anticomunismo

Foto: Leo Correa/El País

Revista online | A tópica anticomunista na linguagem fascista

Delmo Arguelhes*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)

O início do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado originariamente em 1848, é bem conhecido pelo público, assim também como o final. “Um fantasma circula pela Europa – o fantasma do comunismo.” (Marx; Engels, 2012: 43). A partir desse mote, os dois pensadores desenvolvem a argumentação sobre o que seria o comunismo, já que os detratores não sabiam com exatidão do que estavam falando, quando citavam o ‘perigo do comunismo’. 

Após a Revolução Russa, em 1917, e a tomada do poder pelos bolcheviques, em outubro do mesmo ano (no calendário juliano), o fantasma amplificou sua intensidade. Os fascismos – movimentos de extrema direita, de fundo populista – não surgiram como uma reação automática contra o comunismo. A concepção do fascismo como excesso obsceno do capitalismo funciona mais como slogan do que como categoria rigorosa. 

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Os donos do capital não se transformam em fascistas, como num passe de mágica. As elites econômicas, a princípio, não gostam dos fascistas, porém, gostam menos ainda – ou realmente odeiam – de revoluções populares, movimentos reivindicatórios, ou qualquer obstáculo aos privilégios de classe que ostentam. Mas esse não é o único ponto de interesse das elites no movimento fascista. Este, necessariamente, sempre toma medidas a favor do grande capital, e contrárias às necessidades e anseios populares.

O fascismo apresenta como objetivo primordial um retorno aos dias passados de glória, já que a modernidade implicou na degeneração do corpo da pátria, tanto com base imperialista (no caso italiano) ou racial (no caso alemão). A solução para reconduzir o país ao lugar devido, para Mussolini seria restaurar a eficiência militar dos romanos antigos, partindo para a conquista de territórios e colônias; para Hitler, seria fundar uma raça de sobre humanos, a partir do povo alemão. 

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O Brasil não será a nova Cuba | Imagem: reprodução/CEDEMUnesp
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O Brasil não será a nova Cuba
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O Brasil não será a nova Cuba
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Mesmo com a queda desses dois regimes mais notórios, houve sobrevivência de muitos elementos fascistas pós 1945, desde os aspectos práticos mais brutais, como também na agenda socioeconômica, não menos violenta. Parte considerável do discurso fascista elegia a luta contra o comunismo como prioritária. Tal luta tornou-se o leitmotiv da política externa estadunidense, entre 1947 e 1991. Tal fato corrobora a assertiva sobre as atitudes fascistas que conseguiram sobreviver à queda dos regimes. 

Na luta contra o comunismo, os Estados Unidos patrocinaram dezenas de golpes de estado por todo mundo, apoiando ditaduras que diziam “combater o comunismo”, como se fosse uma senha para se garantir ampla autonomia. Numa cena do filme Todos os homens do presidente (1976), dirigido por Alan Pakula, um dos homens presos – que mais tarde será identificado como agente da CIA – se apresenta na audiência de custódia como ‘anticomunista’, provocando estranheza ao magistrado, pelo fato de não existir profissão como essa. Anticomunismo, nesse caso, era nada mais, nada menos do que um tópico do discurso.

A teoria dos topoi (τὀποι), a tópica, possuía na Antiguidade Clássica uma função importante na arte da retórica. Com a decadência da retórica clássica, o tópos (singular de topoi) ganhou uma nova função: ser um lugar comum, um cliché de emprego universal (Curtius, 1996: 109). Os topoi ‘comunismo’ e ‘anticomunismo’, na linguagem da extrema direita, possuem conteúdos plásticos, prontos para serem aplicados em qualquer caso e contra qualquer um. 

No aspecto político mais imediato, ‘comunista’ é equivalente à categoria infame ‘judeu errante’, do século XIX. O judeu errante, figura que não existe fora do mundo das ideias, é também um cliché. Ele se recusava a se integrar à vida nacional, e estaria sempre a conspirar para tomar o poder. Era um ‘inimigo objetivo’ (Arendt, 1989: 474ss). Enquanto um criminoso comum precisa fazer algo que uma lei anterior determine ser crime, o inimigo objetivo seria perseguido pelo que ele poderia fazer, como portador de tendências perigosas. O caráter plástico da categoria ‘judeu errante’ a torna possível de ser atribuída a todos e a qualquer um.

O comunismo no discurso da direita brasileira, portanto, funciona como um albergue espanhol; o hóspede só encontra lá o que ele mesmo levou. Assim, qualquer ato que desagrade as elites econômicas é classificado como comunismo, da mesma forma que os divergentes são chamados de comunistas. 

Se tudo que diverge do mundo ideal de um fascista (ou de um defensor da moral familiar, por exemplo) é comunismo, então, o comunismo, para ele, não é nada. Parodiando Hannah Arendt, as atitudes e discursos fascistas sempre estão à disposição, a qualquer tempo, quando as elites econômicas se sentirem ameaçadas ou desprestigiadas. Já as massas, que não são donas do capital, podem aderir ao sedutor discurso fascista por meio da ideologia.

Sobre o autor

*Delmo Arguelhes é doutor em história das ideias (UnB, 2008), com estágio pós doutoral em estudos estratégicos (UFF, 2020. Coordenador do Grupo Geopolítica e Governança Oceânica do CEDEPEM (UFF/UFPel). Autor do livro Sob o céu das Valquírias: as concepções de honra e heroísmo dos pilotos de caça na Grande Guerra (1914-18).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Luiz Werneck Vianna: A hora dos intelectuais

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos

O martelo está batido. Começamos uma nova história sem uma ideia na cabeça, condenados em meio às trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos setores subalternos. É hora de recolher os cacos, identificar as raízes dos nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democráticas. Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo eleitoral, terreno que sempre identificamos como propício ao avanço dos temas sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitativa ainda mais denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussões.

Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidencial deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomunismo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituição. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse cediço anticomunismo, analisados os resultados eleitorais, principalmente em alguns dos Estados da Federação, o que há de comum neles é o argumento utilitarista, fundamento filosófico do neoliberalismo. No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo.

O princípio da solidariedade e o centro político guardam relações antigas no processo de modernização conservadora do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a inspiração do corporativista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo do autoritarismo e da tutela dos trabalhadores. Depurada dessa chave a Constituição, que é obra do centro político, a solidariedade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado.

Dessa perspectiva, não se pode ignorar talento político aos estrategistas do campo vitorioso, que mantiveram sob estrita clandestinidade seu programa in pectore de reformas, inclusive as constitucionais, confiando ao PT e a seus aliados e aos intelectuais que gravitavam em torno dele, em nome da luta contra a corrupção, a tarefa de implosão do centro político, trave-mestra da arquitetura constitucional e de suas principais instituições, como o Poder Judiciário, como em escandaloso fato recente vindo à luz por inconfidências palacianas em que se ameaçava o Supremo Tribunal Federal.

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos. Querem nos reduzir ao Homo economicus, aqui, no país do carnaval, do Círio de Nazaré, do culto de massas a Nossa Senhora Aparecida e do candomblé, onde o capitalismo jamais foi uma ideia popular, vindo de cima por imposição do Estado. Aqui, onde as favelas são denominadas comunidades e o individualismo metodológico só existe na bibliografia importada, vinculados que estamos às nossas raízes ibéricas, na forma do belo estudo de Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (UFMG, 1998), em trilha aberta pelo saudoso brasilianista Richard Morse.

O sistema de defesa contra a barbárie está à mão e começa a operar na defesa da Carta de 88, reduto das nossas melhores tradições e programa para uma futura social-democracia, que ela já contém em embrião. Seus defensores estão alinhados, à frente de todos o decano do STF, o ministro Celso de Mello. Os primeiros esboços do que deverá ser a oposição começam a ser debatidos, e digno de atenção é o pequeno texto do ensaísta Antonio Risério Por um outro caminho, em que se sustenta a tese da necessidade “de construção de um novo e contemporâneo partido de centro-esquerda verdadeiramente centrado no campo da social-democracia. (...) A fusão de PPS, Rede e PV (linha Eduardo Jorge) pode vir a ser um passo primeiro e fundamental. Mas é preciso trazer para este campo magnético os focos genuínos da social-democracia que ainda resistem (minoritários) no PSB e no PSDB. Tentar trazer também para este processo construtivo os raros verdadeiros democratas que insistem em tentar sobreviver no MDB. E em outros movimentos e instâncias da sociedade”.

Esse sistema geral de orientação não sairá do papel sem os intelectuais, a quem coube assumir posições de vanguarda na formação da opinião pública em momentos cruciais da história do nosso país, tal como no movimento abolicionista pela obra e ação de Nabuco, Antônio Rebouças e José do Patrocínio, e mais recentemente nas lutas sociais e políticas em favor de um Estado Democrático de Direito, pelo envolvimento ativo de personalidades que, entre tantas, podem ser lembradas: Florestan Fernandes, Raimundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso. O momento da hora presente confronta nossos intelectuais com desafios e exigências do mesmo calibre.

Na cena política aberta à nossa frente não há como negar que o longo ciclo da modernização conservadora chegou ao fim nesta triste sucessão presidencial. O passado não mais ilumina, como diria um grande autor, e não se pode ser mais fiel a ele. Reflexividade não é um conceito da moda entre cientistas sociais, mas uma exigência do tempo presente que requer de cada um de nós a escolha do caminho a seguir quando nos devemos soltar do que nos aparecia como destino de um país do Terceiro Mundo e dele prisioneiros. Sem os intelectuais não faremos isso.