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Ascânio Seleme: Uma andorinha só

Indicação de Kassio Marques para o STF é uma indicação do movimento de Bolsonaro para o cento: o centrão

Trata-se de uma questão de ponto de vista, mas não se pode negar que o presidente Jair Bolsonaro evoluiu desde a sua posse. No dia 1º de janeiro de 2019, o capitão era a imagem do mal usando faixa. Era um extremista de direita disposto a dar um golpe. Foi assim até outro dia, quando deslocou-se para o centro, digo, para o centrão. Até a chegada de Bolsonaro ao poder, o centrão era o que havia de mais nefasto na política. O presidente andou uma casa, se moveu do pior para o ruim.

A indicação de Kassio Marques para a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal é uma indicação do movimento de Bolsonaro. Nenhuma dúvida que se trata de uma ação de natureza política, mas é com essa argamassa que se constrói entendimentos, pontes e saídas. O presidente está buscando consolidar para si uma posição mais confortável, uma alternativa viável para o seu governo, que mais patina do que anda para frente.

O fato novo neste e em outros episódios recentes é que Bolsonaro tem ouvido mais. A escolha de Kassio Nunes é o melhor exemplo disso. Mostraram ao presidente que a indicação de um extremista, de um terrivelmente evangélico ou de um amigo despreparado para o Supremo serviria apenas para irritar os demais ministros da Corte. Sozinho, o novo ministro não conseguiria ajudar a Bolsonaro, aos seus filhos ou às suas causas. Ao contrário, sua presença de um lado poderia acabar empurrando ministros simpáticos para o outro lado. Uma andorinha só não faz verão, lembraram a ele.

Bolsonaro ouviu seus novos interlocutores, refletiu, o que, convenhamos, é coisa rara em se tratando dele, e concluiu que uma indicação errada atrapalharia mais do que ajudaria. Conseguiu rapidamente encontrar um magistrado maleável, bem aceito por todos os lados, mas ainda assim um garantista, anti-lavajatista e conservador. A indicação deixou irados os terraplanistas e ultradireitistas que o guiavam até outro dia, como o falso guru Olavo de Carvalho. Bolsonaro fez um gol.

Não se espantem se outros movimentos forem feitos. Claro que não se pode esperar evolução muito maior do que a nomeação de um moderado para o STF, mas ainda há espaço para Bolsonaro se mexer. Se ele quisesse ganhar mais alguns pontos com o grande público, poderia aproveitar e passar logo a boiada toda, demitindo os vergonhosos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores, o recém-empossado ministro da Educação e o secretário de Cultura, por exemplo. Mas não vai acontecer. O capitão gosta dos odiados e odeia os bem-amados.

Se houver mais movimentos em favor do centrão, mais fácil e lógico seria se eles acontecessem nos ministérios da área produtiva, como Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia. Claro que aí estão os melhores ministros deste governo, mas o problema é o tamanho da boca do centrão e como satisfazê-la. Quem também não pode mais se julgar garantido é o ministro Paulo Guedes. O mercado não se importaria, sobretudo se o substituto compartilhasse as ideias liberais de Guedes e não estivesse tão desgastado quanto ele.

Com o Posto Ipiranga outros cuidados teriam de ser tomados. Um deles, segundo gente que andou até outro dia à vontade no Palácio do Planalto, é não fazer a operação num dia de semana. Entre dez da manhã e meio dia de sábado, este o melhor horário para se demitir o ministro da Economia. Seu substituto liberal deve ser anunciado no mesmo comunicado. Se ação for bem trabalhada, quando a segunda chegar, o mercado seguirá seu fluxo normal, pacificado. Pode até haver uma leve oscilação da Bolsa para cima e do dólar para baixo.

Patriotas

Os generais do Palácio do Planalto são mesmo patriotas? Então por que concordam com toda barbaridade que se engendra no gabinete do terceiro andar, sem sequer demonstrar contrariedade ou constrangimento? Seus interesses aparentemente são outros, pessoais, e ajudam a desmistificar a imagem de guardiões da pátria.

Ciúmes de você

A ciumeira volta a cercar o gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão. O problema é que o general é bem mais inteligente e muito mais claro ao falar do que o capitão. E fala todos os dias. Bolsonaro odeia isso.

Os bois

Do que Ricardo Salles é capaz todo mundo já sabia. Ele nunca escondeu sua irritação com ambientalistas e sua antipatia com regras preservacionistas. O que surpreendeu no episódio dos manguezais foram os bois do Conama, que sujaram sua biografias, algumas até boas, para sempre.

Censura parlamentar

O vereador Brizola Neto, do PSOL, foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por ter erguido três cartazes durante a votação virtual do pedido de afastamento do prefeito Crivella. Eles diziam “Fora, Crivella e Edir Macedo”; “Fora, milícia” e “Impeachment já”. Por se manifestar visualmente a favor do seu voto, 21 vereadores o denunciaram por quebra de decoro. Uma vergonha coletiva. Uma espécie de pós-censura.

Luz para todos

A proposta 39 oferecida pelo GLOBO aos candidatos a prefeito é uma praga que atormenta os cariocas desde os tempos dos lampiões a gás. O assunto é tão velho quanto a taxa de iluminação pública. Mas, ficando apenas neste século, já em 2001, o jornalista Luiz Antônio Novaes, o Mineiro, não se cansava de alertar: “Cuidado ao sair à noite, o Rio é uma cidade escura, mal iluminada, o que potencializa a insegurança”.

A ciência é pop

A pandemia de coronavírus restabeleceu na consciência da maioria dos brasileiros a importância da ciência na vida das pessoas. Há muito tempo, cientistas não eram ouvidos e levados em conta de maneira tão consistente e de forma tão recorrente. O GLOBO criou uma coluna diária especialmente dedicada à ciência, todos os veículos dão hoje a ela muito mais espaço. As universidades públicas também ganharam ao serem revigoradas moralmente com o bom assédio aos seus mestres e pesquisadores.

Stand by

Fiquem prontos. Foi isso o que Donald Trump disse aos supremacistas brancos quando solicitado a repudiá-los. Só mesmo nos Estados Unidos um homem destes continua com chances de ganhar uma eleição presidencial. Se fosse fotografado com uma modelo de biquíni sentada no seu colo seria varrido do mapa. Vai entender.

Stand back

Por sorte, Trump pode também perder a eleição de 3 de novembro. O imbatível de seis meses atrás pode ter de entregar o poder a Joe Biden, escolhido pelos democratas para perder, já que no ano passado, sem pandemia e com a economia americana em modo boom, ninguém acreditava numa derrota de Trump.

Racismo no futebol

Contrariando Neymar, o presidente da federação Francesa de Futebol, Noel Le Graet, disse que não há racismo nos campos franceses. Patrice Evra, ex-jogador que atuou pela seleção francesa por dois anos, respondeu ao dirigente afirmando que há sim, e acusou Graet de ser ele próprio um racista. Segundo Evra, todas as vezes que o presidente da República ou outra estrela da política nacional visitava a concentração da seleção, os jogadores negros eram colocados nas extremidades para a foto oficial. Ao lado das autoridades, só os brancos, por ordem de Graet, disse Evra.

Fundo para jornalismo

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) lança na terça-feira um manifesto pela taxação das grandes plataformas digitais em favor do jornalismo profissional. O evento terá transmissão ao vivo pelo Facebook, uma das entidades que a Fenaj quer taxar mais pesadamente. O objetivo é usar o dinheiro recolhido para formar um fundo de fomento que poderia ser usado pelas empresas jornalísticas. Para receber as contribuições, as empresas teriam de garantir os empregos dos seus jornalistas.

Cultura e riqueza

Em Nova York, o setor de arte e cultura movimentou US$ 120 bilhões em 2019, ou 7,5% do PIB da cidade. No Rio…


Ascânio Seleme: Tirem os pés do meu pescoço

Ruth Bader Ginsburg foi uma heroína

Ícone. Foi muito apropriado o uso deste termo por jornais para designar a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg, falecida há uma semana. RBG, como era conhecida, foi uma das mais importantes figuras da Justiça americana. Mais até do que um ícone. Uma heroína que trabalhou a vida inteira para mudar a legislação nos pontos em que discriminava a mulher. “RBG transformou os papéis de homens e mulheres na sociedade”, disse a jornalista Linda Greenhouse, que cobre a Suprema Corte americana há 30 anos para o “New York Times”.

Estudante de Direito na Universidade Harvard nos anos 50, quando a escola tinha apenas nove mulheres num grupo de 500 alunos, RBG entendeu cedo que ser mulher era obstáculo para quase tudo. Seu engajamento definitivo em favor da emancipação feminina ocorreu alguns anos depois, quando, graduada, tentou obter um emprego nos escritórios de advocacia de Nova York. Foi rejeitada por todos. “Não contratamos mulheres.” Virou professora e, depois, ativista na União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU).

Se o gatilho que disparou sua obsessão foi o fato de ela própria ter sido vítima de discriminação, é verdade que um germe já havia sido introduzido pela sua mãe, de quem ouviu um conselho que repetiu inúmeras vezes. “Seja uma dama e seja independente”. Ser uma dama significava jamais abrir mão de sua condição feminina. Ser independente queria dizer lutar por condições iguais às dos homens para se emancipar.

RBG iniciou sua carreira de advogada nos anos 70, na ACLU. Suas causas foram sempre contra leis que discriminavam mulheres. Durante anos advogou diante da própria Suprema Corte. Ela entendia que “a divisão por gêneros não ajuda a manter a mulher num pedestal, mas sim numa jaula”. Ganhou quase todas as questões que levou aos tribunais e acabou se transformando numa das maiores referências do feminismo, inspiração para homens e mulheres em todo o mundo.

Ao ser indicada para a Suprema Corte pelo então presidente Bill Clinton, em 1993, RBG passou da condição de ícone para a de pop star. Sua imagem frágil, tinha 1,50m, seu rosto fino e seus óculos grandes e grossos se tornaram parte inseparável da paisagem feminista. Estava em todas. Percebia que, quanto mais se expunha, mais passava sua mensagem. Não houve questão que tratasse da condição legal da mulher de que ela não participasse e, quase sempre, ganhasse. Fez história mesmo nas causas que perdeu.

Em 2006, a Suprema Corte julgou o caso de Lilly Ledbetter contra a Goodyear, que alegava ter recebido salário menor do que funcionários homens que exerciam função igual. Como a petição foi feita depois da aposentadoria, a Corte entendeu que o prazo caducara e negou equiparação retroativa. O voto vencido de RBG mudaria a legislação. Ela disse que as mulheres “são vítimas da discriminação salarial” e exortou o Congresso a corrigir o erro cometido pela Corte Suprema. O Congresso corrigiu o erro e aprovou lei definindo que crimes de discriminação contra mulheres nunca mais vencerão por decurso de prazo.

O trabalho infatigável de RBG ajudou a dar visibilidade a questões muitas vezes ignoradas, que poderiam resultar em aumento de riquezas e renda em todo o mundo. Um estudo do Instituto McKinsey, de 2015, demonstrou que, se as mulheres fossem incorporadas ao mercado de trabalho regular, em condições iguais às dos homens, US$ 12 trilhões (R$ 66 tri) seriam acrescidos à economia global em dez anos, um aumento de 11% para o PIB planetário.

A desigualdade de gênero é quase tão limitadora e opressora quanto o racismo. Só será derrotada se for combatida por homens e mulheres indistinta e permanentemente. Ruth Bader Ginsburg gostava de repetir uma frase da primeira feminista americana, a abolicionista Sarah Grimke (1792-1873). “Não peço nenhum favor para o meu sexo. Peço apenas aos meus irmãos que tirem seus pés dos nossos pescoços”. RBG passou sua vida tratando de tirar pés de homens dos pescoços de mulheres. Ela morreu, mas sua luta continua.


Ascânio Seleme: Fux tem razão

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux elencou cinco pontos que deverão guiar a sua gestão pelos próximos dois anos

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux elencou cinco pontos que deverão guiar a sua gestão pelos próximos dois anos. Separo um deles, que se o novo presidente conseguir implementar prestará um serviço inestimável à Justiça e ao país. Trata-se do que Fux chamou de “fortalecimento da vocação constitucional do STF”. Seu propósito é reduzir as dezenas de milhares de ações ingressadas a cada ano, reposicionando o tribunal “como uma Corte eminentemente constitucional”.

De acordo com dados citados pelo ministro no seu discurso de posse, 115 mil processos foram julgados pelo tribunal em 2017. No mesmo ano, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou 70 casos. É verdade que a nossa Constituição é muito maior que a americana, que tem apenas sete artigos e recebeu 27 emendas em 230 anos. A brasileira tem 250 artigos e 114 disposições transitórias, e em apenas 30 anos teve 100 emendas aprovadas. Mas só isso não explica a distância que separa os dois tribunais.

Fux tem razão, é preciso desentulhar a Corte. O problema é como se fazer isso. Primeiro, há obstáculos no caminho, alguns criados pelo próprio tribunal. Em novembro do ano passado, o STF derrubou por seis votos a cinco a prisão em segunda instância. Além de todas as questões políticas que aquela decisão encerra, como o favorecimento à impunidade, por exemplo, ela serviu como bandeira em favor do prosseguimento de qualquer ação até que ela alcance o Supremo. Se o criminoso fosse preso assim que um colegiado de desembargadores de tribunais regionais o condenasse, como estava estabelecido antes da decisão contrária do Supremo, o apelo a recursos seria obviamente menor.

Os clientes constitucionais do Supremo são o presidente, seu vice, os membros do Congresso, os ministros de Estado, os ministros dos tribunais superiores e do TCU, o procurador-geral da República, os chefes das três Forças Militares e os chefes de missões diplomáticas. Somam mais ou menos 900 pessoas. Ocorre que qualquer cidadão que responde por crime em ações em que membros desse grupo estiverem envolvidos acaba sendo julgado também pelo STF. Eventualmente, um ministro pode desmembrar uma ação e remeter para instância inferior o denunciado sem foro privilegiado, mas nem sempre é assim.

O Supremo também faz mal uso da súmula vinculante, preceito constitucional que dá ao tribunal prerrogativa de considerar já julgadas todas as ações que tratam de crimes reiteradamente debatidos e punidos pelo tribunal. O expediente poderia reduzir o volume de ações em curso. Mas, é absolutamente corriqueiro o atropelamento desta regra. Na semana passada, o próprio Fux pediu vista em julgamento que deveria aprovar uma súmula vinculante em questão de narcotráfico. No caso, não importa o teor da ação, mas o princípio que foi ignorado.

Há ainda questões acessórias e mesmo triviais que tornam chatos e demorados os julgamentos do STF. Como a TV Justiça, que foi criada em em 2002 em nome da transparência. Ela deixou os ministros mais maleáveis, o que é perigoso. Com a transmissão ao vivo das sessões, juízes podem ser levados a julgar de acordo com a orientação da galera, o grito das ruas. Com julgamentos públicos, muitos de importância crucial para a vida política e institucional do Brasil, os ministros podem ser constrangidos pela pressão política e popular que sofrem em tempo real.

A TV Justiça ajudou a produzir o que Fux chamou de “protagonismo deletério, que corrói a credibilidade dos tribunais, especialmente do STF”. De certa forma as sessões do Supremo viraram espetáculo e os ministros passaram a gastar muito mais tempo para ler seus votos, que foram engordados em páginas e citações. Alguns tomam horas para serem lidos e comentados. O componente “vaidade humana” é quase palpável de tão vivo nos julgamentos do tribunal. E é evidente que isso colabora com a morosidade do tribunal e o acúmulo da pauta.

Desgoverno
O governo anunciou que pode extinguir alguns ministérios, como o do Turismo, por exemplo. Não farão nenhuma falta num governo que em diversas áreas não governa mesmo. A turma do Bolsonaro não governa na Cultura, todos sabem. Aliás, se lixa para ela. Também não governa no Meio Ambiente, não se incomoda com a derrubada de árvores na Amazônia e muito menos com queimadas no Pantanal. Tampouco governa para as mulheres e para os direitos humanos e mal governa na saúde e na educação. Pode fechar ministérios à vontade, excelência, eles pouco importam.

Pauta para Lira
O centrão quer fazer o deputado Arthur Lira (corrupção, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito, violência doméstica) presidente da Câmara. Com o aval do Planalto, já está oferecendo cargos no governo aos que votarem nele. O agrupamento suprapartidário também tem prontos alguns pontos da pauta do mandato de Lira: finalizar a Lava-Jato; reduzir o papel do Ministério Público; e introduzir carência de quatro a oito anos para magistrado poder se candidatar a cargo eletivo. Um ataque explícito a quem combate a corrupção.

Agora, sim
O estado que já teve cinco governadores presos e tem um sexto ameaçado de prisão, pode agora inovar e eleger um prefeito previamente detido. É o Rio inovando e surpreendendo o Brasil e o mundo. A candidatura de Cristiane Brasil, do PTB, presa preventivamente em caso de corrupção, teve sua candidatura homologada pelo Tribunal Regional Eleitoral. O partido insistiu em indicar a encarcerada porque ela é filha do dono, quer dizer, do presidente do partido, o mal afamado Roberto Jefferson. Nada de mais, na verdade. Afinal, não foi aqui que vereadores foram eleitos dentro da cadeia?

Recomendo livros
Três bons livros que merecem sua atenção. O jornalista Pedro Doria acaba de publicar “Fascismo à brasileira”, que conta a história da criação do partido integralista brasileiro e mostra suas muitas semelhanças com o bolsonarismo. O jornalista e ex-candidato a deputado federal Ricardo Rangel colocou nas livrarias “O destino é o caminho”, em que narra sua jornada de 800 quilômetros pelo Caminho de Santiago de Compostela. E o escritor e cientista político Sérgio Abranches lançou “O tempo dos governantes incidentais”, onde conta como populistas se aproveitaram de frustrações políticas acumuladas para se eleger e em seguida ameaçar a democracia e as instituições.

Paulo Freire, 99
Paulo Freire, o mais importante educador brasileiro e um dos maiores do mundo, completaria hoje 99 anos. Inúmeras homenagens e palestras sobre o professor e sua obra serão realizadas nos próximos 12 meses em comemoração ao seu centenário. Ele é o brasileiro com mais títulos de doutor Honoris Causa. São 41, inclusive das superuniversidades de Harvard, Cambridge e Oxford. Autor de 19 livros, com edições em incontáveis línguas, Paulo Freire dá nome a 31 ruas e praças no Brasil, além de 302 escolas, municipais, estaduais e privadas. Respeitem Paulo Freire.

Fazendas e incêndio
Além da evidente má vontade da União com o meio ambiente, da falta de fiscalização adequada, da seca, dos ventos e do difícil acesso, um fator econômico serve de combustão para as queimadas do Pantanal. Diversas fazendas foram divididas ao longo dos últimos anos e muitas pararam de produzir, demitiram peões e fecharam suas porteiras. Essas áreas são as mais desguarnecidas e descuidadas, por onde o fogo se alastra sem impedimento. Outras fazendas, cinco no Mato Grosso do Sul, são investigadas pela Polícia Federal por queimadas intencionais.

Dando linha
Fabricantes de linhas do interior de São Paulo tiveram queda nas vendas de até 80% no início da pandemia. Apavorados, fizeram muitas demissões achando que a crise demoraria e a recuperação econômica só teria início em 2021. Cinco meses depois, uma dessas fábricas já opera no azul, ou no azulão, com vendas 120% maiores do que antes da crise sanitária. A concorrência chinesa ficou muito cara.

EUA desbancados
Para quem acha que o problema alcança somente países pobres, este dado pode surpreender. O Federal Reserve dos Estados Unidos, o FED, similar ao nosso Banco Central, informou na semana passada que um em cada quatro americanos não tem conta bancária ou tem apenas uma conta pagamento. Significa que 82 milhões são desbancarizados nos EUA.

Correção
Não é do MDB o ex-prefeito de Cocal (PI) João Maria Monção, que disse em discurso gravado que roubou, sim, mas não tanto quanto o seu adversário na próxima eleição. Ele era do PTB, que o expulsou após a declaração.


Ascânio Seleme: Trabalho terremoto

Se já havia uma forte tendência de reduzir o contingente dentro dos escritórios, o isolamento social provou que é perfeitamente possível para inúmeras categorias profissionais trabalhar permanentemente desde casa

A pandemia de Covid-19 fez mudanças importantes nos arranjos do trabalho. A principal delas é o estabelecimento do home office como uma alternativa que, para muitas empresas, vai se estender mesmo depois de terminada a pandemia. Se já havia uma forte tendência de reduzir o contingente dentro dos escritórios, o isolamento social provou que é perfeitamente possível para inúmeras categorias profissionais trabalhar permanentemente desde casa. A revista britânica “The Economist”, que deu a capa da sua edição desta semana ao tema, relata que um estudo da Universidade de Chicago descobriu que 40% dos trabalhadores de países ricos podem produzir remotamente.

Se para uma grande parte das empresas e um número enorme de trabalhadores a novidade traz muitos aspectos positivos (e também alguns negativos), para outros o home office pode produzir um enorme impacto negativo em seus negócios. O setor que mais será atingido por esta mudança de hábitos de trabalho é o imobiliário. Algumas grandes empresas globais, como a Pinterest, empresa de media social, estão refazendo contratos de aluguéis e de leasing de imóveis, pagando inclusive multas altas, para reduzir os espaços físicos que ocupam. No Brasil, algumas empresas já começaram a seguir este caminho.

Como efeito colateral, edifícios comerciais que forem desocupados podem permanecer fechados por muito tempo. Alguns terão de se redesenhar para outra finalidade sob pena de não abrirem mais. Quem vai ocupar, por exemplo, o edifício Eco Sapucaí, construído ao lado do Sambódromo no terreno da antiga fábrica da Brahma, que está fechado desde sua inauguração, em 2015? São 19 andares de 4,5 mil m² cada, com 34 elevadores e 1065 vagas de garagem. O governo do Estado do Rio chegou a cogitar mudar toda sua estrutura para lá, mas acabou desistindo.

Como este, existem dezenas de outros prédios comercias no Centro do Rio. Em 2017, a cidade já tinha 372 mil metros quadrados de escritórios desocupados, segundo nota publicada por Lauro Jardim em setembro daquele ano. O desafio para empresas e governos é dar nova destinação a estes imóveis. Embora seja complicado, mas talvez a alternativa seja adaptar alguns destes prédios para uso residencial. Com certeza, a pressão por moradias dignas em países como o Brasil em nada vai mudar com as novidades sobre o trabalho pós-pandemia.

O que pode ocorrer também é a quebradeira de empresas e o desemprego em massa de trabalhadores dos setores imobiliário e da construção civil. E um sonho pelo menos já pode ser enterrado definitivamente. O de Paulo Guedes de engordar os cofres do país vendendo centenas de imóveis comerciais que a União tem espalhados pelo país.

Segundo a reportagem da “Economist”, algumas grandes empresas relutam em abrir mão de seus escritórios enormes exatamente para não perder valor com prédios vazios. A Bloomberg, uma das gigantes da comunicação global, está estimulando financeiramente seus funcionários a voltar ao trabalho presencial. A empresa estabeleceu um estipêndio de 55 libras (R$ 374) por dia para aqueles que, mesmo podendo legalmente permanecer em casa trabalhando, voltem a operar no escritório.

A legislação trabalhista é outra questão importante e terá de ser resolvida pelo Congresso Nacional. Muito provavelmente serão necessárias novas leis para regular estas mudanças de hábitos do trabalho, quando passarem a ser permanentes. Inúmeras questões terão de ser reendereçadas. Exemplos: quem deve pagar pelo custo do trabalho doméstico? Como serão realizadas sessões de desligamento de funcionários? De que forma serão contabilizadas as horas trabalhadas? Estudo da Universidade de Stanford mostra que as pessoas que estão trabalhando remotamente aumentaram em média 50 minutos a sua jornada diária.

O esforço para adaptar o novo normal do trabalho na rotina das pessoas, das empresas e da economia exige governos sérios, focados e atuantes e um Congresso ágil e moderno. Obviamente o Brasil vai sofrer mais que outros países nesse caminho, que não será curto nem fácil.

Depoimento do presidente
Os que se ofenderam com a decisão do ministro Celso de Mello de exigir que o depoimento do presidente Jair Bolsonaro no caso da tentativa de interferir na Polícia Federal seja presencial, e não por escrito, são os mesmos que acham que o Supremo Tribunal Federal pega muito pesado com aquela gente boa que ultimamente tem passado longos períodos na cadeia. Como qualquer investigado, Bolsonaro pode até ficar calado para não constituir prova contra si próprio, mas terá de mostrar a cara.

Celso de Mello afirma que “absolutamente ninguém” está acima da lei. E ponto final. Que falta o decano fará ao STF.

Amin x Bolsonaro
Está dando água a jogada da turma de Bolsonaro em Santa Catarina para livrar a cara da fiel vice-governadora Daniela Reinehr do processo de impeachment em curso contra ela e o governador Carlos Moisés. Quem torpedeou a última estratégia bolsonarista foi o deputado estadual João Amin (Progressistas), presidente da comissão especial que analisa o processo. João é filho de Espiridião e Ângela, ex-governador do estado e ex-prefeita de Florianópolis. O que a patota de Bolsonaro queria era afastar o governador e colocar no seu lugar a vice. Amin abateu a manobra, por ora.

Cara de pau
Que o MDB é um partido cara de pau, todo mundo sabe. Agora cara de pau deslavada soube-se esta semana. Ao anunciar que pode expulsar o ex-prefeito e candidato a um novo mandato João Maria Monção, que disse em discurso gravado que roubou, sim, mas não tanto quanto o seu adversário na próxima eleição, o MDB parecia querer dizer que roubar pode, o que não pode é assumir publicamente o roubo. O candidato já havia sido julgado e condenado, até cana cumpriu. Até aí o MDB ficou mudinho.

Rio on e Rio off
O Rio é mesmo muito especial. Vejam como somos extraordinários. Pode ter igual, mas difícil encontrar gente mais consciente e cuidadosa com a pandemia de coronavírus que a nossa. Pelo menos nos dias úteis. De segunda a sexta, ficamos em casa, quietos, lógico que não vamos nos expor, melhor trabalhar em home office. Mas no fim de semana, bem, aí ninguém é de ferro. Uma praiazinha não vai matar, não é mesmo? Então, o Rio é on de segunda a sexta e off nos sábados, domingos e feriados.

Isolamento faz mal
Estudo da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, revela que um em cada três pacientes da Covid-19 desenvolveu problemas de saúde mental. Os males mais constantes são ansiedade, fadiga e alterações significativas no sono.

Xadrez em alta
O site Twitch, especializado em jogos on-line, constatou que de março a agosto (no auge da pandemia) pessoas assistiram a 41,2 milhões de horas de xadrez. O valor é quatro vezes maior do que a audiência dos seis meses anteriores. Para você ver como andam as coisas.

Inclusão em baixa
De acordo com o Instituto para a Produtividade Corporativa (ICP), 27% das empresas americanas abandonaram inteiramente os esforços em favor da diversidade e da inclusão em suas cadeias de produção em razão da crise sanitária.

Adiós, Venezuela
A crise política e econômica é tão grave na Venezuela que desde as últimas eleições legislativas, de 2014, cinco milhões de venezuelanos deixaram o país. Esse total representa um sexto da população. A diáspora venezuelana já é, proporcionalmente, a segunda maior da América do Sul, superada apenas pela do Equador, que hoje tem metade dos seus cidadãos vivendo fora do país.

Filha de peixe
Cristiane Brasil, filha de Roberto Jefferson, foi presa ontem preventivamente pela Polícia Federal em operação que investiga desvios em contratos de assistência social. Você se surpreendeu com a notícia? Duvido.

Blasfêmia
Em 78 países a blasfêmia é considerada crime e pode resultar em punições formais. O Brasil de Deus acima de todos que abra o olho porque um dia esta moda pode chegar aqui.


Ascânio Seleme: Gastos militares

É ofensivo aumentar gastos militares num país como o Brasil, assaltado por corruptos de todos os matizes políticos, com 15% da sua população vivendo abaixo da linha da miséria

É ofensivo aumentar gastos militares num país como o Brasil, assaltado por corruptos de todos os matizes políticos, com 15% da sua população vivendo abaixo da linha da miséria, com quase a metade dos seus lares sem água encanada e esgotamento sanitário, com escolas e hospitais públicos caindo aos pedaços, com a pior segurança e os piores índices de violência da América do Sul. É mais do que ofensivo, é escandaloso.

O projeto de Lei Orçamentária enviado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso prevê R$ 1,47 bilhão para investimentos do Ministério da Defesa em 2021. Segundo o projeto, este dinheiro vai para a implantação de um sistema de aviação no Exército, para a compra de caças e o desenvolvimento de aviões cargueiros na Aeronáutica e para a construção de submarinos com propulsão nuclear na Marinha. Além disso, a Defesa vai ser agraciada com um aumento de 4,83% na sua dotação orçamentária. Terá R$ 110,7 bi para gastar no ano que vem. Um feito e tanto, considerando que todos os demais ministérios sofrerão cortes.

Caberá aos deputados e senadores barrar esta exorbitância. Eles devem se perguntar francamente para quê o Exército precisa de aviação se o país já tem uma força aérea. Responder que nos Estados Unidos é assim não serve. O Brasil não está em guerra. Os EUA, passaram apenas 16 de seus 245 anos de História em paz. E mais, por que a Marinha precisa de mais submarinos nucleares? Para fiscalizar nossas costas não é. O que o país precisa é de uma robusta guarda costeira, para impedir contrabando, tráfico, pesca ilegal e agressões ambientais.

Aliás, onde estava a Marinha quando foram despejadas centenas de toneladas de óleo no mar, no Nordeste do Brasil, sujando as praias, asfixiando e destruindo flora e fauna locais? Nem identificar o agente poluidor ela foi capaz.

Novos cargueiros para a Aeronáutica, podem ser úteis? Talvez, mas não para transportar tropas e equipamentos militares, e sim para, eventualmente, carregar alimentos e ajudas humanitárias até localidades que passaram por tragédias ambientais ou naturais. Nestes casos, não resta dúvida de que seria muito mais barato fretar aviões de carga das companhias privadas. Já comprar mais caças não faz muito sentido. Me diga quantas vezes você leu ou ouviu falar do emprego destes caças em situações reais de perigo para o país.

Lembro de uma ou duas interceptações de teco-tecos de traficantes. Mas a melhor memória mesmo é do dia em que Ayrton Senna foi à Base Aérea de Anápolis para voar num Mirage. Eu estava lá como repórter do GLOBO. Posso confirmar que ele adorou o voo.

Você pode dizer que é importante ter Forças Armadas sólidas para qualquer eventualidade de agressão de nossos vizinhos. Ok. Então vejamos como estão nossos vizinhos. O Brasil é o 12º país do mundo que mais gasta com defesa. No ano passado, o país empregou 1,3% do PIB em defesa, contra 0,86% da Argentina e 1,07% da Venezuela. Seu ideal é chegar a 2% do PIB. E não se esqueçam do tamanho do nosso PIB em comparação com os dos vizinhos. Traduzindo, não há riscos. Ninguém vai ameaçar nossas fronteiras e muito menos invadir o Brasil.

O ex-presidente americano Jimmy Carter revelou numa palestra na sua igreja na Geórgia, há um ano, o teor de um diálogo que tivera com Donald Trump. Segundo Carter, Trump estava preocupado porque a China estava superando economicamente os Estados Unidos. Carter dividiu a preocupação com o presidente e disse a Trump qual seria na sua visão a principal razão que levara o seu país àquela situação. Você tem gastos militares muito altos, disse o ex-presidente.

Acrescentou que a China gasta menos, não vai à guerra e cresce numa velocidade de cometa. Por esta razão explicou, a China tem hoje 18 mil milhas (29 mil km) de estradas de ferro para trens de alta velocidade. “Se você pegasse os US$ 3 trilhões mal gastos com defesa e empregasse em infraestrutura (…) teríamos mais ferrovias de alta velocidade, melhores estradas, com manutenção adequada, escolas tão boas quantos as da Coreia do Sul e de Hong Kong”, disse Carter.

Pense o quanto poderia ser feito em infraestrutura no Brasil se o gasto com a defesa caísse ao invés de subir.

Vendaval
Em Brasília, muita gente continua pagando suas contas com dinheiro vivo. Nesta semana, o gerente de um tradicional restaurante da capital tentou evitar o pagamento de uma despesa de R$ 1,2 mil em cash. Perguntou se o cliente não tinha cartão. É pegar ou pendurar, respondeu o cliente. O gerente pegou. Essa mania é muito comum entre alguns assessores do Palácio, do Congresso e de estatais e autarquias. Lobistas também preferem dinheiro vivo, que não deixa rastros. Na verdade, não se trata de uma grande novidade. Desde a época em que Silvinho do Land Rover cuidava da lista de nomeações do segundo escalão é assim.

Karina Kufa
Eles aparecem em ciclos, ficam milionários e alguns depois evaporam. São os advogados que atendem aos presidentes do Brasil durante o exercício do mandato. Os que permanecem no cenário são os bons, os que tinham conteúdo e não apenas o melhor cliente chamariz do país. Os que viram ar são do tipo do Frederick Wassef. A criatura da vez é Karina Kufa, advogada de Bolsonaro. Além de cuidar dos casos pessoais do presidente, a advogada anda fazendo política. Política deletéria, é bom que se diga. Suas impressões digitais foram vistas no processo que afastou Wilson Witzel do Guanabara. Em Santa Catarina, bem mais do que as digitais de Kufa estão espalhadas no caminho do governador, o bombeiro Carlos Moisés, em direção ao cadafalso. Seu objetivo explícito é livrar a vice bolsonarista da degola.

Hasta los hermanos
Circula na internet um vídeo apócrifo de um minuto e meio, narrado em português e legendado em espanhol, que conta pelo menos uma dúzia de mentiras sobre o governo do peronista Alberto Fernández na Argentina. Afirma, por exemplo, que a pobreza no país saltou de 35% para 50% desde que Fernández assumiu o governo. O filme não diz que o presidente assumiu o governo no dia 10 de dezembro do ano passado, o que inviabiliza esta contabilidade. Afirma também que a polícia está assassinando e fazendo desaparecer pessoas que não cumprem o confinamento da pandemia. É o Gabinete do Ódio operando além fronteiras.

Mas…
Por outro lado, a Argentina resolveu restringir a importação de livros, voltando a exigir certificados sanitários, agora em razão da pandemia de coronavírus. Os importadores dizem tratar-se apenas de uma desculpa do governo de Fernández para proteger a indústria local. Quem paga é o consumidor de livros, que perde acesso a bons títulos. Logo tu, Argentina, conhecida como a líder cultural do continente e dona da melhor educação pública do Rio Grande até a Patagônia.

Os 25
Daqui a três semanas começa a campanha eleitoral que vai renovar 5.570 Câmaras municipais em todo o país. Boa hora para o eleitor prestar atenção, valorizar seu voto e fazer uma grande limpeza. No Rio, seria uma beleza se o carioca não desse novo mandato àqueles que se recusaram a cumprir sua função de fiscais do Executivo e preferiram assumir o papel de guardiões do prefeito. Seus 25 nomes estão na edição do GLOBO de quinta-feira.

Sugestões
Bons nomes para fazer a troca o eleitor tem. Para os que votaram nos 25, aqui alguns candidatos já muito bem testados, de diversos segmentos políticos, que concorrerão a um mandato municipal em novembro: Chico Alencar, Andrea Gouvêa Vieira, Antonio Carlos Biscaia e Miro Teixeira.

Quem apita
A debacle do diálogo entre o ministro da Economia e o presidente da Câmara não deve atrapalhar muito o calendário das reformas na Câmara. Lá quem dá as cartas é Rodrigo Maia. Paulo Guedes apita nada no plenário. Mesmo em fim de mandato, depende mais de Rodrigo do que do esforço do governo para fazer a pautar andar. Lembram a reforma da Previdência?

O show de Trump
A administração de Donald Trump está pressionando estados para que sejam rápidos na definição de locais e aprontem a logística necessária para a distribuição em massa de vacinas contra a Covid-19. Ele quer colocar os primeiros lotes na rua no dia 1º de novembro, antes da eleição marcada para o dia 3 daquele mês. Tem gente que duvida que ele consiga, mas há quem aposte no contrário. Mesmo que os resultados da nova vacina não sejam conhecidos dois dias depois da sua aplicação, Trump tem certeza que vai se beneficiar politicamente da operação de guerra que pretende montar. Será um show.

Curso de xereta
Começa na segunda-feira um curso online muito bom para quem gosta de acompanhar e fiscalizar gastos governamentais. Trata-se de uma ação conjunta de Gil Castello Branco, diretor e fundador do site Contas Abertas, com o professor Rosenthal Calmon Alves, do Centro Knight para o Jornalismo nas América, de Austin (Texas). O curso “No rastro digital do dinheiro público: como fiscalizar gastos da União, estados e municípios”, vai de 7 de setembro (feriado durante confinamento não é feriado) a 4 de outubro. É gratuito e as inscrições ainda estão abertas. Não precisa ser jornalista para participar: https://journalismcourses.org/course/ no-rastro-digital-do-dinheiro-publico/ .


Ascânio Seleme: Nosso Rio

Em menos de uma semana, nossos governantes abusados protagonizaram dois escândalos

Marcos Paulo Oliveira Luciano, o ML, chegou para depor carregando uma Bíblia. Queria passar uma imagem de homem bom, religioso, temente a Deus, um fiel discípulo do bispo Marcelo Crivella. Para a polícia, contudo, ML é o chefe da gangue que foi denunciada pelo Ministério Público e pode levar o prefeito do Rio a enfrentar um processo de impeachment ou uma CPI.

Além de ML e seus bárbaros, o carioca conheceu esta semana uma nova modalidade de crime que o prefeito do Rio acrescentou no seu rol de atentados contra a administração pública. Perdulário, Crivella contratou assessores pés de chinelo com dinheiro do contribuinte para abordar e impedir que repórteres fizessem matérias denunciando o caos dos hospitais municipais nas portas das unidades.

O bispo vai precisar explicar ao Ministério Público o evidente mau uso do dinheiro do erário. Foi ele quem inventou a barbaridade e é o mentor do grupo que cometeu crimes de peculato, constrangimento ilegal, associação e condescendência criminosa. Além disso, deve ter cometido crime eleitoral, uma vez que usou recursos do contribuinte para contratar gente cuja única função era mentir para proteger sua imagem de prefeito candidato à reeleição, sem qualquer atribuição efetivamente pública.

Nos grupos de WhatsApp dos milicianos de porta de hospital, como a vereadora Teresa Bergher chamou a turba, constava o telefone celular de Crivella. O prefeito acompanhava a ação dos agressores em tempo real. Além do bispo, alguns secretários e assessores do prefeito participavam desses chats. Uma vergonha privada tornada pública.

A ação da gangue nos hospitais tinha o mesmo formato. Todos foram treinados para dizer as mesmas coisas, atacar e agredir jornalistas, defender o prefeito e desrespeitar os entrevistados. Diante desse ultraje, a nota da Prefeitura é de morrer de rir. Ela afirma que aqueles energúmenos estavam nas portas dos hospitais para “esclarecer a população”. Fala sério.

A quem Crivella quer enganar? Se você responder que ele queria atrapalhar a imprensa, errou. O que o prefeito queria era mal informar ou desinformar a população, o contribuinte que paga o seu salário e os salários dos seus “milicianos”. Diante do que se viu e do que já se sabe até aqui, Crivella criou o grupo para calar a boca do cidadão que vai ao hospital e bate com a cara na porta. Queria ludibriar o eleitor, com quem vai ter que lidar em novembro.

Estamos falando de criminosos. E é evidente que nem no escuro do seu quarto o chefe da gangue, o fiel ML, pediu perdão a Deus. Deve ter rezado para não perder o emprego com salário de R$ 10 mil. Aliás, R$ 18 mil, porque o prefeito amigo lhe deu um aumento de 80% em agosto. Por que mesmo, Crivella?

E assim caminha o Rio. Em menos de uma semana, nossos governantes abusados protagonizaram dois escândalos. Um deles resultou no afastamento do governador Wilson Witzel. O outro desmoralizou ainda mais o já enlameado prefeito. Em ambos, os cidadãos do Rio entraram pelo cano.

Desnecessário acrescentar qualquer coisa ao caso de WW. Mas não dá para passar sem observar o modus operandi do governador. Primeiro, como disse o delegado do inquérito, foi uma volta ao passado. Nada criativo, o afastado imitou Sérgio Cabral, usando o escritório de advocacia da mulher para desviar dinheiro público. E, como revelou o colunista José Casado, copiou também a dupla Lula e Dirceu, instituindo através de seus operadores um mensalão carioca.

WW pode acabar preso. A situação política do governador é gravíssima. Mesmo que não tivesse sido afastado pelo Superior Tribunal de Justiça, ele acabaria sendo impichado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a fabulosa Alerj. Crivella corre riscos semelhantes. Os pedidos de CPI e impeachment já foram protocolados, e hoje a Câmara Municipal decide se abre o processo de afastamento do pior prefeito da história do Rio.


Ascânio Seleme: E o Rio, como fica?

Se dependesse do prefeito, melhor seria deixar o debate para a última hora

Em três meses os cariocas vão eleger o sucessor do bispo Marcelo Crivella ou reconduzir o atual prefeito para um novo mandato de quatro anos. Embora a questão política nacional seja enorme, e quase sempre prioritária, não dá para ignorar a urgência da eleição municipal. Mesmo tendo população e orçamento maiores do que de alguns estados brasileiros, o Rio não deixa de ser uma cidade onde pessoas moram, estudam e trabalham. É no Rio, e não em Brasília, que os cariocas andam de ônibus. É nos hospitais da cidade que tratam da saúde e nas escolas municipais que seus filhos estudam. Chegou a hora de prestar atenção ao Rio.

Se dependesse do prefeito, melhor seria deixar o debate para a última hora mesmo. Enquanto isso, ele iria consolidando suas posições entre os evangélicos e fortalecendo seus laços com Bolsonaro e família. Crivella é o pior prefeito do Rio dos últimos anos, mas não é bobo. Ele já mapeou muito bem o caminho que pode levá-lo à reeleição. Em primeiro lugar, grudou no presidente como uma ostra na pedra. Mesmo nos momentos ruins, sempre esteve ao lado de Bolsonaro, não porque antecipava a sua recuperação, mas por falta de opção mesmo. Hoje, com a melhora dos índices de aprovação de Bolsonaro, Crivella cresce.

Seu primeiro movimento em favor da confirmação desse apoio já foi dado. O bispo quer a deputada Major Fabiana como sua candidata a vice. Ela é do PSL, partido do qual Bolsonaro está se reaproximando. Se o entendimento entre o partido e o presidente desandar, Fabiana será ejetada. Crivella sabe fazer o jogo político, o que ajuda a fortalecer sua posição eleitoral. Uma candidatura que até outro dia parecia fadada ao fracasso hoje pode muito bem constar da cédula do segundo turno. Seu sucesso ou fracasso vai depender de como reagirão seus adversários.

O principal concorrente de Crivella é o ex-prefeito Eduardo Paes, cujo maior problema é ser sempre associado ao grupo do ex-governador Sérgio Cabral, responsável pela sua indicação na primeira eleição a prefeito e de quem foi secretário. Este fantasma com certeza será lembrado na campanha. As delações premiadas da Lava-Jato não o alcançaram e ganhou todas as ações movidas contra ele; mesmo assim, é por aí que será bombardeado. Hoje, é réu em ação iniciada pelo Ministério Público assim que anunciou sua candidatura.

Paes é de longe o mais forte dos opositores de Crivella. Ele lidera todas as pesquisas e talvez seja o único capaz de ganhar do atual prefeito ainda no primeiro turno. Mas dependerá muito de como vai construir sua campanha. Com certeza, ele será atacado pelo bispo e, se não reagir com a mesma intensidade, pode ficar pelo caminho. Flancos frágeis Crivella tem aos montes, difícil é saber por onde começar.

Como o crescimento da aprovação de Bolsonaro alavancará Crivella, Paes terá de brigar pelos eleitores que lhes deram a vitória nas duas eleições que ganhou no Rio. Os votos de opinião não serão suficientes para elegê-lo, como não bastaram para seu adversário Fernando Gabeira na eleição de 2008. Será nas periferias das grandes cidades que os candidatos a prefeito apoiados por Bolsonaro testarão a força eleitoral do auxílio emergencial. Crivella vai navegar nesta onda. E é lá que Paes terá de garimpar.

Para derrotar o pior prefeito da história do Rio, Eduardo Paes terá também que ser capaz de se articular com os partidos de esquerda. Se souber dividir, poderá somar e ganhar.

Ditadura do tráfico
O cenário lembra os piores momentos da ditadura, quando pessoas eram sequestradas, torturadas, assassinadas e enterradas em covas clandestinas por forças policiais ou militares. O cemitério do tráfico do Salgueiro é tão grotesco quanto o de Perus, em São Paulo, por reunir sob o mesmo terreno corpos de dezenas de pessoas. No Salgueiro, os restos são de traficantes de facções concorrentes, de moradores da comunidade desobedientes e de policiais. Em Perus, pelo menos 20 corpos encontrados em valas clandestinas pertenciam a desaparecidos políticos, inimigos do regime militar.


Ascânio Seleme: O golpe impossível

Em “Como as democracias morrem”, o autor Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade de Harvard, aponta quatro indicadores que definem líderes que resolvem adotar este caminho

Em “Como as democracias morrem”, o autor Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade de Harvard, aponta quatro indicadores que definem líderes que resolvem adotar este caminho. Primeiro, eles rejeitam as regras democráticas e constitucionais; em seguida, tentam restringir as liberdades civis de rivais políticos e da imprensa; depois, negam a legitimidade de opositores; e, finalmente, encorajam ou toleram a violência. Jair Bolsonaro se encaixa nos quatro, segundo o próprio Levitsky em entrevista ao “Correio Braziliense”. O problema é que ele não tem as ferramentas indispensáveis para tocar estes indicadores adiante. Faltam-lhe apoio popular e maioria no Congresso.

Pela via institucional, Bolsonaro não conseguiria subverter a ordem democrática. Não aprovaria um reforma do Judiciário, por exemplo, para construir um Supremo ao seu gosto. Não aprovaria uma reforma política para reestruturar os partidos de acordo com suas ideias. E sequer conseguiria discutir uma reforma administrativa por não ter o aval dos servidores, embora disponha de mais de 20 mil cargos de livre nomeação que já distribuiu entre aliados, sobretudo militares (das Forças Armadas, das PMs e dos Bombeiros) e seus familiares. Sem apoio popular ele também não prosperaria. Nem o cercadinho do Alvorada Bolsonaro conseguiu manter intacto. Outro dia ouviu-se dali uma mulher dizer que ele traiu a nação.

Os gestos mais obtusos do presidente são rechaçados publicamente e caem. Caso da MP que dava poder ao inacreditável Abraham Weintraub de nomear reitores nas universidades federais. Por isso, os caminhos apontados pelo professor de Harvard não conduziram a um golpe no Brasil. O desejo de Bolsonaro de desmantelar a ordem constitucional só se daria pela infâmia, e seria assim:

A infâmia improvável

O chefe dos funcionários da portaria Câmara dos Deputados jamais se esquecerá do barulho dos vidros estilhaçados pelo primeiro tanque na invasão da casa através da entrada da chapelaria. Com o cheiro do óleo diesel dos motores dos tanques subindo para o salão verde, os presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre foram presos pelo coronel de infantaria mecanizada destacado para a operação. Diversos parlamentares, de todos os partidos, também saíram algemados e foram levados para o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas, ao lado do Parque Nacional de Brasília.

Ao Supremo Tribunal Federal foram enviados muito mais do que um jipe, um cabo e um soldado. O prédio foi cercado por pelo menos duas companhias de infantaria. Não houve depredação como no Congresso, mas também ali prisões foram feitas sem nenhum amparo legal. Todos os ministros, inclusive o presidente Dias Toffoli, foram encarcerados no Batalhão Pioneiro, o 1º BPM, no final da Asa Sul.

No Rio e em São Paulo, jornais e emissoras de TV e rádio foram ocupados por soldados armados de fuzis e metralhadoras. A ordem era quebrar quem opusesse qualquer resistência. E foi isso o que aconteceu. Vários veículos foram empastelados pelos ocupantes. Jornalistas foram agredidos e tiros foram disparados. O saldo da barbárie ainda não se conhece. No Rio, dezenas de repórteres e editores foram recolhidos ao Batalhão de Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Em SP, levados para o Comando da 2ª Região, na Avenida Sargento Mário Kozel Filho.

As universidades também foram tomadas por tanques. Reitores e diretores de departamentos foram imediatamente presos. Há professores e alunos entre os presos e desaparecidos. Sabe-se que uma ala da Escola Militar da Praia Vermelha foi esvaziada para recolher os detidos nas universidades. No Rio e em Brasília, foram ocupadas ainda as sedes da Ordem dos Advogados do Brasil e da Associação Brasileira de Imprensa. Sindicatos em todo o país estão sendo fechados.

As gigantescas manifestações de rua que se seguiram ao golpe foram reprimidas brutalmente por militares e milicianos infiltrados. Pessoas relataram ter ouvido tiros e visto corpos estendidos no asfalto. Também há relatos de agressões física e tortura de presos em alguns quartéis. É o método que os militares adotaram para tentar descobrir o paradeiro de pessoas que consideram inimigos foragidos, embora sejam apenas estudantes, professores, jornalistas, advogados. O país está chocado com tamanha infâmia.

A verdade incontestável

Alguém acredita que tamanha barbaridade poderia ser cometida pelos atuais comandantes militares? Talvez um ou outro. Alguém imagina que as Forças Armadas tomariam parte de uma brutalidade desse tamanho em nome de Jair Bolsonaro e de seus três zeros? Poucos. Alguém duvida de que este é o sonho do presidente? Ninguém.

O dinheiro não é Problema
É verdade que não havia outro caminho que não fosse o que previsse ajuda do governo federal aos mais pobres durante a epidemia que, além de vidas, ceifa empregos e fontes alternativas de renda em todo o país.

Nenhum mérito, portanto, na liberação de verbas para este fim. Era uma estratégia indispensável para a sobrevivência de milhões de brasileiros, contra a fome e o desespero.

Agora, criar uma marca, a Renda Brasil, ampliar seu alcance e estender por mais tempo seus efeitos têm outro nome.

Trata-se de uma tática de sobrevivência política do presidente. Jair Bolsonaro quer estreitar vínculos com os mais vulneráveis para acenar com apoio popular se seu mandato vier a ser ameaçado pelo impeachment.

Até que enfim
Demorou, mas finalmente alguém foi ao cercadinho dos bajuladores do Palácio da Alvorada para dizer umas boas ao presidente. Foi engraçado ver a cara de tacho de Bolsonaro mandando a mulher que o chamou de traidor ir se queixar ao seu governador.

Aquele cercadinho só abriga aliados incondicionais de sua excelência, por isso foi inusitado ver sair dali um breve contraditório.

A coisa no lugar é tão descarada, que no início da semana, quando o presidente Jair Bolsonaro ouvia de seguidores da Região Norte propostas para aprovar a ocupação de terras indígenas, disse que não podia ser claro sobre a questão e acrescentou: “A imprensa está ouvindo, aí eu não posso ficar muito à vontade”.

Embaraço geral 1
O general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde que embaraça o Exército brasileiro, recebeu, na semana passada, recado de superiores fardados de que o melhor a fazer é voltar para a caserna ou ir para a reserva.

Embaraço geral 2
Duvida-se no QG do Exército em Brasília que Eduardo Pazuello e Luiz Eduardo Ramos, ministros de Bolsonaro e ambos generais da ativa, sigam o exemplo do chefe do Estado Maior Conjunto dos Estados Unidos, Mark Milley, e peçam desculpas por terem apoiado os atos antidemocráticos realizados na Praça dos Três Poderes.

Historicamente, militares brasileiros não admitem que erram.

Mais fácil para os dois é a reserva. O ministro Luiz Eduardo Ramos já deu sinais nesse sentido.

‘Eu te amo, meu Brasil’
Silvio Santos nem tenta esconder sua permanente sabujice. Desde os governos militares, seu programa dominical sempre foi reverencial ao presidente do momento.

Trata-se de um puxa-saquismo com objetivo de ganhar alguma coisa em troca.

Agora, com Jair Bolsonaro, foi ao Palácio algumas vezes e, anteontem, viu o genro virar ministro. Seu maior gol foi o seu canal de TV. Em um dos seus programas em 2006, Silvio Santos explicou como conquistou o seu canal.

Ele apresentava Ravel, da dupla que compôs “Eu te amo, meu Brasil”, e disse que o cantor foi um dos “propulsores” da sua emissora. “Ele trabalhou junto comigo para que conquistássemos o SBT. Eu e ele, durante muito tempo, andávamos juntos à procura de oficiais do Exército e de autoridades brasileiras para que eles nos fornecessem o canal”.

O apresentador ganhou o sinal no governo do general João Figueiredo, por isso foi à cata de oficiais do Exército para buscar apoio.

Reino da ignorância
A excelente série sueca “Califado” em cartaz na Netflix, mostra como é fácil conquistar corações e mentes com mentiras e meias verdades.

Mais simples ainda se os alvos das fakes forem jovens de comunidades mais pobres e se os argumentos de convencimento envolverem poder e religião.

Em “Califado”, três meninas são aliciadas para se juntarem ao Estado Islâmico com promessas falsas e imagens de hotéis luxuosos onde se hospedariam ao chegarem na cidade de Raqqa, na Síria.

Bons documentários sobre o tema já foram produzidos, inclusive pela GloboNews.

Na série, três jovens de 13 a 15 anos abandonam suas famílias e são levadas para a Síria acreditando estarem indo para um paraíso. Se na Suécia, fake news funcionam assim, imaginem no Brasil.

Pai de peixe
Helder Barbalho ainda terá chance de se explicar sobre a ação que apura desvios de R$ 50 milhões na compra de respiradores para capacitar hospitais do Pará no combate à pandemia de coronavírus.

Enquanto não se justificar, os R$ 25 milhões que tinha em conta estarão bloqueados pela Justiça.

Ouviu-se poucas vozes de políticos paraenses em apoio a Helder. Seu pai, o senador Jader Barbalho, ex-governador e ex-ministro, envolvido em escândalos na Sudam, no DNER, na Petrobras e na Usina de Belo Monte, preferiu se calar.


Ascânio Seleme: Uma ilha chamada Brasil

Silêncio logo aqui, onde jovens negros são mortos por policiais diariamente

Está certo, temos problemas aos montes e não podemos mesmo nos dispersar muito cuidando de questões que ocorrem em outros países. Mas por vezes parecemos alienados, isolados do mundo, fechados num egoísmo absurdo que não permite que enxerguemos um pouco além do nosso próprio horizonte. Estou falando do assassinato estúpido do negro George Floyd por um policial branco em Minnesota e que há dez dias mobiliza todo o planeta em protesto contra o racismo. O que se viu no Brasil nestes dias? Muito pouco, ou quase nada.

Logo o Brasil foi se calar. Logo aqui, onde jovens negros são mortos por policiais diariamente sem direito à defesa e muitas vezes sem motivação e sem crime. As imensas manifestações pela morte de Floyd ganharam rapidamente os Estados Unidos e se espalharam pelo mundo. Muitos episódios emocionantes foram registrados por fotógrafos e cinegrafistas nesta jornada que não tem data para acabar. No Brasil, onde a polícia é muito mais violenta e onde os negros são mil vezes mais vitimados, não se viu nada, fora uma manifestação solitária em Laranjeiras e a convocação de outra para domingo que vem, na Candelária.

Em Brasília, o presidente da República brindou com dois puxa-sacos usando copos de leite. Disse estar fazendo campanha em favor dos produtores de leite. Pode ser, mas houve quem enxergasse no episódio um gesto em favor de supremacistas brancos. Logo depois, um dos seus blogueiros prediletos fez o mesmo brinde e, citando a live de Bolsonaro, levantou o copo e disse “entendedores entenderão”. Justamente o blogueiro Allan dos Santos, processado no Supremo Tribunal Federal por fake news. E houve também a noite das tochas em frente ao STF, em que milicianos lembravam a Ku Klux Klan.

Mais grave ainda, porque explícita, foi a declaração do presidente da Fundação Palmares sobre o movimento negro. Não que a estupidez de Sérgio Camargo pudesse surpreender alguém. Ninguém ignora que, embora negro, ele não esconde seu ódio a qualquer política ou movimento afirmativo. No auge das manifestações de repulsa ao assassinato de Floyd, Camargo foi ao Twitter e escreveu que “a influência do movimento negro sobre os negros é perniciosa e deletéria”.

No dia seguinte, conforme diálogo publicado pelo “Estadão”, Camargo reclamou com assessores do sumiço de seu celular corporativo. E logo encontrou um responsável pelo sumiço do aparelho. “Quem poderia ter feito isso?”, indagou. Ele mesmo respondeu: “Os vagabundos do movimento negro, essa escória maldita”. Esse é o presidente de uma “instituição pública voltada para a promoção e a preservação de valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. E o que se viu no Brasil? Por ora quase nada, ou muito pouco.

Gastando menos
Estudo do pesquisador e jornalista Fábio Vasconcellos, professor da Uerj, mostra que despencaram em 68% os gastos da Câmara dos Deputados com as cotas parlamentares em dois meses de distanciamento social. Em abril e maio, os 513 deputados federais brasileiros gastaram R$ 11 milhões, contra R$ 37 milhões consumidos nos mesmos dois meses do ano passado. Obviamente o gasto que mais caiu foi o com passagens aéreas, já que os parlamentares estão nas suas bases e não viajaram nesse período. Antes da pandemia, este gasto representava 29,9% do total das cotas. Agora, somou apenas 0,6% do total, com R$ 67 mil.

A notícia é boa? Depende do ângulo em que se olha para ela. Claro que economia é sempre muito bem-vinda, sobretudo de dinheiro público usado em representação. Mas, por outro lado, a atividade parlamentar foi substancialmente prejudicada nestes dois meses de isolamento social. E o que menos pode se querer neste momento é deixar o Poder Executivo jogando sozinho, já que o presidente ignora a determinação de distanciamento. Todo mundo está economizando com a quarentena. Empresas, famílias, indivíduos gastam menos porque consomem menos. Mas também produzem menos. No caso do Legislativo, essa não é uma boa notícia.