS e Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional do Ministério do Desenvolvimento Regional. Mas, outros virão.

Em face dessa conjuntura, a pergunta sobre a viabilidade do impeachment tem cabimento.

Os dois casos anteriores de impeachment no Brasil mostram que pelo menos cinco condições devem ser preenchidas para que o processo, traumático, tenha sucesso: 1) estar, o Presidente, com índice de aprovação inferior a 10%; 2) ter na oposição a maioria da mídia; 3) perder o apoio da maioria dos grandes empresários; 4) perder a batalha das ruas e, finalmente; 5) ter a maioria esmagadora dos congressistas na oposição (2/3). Este último critério, aliás, só é preenchido depois que os anteriores se cumprem. Collor de Mello caiu depois de ter, nos 12 meses antes de sua queda, 48 das 52 edições das capas da revista Veja com reportagens de críticas e denúncias à sua gestão. Dilma precisou fazer um estelionato eleitoral, ter uma operação extraordinária de combate a corrupção no governo petista, que se alastrou por mais de dois anos antes de sua queda, e uma recessão econômica extraordinária no primeiro ano de seu segundo mandato, em 2015, para cair. Claro que uma crise econômica sempre favorece a perda de apoio popular e empresarial do Presidente, o que poderá ocorrer no segundo semestre deste ano. Porém, ainda não se sabe a quem a população culpará pelo recesso econômico.

Vejamos em que medida as condições, aparentemente indispensáveis a um impeachment, estão preenchidas ou em vias de o serem.

Pesquisa do jornal Folha de São Paulo, de 27 de abril, mostra que a maior parte dos brasileiros (48%) são desfavoráveis a um processo de impeachment. Apenas 45% são favoráveis. O mais importante, contudo, é que nesta mesma pesquisa, 33% aprovaram o governo de Bolsonaro. Aprovação que era de 30% em dezembro de 2019. A reprovação de seu governo é de apenas 38%. Em pesquisa mais recente, 7-19 de maio, da CNT/MDA, apoiam o Presidente 32% dos entrevistados, com queda de 2,5% desde janeiro de 2019. Ou seja, apesar de todos os feitos Bolsonaro mantém o apoio de 1/3 dos brasileiros. Dilma, às vésperas do impeachment tinha 7%. Portanto, a condição de perder, de maneira esmagadora, a luta da opinião pública não está preenchida. Ao contrário, o Presidente mostra ter um contingente de apoio de grande fidelidade. Minoritário, mas expressivo e, sobretudo, capaz de lhe levar ao segundo turno, que ele imagina ser contra o PT, o que lhe daria possibilidades reais de vencer. Registre-se que reeleição é o projeto prioritário do atual presidente.

Em relação à mídia, Bolsonaro adotou uma postura inteligente, diferentemente de Dilma e Collor. Primeiro, manteve ativa sua potente comunicação via internet, além de dezenas de comunicadores que o apoiam, não se sabe muito bem por quê. Segundo, tem tentado enfraquecer e desacreditar o canal de TV que lhe é mais crítico, e de maior audiência no País, a TV Globo, enquanto alimenta outros canais, particularmente a Record, com grupo dirigente reconhecidamente evangélico e conservador. Seus ataques constantes ao grupo Globo, que se somam às críticas dos petistas, têm como único objetivo desclassificar seu noticiário. Dessa forma, ele mantém fiel a si uma parte da mídia e veicula suficientes informações para alimentar as narrativas em seu favor, mantendo a opinião pública dividida.

Não há indícios claros, por enquanto, de perda do apoio da maioria dos grandes empresários. Pelo menos desconheço informações consistentes neste sentido. E, inteligentemente, Bolsonaro mantém seu ministro da economia, sua ponte mais segura com o mercado. Além de insistir em um discurso de retomada do trabalho, contra todas as prescrições dos especialistas, mas que agrada a maioria dos empresários.

Quanto às ruas, apenas os bolsonaristas a ocupam, com muito barulho, muitos carros e pouca gente, como as manifestações de 27 de abril e 9 de maio em Brasília. As pessoas que dele discordam, que são maioria no País, porém não absoluta (43,4% segundo a CNT/MDA), têm receio da pandemia e se manifestam apenas por panelaços nas janelas, e nas redes sociais. Fazem um pouco de barulho, mas em locais bem definidos e sem o poder de imagem que tem uma avenida paulista repleta de gente. Sem dúvida, como afirma Marcus André (colunista da Folha de São Paulo), a pandemia atrapalha.

Finalmente, com o aceno ao Centrão, Bolsonaro se prepara para uma eventual, mas improvável batalha congressual sobretudo após o fato de Lula ter dado ordens para o PT não assinar o pedido de impeachment que deputados começaram a preparar no início de maio. Não interessa ao PT a saída de Bolsonaro, pois, com ele, tem mais chances de ir ao segundo turno. De toda forma, o apoio do Centrão pode ser extremamente útil a Bolsonaro, caso os processos que correm no STF, inclusive o das denúncias de Moro, progridam de maneira desfavorável aos seus interesses. Questão que Bolsonaro tratou de reduzir ao nomear como seu novo ministro da Justiça e Segurança Pública um amigo do Presidente do STF, o ex-dirigente da AGU e forte candidato ao STF, André Mendonça, que ele denominou de “terrivelmente evangélico”.

Assim, a permanência de Bolsonaro, por enquanto, está assegurada. Em política as conjunturas mudam com rapidez, contudo, a probabilidade ainda é pequena e, no momento, inexistente.


Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (Rene Descartes, 1982), e pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). 


Como citar

NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. O impeachment de Bolsonaro é viável? Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades), 14 de maio de 2020. Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2020/05/14/fios-do-tempo-o-impeachment-e-viavel-por-elimar-pinheiro-do-nascimento/