Anne Applebaum
Veja: ‘Chegou a hora de regular as redes sociais’, diz Anne Applebaum
A jornalista e historiadora americana adverte que o radicalismo é capaz de matar
Por Marcelo Marthe, Revista Veja
A americana Anne Applebaum, de 56 anos, é estrela indisputável da intelectualidade conservadora. Como jornalista, foi editora de dois tradicionais baluartes, as revistas The Economist e The Spectator. Mas foi como historiadora que consolidou seu prestígio. Seus estudos sobre os gulags, as temidas prisões soviéticas, e a fome da Ucrânia nos anos 30 renderam-lhe prêmios e expuseram os horrores do stalinismo. Em seu novo livro, O Crepúsculo da Democracia (Record), narra em tom pessoal um novo fenômeno: a adesão de muitos intelectuais às ideias autoritárias de governos populistas, dos Estados Unidos à Polônia — seu marido, Radoslaw Sikorski, é um político e ex-ministro do país europeu. Nesta entrevista a VEJA, ela fala sobre temas como as consequências da queda de Donald Trump, a sobrevivência dos líderes populistas na pandemia e a chamada cultura do cancelamento.
Em O Crepúsculo da Democracia, a senhora alerta sobre a escalada do populismo e do autoritarismo no mundo. A derrota de Donald Trump não sinaliza justamente o declínio dessa onda?
É cedo para comemorar. A eleição de Trump, em 2016, refletiu uma insatisfação latente com muitas coisas, inclusive com a democracia e o sistema político. Apesar de sua derrota em 2020, o desapontamento com a democracia ainda está vivo nos Estados Unidos, na Europa e em muitos outros países com eleições livres, até mesmo no Brasil. As ideias autoritárias se alimentam de uma insatisfação profunda de muitas pessoas com os rumos da vida moderna e as dramáticas mudanças sociais e demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não sumirá com a queda de Trump.
Por que a democracia liberal, que trouxe tanto progresso ao Ocidente, passou a ser questionada?
Por diversos motivos. Nos Estados Unidos, existe a frustração de parte da população com as complicações para aprovar novas leis, e isso dá a sensação de que o Congresso é inoperante. A polarização de nosso sistema político também amplia a percepção de que o Estado não tem força. Se tudo se encontra paralisado, por que não cogitar que uma liderança centralizada e autoritária possa fazer o que os políticos não conseguem? Na maioria das democracias liberais, as pessoas também passaram a achar que seus líderes, de quem esperam atitudes de mudança, não detêm o controle do governo.
A invasão do Capitólio por apoiadores de Trump representou um risco real à democracia americana?
A invasão do Capitólio foi uma consequência palpável, e perigosa, da polarização política. Aquela gente falava a sério ao proclamar que desejava matar integrantes do Congresso. Eles não obtiveram êxito, felizmente, mas restaram cinco mortos ao fim do caos. Não se tratava de republicanos atacando democratas, mas de uma horda de loucos antissistema que tinham as instituições como alvo. Foi uma explosão de toda a raiva insuflada ao longo de anos de polarização nas redes sociais.
Como restaurar os velhos dias de debate civilizado e racional?
Não há caminho de volta ao passado. Os países democráticos terão de reinventar o modo como se faz política. Mas é interessante notar que essa chaga da polarização causa estragos não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil, na Polônia e nas Filipinas. Como todos esses países não comungam a mesma cultura, fica claro que o fenômeno que une a todos nas divisões radicais são as mudanças no ecossistema da informação — mais especificamente, a influência das redes sociais.
“Chegou a hora de encarar a necessidade de uma regulação das redes sociais. Não se trata de censurar conteúdos, mas de adequar os algoritmos ao interesse público”
Como lidar com os extremismos nas redes?
Já chegou a hora de encarar a necessidade de uma regulação pública das redes. Não se trata de remover ou censurar conteúdos, mas de apoiar um crescente movimento pela adequação dos algoritmos das plataformas ao interesse público. Hoje, a lógica das redes é dar relevância a qualquer conteúdo que traga engajamento, e por isso viraram o paraíso das fake news e dos discursos irracionais. Os algoritmos estimulam os usuários a fazer coisas deprimentes que vemos hoje na internet. É preciso inverter a lógica, dando mais relevância àquilo que nos une e à informação confiável.
Não há risco de um controle indesejado sobre a circulação de ideias?
É claro que essa regulação teria de ser feita por órgãos independentes, evitando o risco de manipulação política, como fazem governos autoritários na Rússia e na China. Talvez seja o momento, aliás, de pensar: por que, ao lado das redes que já existem, não pode haver serviços públicos do gênero? Taiwan criou fóruns públicos de debate sobre problemas que galvanizam a população, e a resposta das pessoas tem sido excelente.
Após a invasão do Congresso americano, o Twitter baniu o ex-presidente Trump. Foi censura?
É uma questão dificílima. O Twitter tem regras claras sobre as condutas na plataforma. Já fazia tempo que Trump quebrava sistematicamente as regras. Trump, porém, redobrou suas violações e chegou a um ponto inaceitável na invasão do Capitólio. Um modo de auferir como prevaleceram o bom senso e a justiça é verificar o que ocorreu depois que Trump foi banido: a veiculação de fake news sobre fraude nas eleições americanas baixou dramaticamente. A democracia saiu ganhando.
Como a pandemia afeta o projeto de poder dos líderes populistas?
A resposta depende do grau de aceitação da sociedade à aposta do governante. Nos Estados Unidos, Trump investiu no caos e no negacionismo, e errou feio. Em outros lugares, a pandemia serviu de desculpa para ampliar as políticas autoritárias — foi o que fez Viktor Orbán na Hungria. Agora, os líderes passaram a ser cobrados por sua capacidade de responder ao clamor por vacinas. Alguns populistas, no entanto, tiram proveito do fato de que nem todas as pessoas pensam assim — e isso se aplica ao Brasil.
Por quê?
Seria ingênuo subestimar que parte da população vibra quando Trump ou Jair Bolsonaro conclamam a se ignorar a pandemia e a se rebelar contra as máscaras. A mensagem é “não ouçam os médicos, é tudo bobagem”. Se você está com medo de ficar doente e perder o emprego, traz alívio ouvir que é só uma gripe e logo passará. É uma fuga da realidade.
O negacionismo, então, não é uma escolha impensada?
Longe disso. O negacionismo pode ser popular. Ninguém quer ouvir que pode morrer, ou que terá de passar meses trancado em casa e cancelar a festa de casamento. Instintivamente, Trump captou o apelo disso. Como a maioria dos eleitores americanos pensava diferente, ele acabou derrotado na eleição. Mas os negacionistas continuam sendo uma parcela ruidosa da população. É trágico ver a insistência de Trump e Bolsonaro no uso da cloroquina. No meio do horror das mortes, tudo o que ofereciam às pessoas era a crendice em uma droga milagrosa. Não é à toa que o estrago do vírus tenha sido tão forte nos Estados Unidos e no Brasil.
Por que as teorias conspiratórias e as fake news são tão usadas por políticos autoritários?
As teorias conspiratórias e a desinformação são úteis para os populistas porque minam a fé das pessoas nas instituições, na imprensa e na sociedade civil. Elas têm especial apelo para uma parte da população que se sente esmagada pelo turbilhão de informações despejado pela internet. Vivemos numa era em que as pessoas ouvem, leem e assistem a muita coisa sem saber como separar fatos de mentiras. Elas buscam desesperadamente quem simplifique o que não lhes faz sentido, e se tornam presas das campanhas de ódio.
Em contraponto ao populismo de extrema direita, vemos hoje um radicalismo dos movimentos identitários ligados à esquerda. Os extremos ideológicos se atraem?
Sem dúvida. Estamos diante de uma espiral de extremismos: o radicalismo da direita atiça o radicalismo na esquerda, e ambas redobram sua intolerância. Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em vez de focar no essencial, as pautas que unam as pessoas.
Seus amigos intelectuais, políticos e jornalistas na Polônia foram da euforia pós-comunista, nos anos 1990, à radicalização odiosa em questão de vinte anos. O que provocou a mudança?
Assim como os Estados Unidos e o Brasil, a Polônia passou por tumultuadas mudanças econômicas, sociológicas e nas formas de comunicação. E lá o caldo da polarização ganhou um veneno extra: o ressentimento de intelectuais, pensadores e jornalistas que não se sentiam aquinhoados na democracia. Muitos deixaram sua respeitável carreira para se tornar ideólogos do governo de extrema direita do partido Lei e Justiça. É como se os perdedores tivessem de repente sua vingança. O que os tornava ressentidos era a ausência de reconhecimento pelo status quo acadêmico, e o fato de estarem à margem do poder. Deixei de ser amiga de muitos.
“O radicalismo da direita atiça o da esquerda, e ambas redobram sua intolerância. Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em vez de focar no essencial”
Pessoalmente, foi difícil enfrentar essa radicalização?
Eu me desapontei com muitos intelectuais que eram perfeitamente razoáveis e se converteram em estridentes ideólogos do fundamentalismo católico que hoje domina a Polônia — o partido Lei e Justiça praticamente eliminou qualquer chance de as mulheres fazerem aborto legalmente e ataca a população LGBT. Há uma ex-conhecida acadêmica que tem um filho gay e hoje, na condição de pensadora do regime, abraça a homofobia. É melancólico ver uma mãe lutando por ideias que farão o próprio filho ser cada vez mais discriminado na Polônia. Não consigo entender.
A senhora foi signatária da carta aberta dos intelectuais americanos condenando a chamada cultura do cancelamento. Por que se engajou nisso?
Porque é muito feio o comportamento das gangues que perseguem as pessoas na internet. É comum se apontar o cancelamento como um fenômeno da esquerda, que ataca quem sai da linha politicamente correta, mas o fato é que ele existe também, de forma até mais deletéria, na direita. E é assustador constatar que a violência on-line pode descambar para agressões reais. Nos Estados Unidos, as ameaças radicais pró-Trump levaram um congressista crítico do ex-presidente, Adam Kinzinger, a andar armado por temer pela própria vida.
A senhora já foi cancelada?
Na Polônia, fui alvo de campanhas muito ativas de difamação. A TV estatal volta e meia propaga ataques contra mim e meu marido. Espalharam até a falácia de que eu faria lobby contra os interesses do país no exterior. Já me incomodei, mas aprendi a viver assim. Parei de me importar.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727
Luciano Huck & Anne Applebaum: 'Forças democráticas precisam se juntar e criar uma contranarrativa à política do ódio'
Para estudiosa em autoritarismo premiada com o Pulitzer, pós-pandemia exige refundar partidos e explicar como as instituições importam para a vida real das pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado de S. Paulo
Anne Applebaum observou de perto, reportou e analisou o colapso dos regimes totalitários comunistas do Leste europeu na virada dos anos 1980/1990. E tem observado de perto, reportado e analisado com argúcia a recente ascensão de governos de extrema-direita na Europa, especialmente na Polônia, onde passou a viver. A historiadora, que foi editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, é uma referência em estudos sobre o autoritarismo contemporâneo no Ocidente.
Por dois motivos, eu fui atrás de Applebaum, que hoje dirige um projeto de pesquisa sobre propaganda e desinformação na Universidade Johns Hopkins (Washington DC). Primeiro, porque ela lançou um dos livros mais cirúrgicos de 2020: O Crepúsculo da Democracia, em que ela traça o perfil de personagens europeus e norte-americanos que desembarcaram do projeto humanista lançado no fim da Guerra Fria e que aderiram à nova geração de ideologias iliberais. Segundo, porque parecem voltar a soprar no Ocidente as brisas de uma correção democrática. A vitória estrondosa de Joe Biden sobre Donald Trump, o maior símbolo do que eu chamo de tecnopopulismo, não é trivial e precisa ser entendida – até para ser emulada.
Essa norte-americana de 56 anos, ganhadora do prestigioso Prêmio Pulitzer, foi uma das primeiras a alertar para a transformação de conservadores que diziam acreditar na democracia liberal, no livre mercado e nos pesos e contrapesos do Estado de direito em um monstro indomável que se alimenta do nacionalismo econômico, da tentativa constante de controle sobre a mídia, a polícia e o Judiciário, do isolacionismo, da negação à ciência, dos ataques às minorias e do exercício constante do ódio.
Para Applebaum, não cabe chorar o leite derramado, mas se empenhar em identificar tais forças e rapidamente criar um movimento capaz de brecá-las. Movimento esse que, segundo ela, deveria nascer da refundação dos partidos e, sobretudo, da busca de sensos comuns. É sobre esse irresistível chamado para um reagrupamento político e para a instalação de uma contranarrativa a fim de deter os extremos antidemocráticos que converso a seguir com essa corajosa mulher.
Applebaum se junta, hoje, a outras figuras da vanguarda do pensamento nesta série de entrevistas do Estadão. Notáveis como a economista Esther Duflo (Nobel de 2019), o filósofo Yuval Harari, o guru digital Nandan Nilekani, entre outros, todos eles iluminadores do mundo pós-pandemia, capazes de nos fazer refletir – e, por que não, agir.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
- Rutger Bregman
- Fareed Zakaria
- Anne Applebaum
Luciano Huck: Você era aclamada como uma respeitada intelectual conservadora, de inclinação liberal, mas passou a ser vista como “persona non grata” por boa parte da direita na Europa e nos EUA. O que aconteceu?
Anne Applebaum: O movimento conservador se dividiu em dois nos últimos 10, 15 anos. Ainda existe uma centro-direita, a depender do país. Mas uma parte da direita se tornou muito mais radical. E, ao se radicalizar e se tornar dependente de novas formas de comunicação, ela me perdeu. E perdeu muitas outras pessoas também, embora tenha ganho novos seguidores. Na maioria dos países ocidentais, a direita, tal qual a esquerda, sempre foi uma espécie de coalizão, com diferentes correntes dentro dela. O que aconteceu na última década é que a ala radical tomou conta dessa coalizão. E isso ocorreu de várias formas em muitos países.
Luciano Huck: Está cada vez mais difícil pensar sobre direita e esquerda nesse quadro de radicalização extrema. Mesmo que tenhamos 50 ideias alinhadas, uma única ideia dissonante vira pretexto para pedir cancelamento. Lendo sua obra, você já flertou com diferentes vertentes de pensamento. Como você enxerga essa questão hoje em dia?
Anne Applebaum: Os dois lados operam de formas diferentes, usando táticas diferentes, mas ambos buscam cancelar, desmerecer e descartar seus oponentes. Veja a forma como Donald Trump se livrou de tantos republicanos moderados, de qualquer pessoa que fosse mais centrista e que não concordasse com ele. Ele os atacava no Twitter, para depois seus seguidores os atacarem no Twitter. De certa forma, é a versão direitista iliberal do que tem sido feito pela esquerda no meio acadêmico. Ambos os lados políticos se tornaram mais radicais, parcialmente pelo fato de que agora as pessoas estão performando umas para as outras nas mídias sociais. As discussões que antes aconteciam em quartos pequenos agora acontecem na frente de todos. Isso fez com que se tornassem caricaturas ou cartuns.
“A grande ameaça às democracias é o tecnopopulismo, cujos líderes atuam para corroer o Estado por dentro, como cupins, tão logo chegam ao poder”Luciano Huck
Luciano Huck: A grande ameaça às democracias, a meu ver, não se dará por meio de tanques de guerra e de soldados. Estamos vivendo o perigo dos golpes “botox”. Governos eleitos democraticamente, em sua maioria com uma narrativa populista, usando as falhas disfuncionais das redes sociais para amplificar suas mensagens e corroer o Estado por dentro, como cupins. Tome o caso da Polônia. Em 2010, era um dos países mais promissores da União Europeia – uma ilha de inovação, educação e empreendedorismo. Hoje, dez anos depois, temos um governo xenófobo, antidemocrático, antissemita, ultraconservador, extremista. Qual o aprendizado para o Brasil não seguir a mesma perversa trilha?
Anne Applebaum: Bom, o primeiro passo é identificá-los e não elegê-los. Porque, assim que eles ganham a eleição, eles começam a mudar as instituições. O partido que governa a Polônia nem sempre foi radical e extremista. Durante muito tempo, ele pareceu um partido conservador normal, com base ampla e ambições “mainstream”. Foi desse modo que ele ganhou a primeira eleição, em 2015, aliás. O problema foi que, assim que ele tomou o poder, ele começou, como você disse, a alterar o sistema. Ele assumiu o controle da televisão estatal, que era neutra e um tanto tediosa, e a transformou em uma plataforma de campanhas de difamação contra seus oponentes, de forma bastante unilateral e tendenciosa. Ele dominou o tribunal constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar como a Justiça funciona. E está tentando levar isso ainda mais longe, depois da reeleição.
Para o Brasil, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, eu diria para que não os deixem dominar a mídia. E, sobretudo, que não os deixem alterar o sistema judicial. Mas o fundamental é tentar convencer as pessoas o quanto antes de que essas coisas que parecem um tanto abstratas importam. Juízes em suas togas, em algum lugar distante, em um tribunal… o que isso tem a ver comigo? Isso pareceu muito remoto para as pessoas na Polônia. Só mais recentemente, quando esse tribunal ilegítimo começou a tomar decisões controversas, como mudar a lei do aborto, é que muitos jovens perceberam que “opa, isso me afeta”. Logo, convencer pessoas rapidamente de que todo tipo de mudança institucional as impacta é muito importante. Na Polônia, a oposição falhou em fazê-lo.
Luciano Huck: O salto qualitativo da Polônia comunista para a Polônia livre e democrática foi gigante, potente a olhos vistos. Agora o país vive um retrocesso também gigante. Difícil de entender. No Brasil, a sociedade é muito desigual, principalmente a desigualdade de oportunidades, que, somada à corrupção endêmica e à falta de um projeto de país, justifica o descontentamento da maioria da população em relação à política e aos políticos. Isso torna o terreno fértil para o nascimento de narrativas antiestablishment, tecnopopulistas. As narrativas populistas vão sempre no caminho mais fácil: “Tem muito crime? Então, vamos armar a população”. O que justificou o surgimento e a eleição de extremistas na Polônia?
Anne Applebaum: Na Polônia, não temos uma sociedade muito desigual. E temos também uma sociedade em que todo mundo, todo mundo mesmo, dos pobres à classe média, às classes mais ricas, está melhor hoje do que há 20 anos. No entanto, os poloneses não estão melhores do que os europeus ocidentais, como os alemães. A raiva aqui é uma raiva com a desigualdade comparativa frente aos países vizinhos. Muitos poloneses passaram a questionar o fato de continuar “atrás” na Europa mesmo após 20 anos de capitalismo e democracia. Essa é uma coisa. Em segundo lugar, e isso é muito diferente do Brasil, é que temos um problema de emigração, não de imigração. Após a queda do comunismo, em 1989, e após a entrada da Polônia na União Europeia, em 2005, muitas oportunidades de trabalho se abriram em outros países. Muitos poloneses foram embora para trabalhar na Inglaterra, na Suécia, na Alemanha. A percepção para muitas pessoas, particularmente para as parcelas mais pobres do país, é a de que nossos filhos estão desaparecendo e o interior do país foi se esvaziando. Em muitos casos, tradições foram perdidas. Isso deu a sensação de que algo essencial sobre o país se perdeu. Isso costuma ocorrer em países durante o processo de modernização. Quando as coisas mudam muito rapidamente, algumas formas de viver de 10, 20 ou 30 anos deixam de existir. Aquela infância de que as pessoas se lembram já se foi. O jeito que elas cresceram já não é o mesmo jeito que seus filhos estão crescendo.
Então, o sentimento de inferioridade comparado ao Ocidente e essa sensação de que os filhos estão sumindo e as coisas estão ficando irreconhecíveis levaram as pessoas na direção de uma política nacionalista, raivosa e emocional. Como a política se moveu de discussões e debates no mundo real para o mundo online, a qualidade e a natureza do debate político mudaram e simplesmente favorecem pessoas raivosas, emocionais e que conseguem falar em frases curtas. E isso aconteceu em todo lugar. O tipo de campanha política conduzida nas redes sociais na Polônia é o mesmo do que foi feito no Brasil e é o mesmo tipo de campanha que Donald Trump conduziu nos EUA. A política mudou de algo que acontece na vida real para algo que acontece na internet – e isso é uma grande oportunidade para, como você disse, tecnopopulistas.
Luciano Huck: Seja a União Europeia, que hoje exige da Polônia e da Hungria que garantam o estado democrático de direito para ter acesso a recursos emergenciais pós-pandemia. Sejam as grandes potências mundiais engajadas na construção de uma economia mais limpa, que hoje pressionam o Brasil por um compromisso de fato com a preservação ambiental. Como você avalia essa atuação internacional de defesa da democracia, esse exercício global de pesos e contrapesos?
Anne Applebaum: Eu acho que algumas pressões são úteis, mas outras, não. A União Europeia teve muitos problemas em entender como reagir à Polônia e à Hungria, porque ela não foi estabelecida para punir seus próprios membros. Um dos grandes erros que o mundo liberal cometeu, sejam partidos políticos, jornalistas e, em alguns casos, chefes de Estado, como Angela Merkel e outros líderes da Europa, foi o de não pensar mais a fundo sobre como criar uma contranarrativa. Essa nova extrema-direita, tecnopopulista como você citou, trabalha junta, conectada, e compartilha táticas, consultorias, ideias de propaganda. Aqui na Polônia temos quatro partidos de oposição que não se unem em torno de uma mensagem comum. Mesmo o Partido Democrata nos EUA tem duas ou três diferentes facções, com dificuldade de se unir. Criar uma mensagem única em torno dessas grandes ameaças à democracia e encontrar formas de trabalhar juntos, além das fronteiras, para ajudar uns aos outros, é algo que ainda não foi feito. As forças democráticas ainda encaram a política como algo doméstico, nacional, feito apenas dentro das fronteiras. Mas a extrema-direita não pensa assim: ela atua internacionalmente, o que é estranho e paradoxal, já que é nacionalista. Até os trolls online da direita fazem as mesmas coisas em diferentes países. O centro, a centro-direita, a centro-esquerda, os liberais, os movimentos verdes, eles não entenderam que precisam trabalhar juntos, contra-atacar juntos
Luciano Huck: A eleição de Joe Biden, nos EUA, tem qual efeito nessas democracias iliberais e populistas que se multiplicaram mundo afora?
Anne Applebaum: Ela é relevante, mesmo que apenas simbolicamente. O simples fato de termos Trump como líder dos EUA era uma inspiração para a extrema-direita em todo o mundo. Seria mais importante se, como parte de sua política externa, Biden começasse a juntar líderes de democracias ao redor do mundo para ajudar a criar uma nova narrativa para promover a democracia e os valores liberais. Seria mais do que um projeto de mídia ou de diplomacia. É profundo. O que as nossas democracias podem fazer juntas? Podemos reformar a internet juntos? Podemos constranger as plataformas de internet juntos? Podemos juntos parar a lavagem de dinheiro internacional e o dinheiro sujo que distorcem toda a nossa democracia? Dizer que somos todos uma democracia não é o bastante. Precisamos de novos grandes projetos que mudem a forma como a política e a sociedade funcionam e com os quais as pessoas se identifiquem. Biden terá de confrontar a maior crise econômica na história americana recente, a maior crise de saúde pública da história americana recente, terríveis e maculadas relações ao redor do mundo, graças à desastrosa administração de Donald Trump. Ou seja, terá um problema atrás do outro. Mas parece que está surgindo o entendimento em Washington de que acabou a ideia de que os EUA, sozinhos, podem liderar o mundo democrático. Os EUA precisam trabalhar juntos com aliados e parceiros, talvez até com grupos de oposição, no Brasil, na Rússia ou em outros lugares, para atingir os objetivos que pretende.
“Temos uma relação exageradamente passional com os políticos. Deveríamos estimular a capacidade de análise de ideias e projetos, como clientes-cidadãos”Luciano Huck
Luciano Huck: Enxergo alguns desses governos tecnopopulistas, mesmo sendo de extrema-direita, voltando os olhos para Vladimir Putin. Não me assustaria o atual governo brasileiro migrar de uma narrativa de subserviência a Trump para Putin.
Anne Applebaum: É possível. Certamente é o que vai acontecer na Hungria e em alguns outros países na Europa Oriental. Não na Polônia, que continua a ter medo de Putin. Mas, sim, é possível.
Luciano Huck: A pandemia trouxe para o centro do debate temas muito importantes que não tinham o devido protagonismo. Combate às desigualdades, racismo, antirracismo, feminicídios, igualdade de gênero. Aliás, as melhores gestões da crise sanitária e econômica da covid-19 foram lideradas por mulheres, casos de Angela Merkel e Jacinda Ardern. Como você, como uma mulher de voz potente e ouvida ao redor do planeta, enxerga essa questão?
Anne Applebaum: Na minha visão, você deveria fazer a pergunta ao contrário. A pergunta deveria ser “Os países que estão preparados para eleger mulheres a posições de poder se saíram melhor na pandemia?”. Em outras palavras, não acho que foi o fato de as líderes serem mulheres, mas o fato de que esses países estavam maduros para ter mulheres em cargos de liderança. O que ficou claro na pandemia é que os países que se saíram melhor foram aqueles com maiores índices de confiança no poder público e na ciência. Olhando apenas para democracias: Nova Zelândia, Alemanha, Coreia do Sul, Taiwan, em todos esses casos havia uma questão de crença, de fé na burocracia pública, nos serviços e servidores públicos.
Luciano Huck: Estar no debate público exige um grande estoque pessoal de felicidade. É preciso ter muita energia para gastar e não se deixar derrubar. Você está nessa arena há um bom tempo, se envolvendo em temas espinhosos. Como é isso para você?
Anne Applebaum: Essa é uma pergunta interessante, porque é algo que mudou muito. Se você é político, jornalista ou alguém com esse tipo de atuação, sempre foi normal encontrar pessoas que discordam de você, algumas delas desagradáveis. Mas até uns dez anos atrás você não era o foco da raiva, do ódio dessas pessoas. Hoje, se você está na vida pública, em qualquer posição, se você for uma celebridade, um popstar, um atleta, tendo ou não a ver com política, você terá de se acostumar com a existência de campanhas negativas nas redes sociais, desse lado feio da natureza humana, que vem à tona especialmente quando as pessoas conseguem ser anônimas. Você precisa aprender a lidar com isso. A minha forma é simplesmente ignorar os ataques, mas é muito difícil as pessoas aprenderem isso. Você deve ter o mesmo problema, não? Espero que algum dia encontremos uma maneira de regular as plataformas sociais, não censurá-las, mas de encontrar alguma forma, algum algoritmo, que favoreça o discurso construtivo e um melhor diálogo. Esse é o meu grande desejo para a próxima década. Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio. E me preocupa que a qualidade da vida pública sofra por causa disso, especialmente em democracias.
“A política permite reagrupamentos, e devemos tirar proveito disso. Pense não somente em quem são seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado.”Anne Applebaum
Luciano Huck: Ultimamente, as pessoas têm criado relação exageradamente passionais com os partidos e os políticos. Em vez de uma relação de noivado, deveríamos construir uma relação de clientes-cidadãos, com uma melhor capacidade de análise de ideias e projetos. Como se estivéssemos contratando um serviço, e não fazendo um pedido de casamento. Como você enxerga a formação de novas lideranças e o futuro da política partidária?
Anne Applebaum: Concordo com você. Estamos desesperadamente necessitados de um novo modelo de partido político. A social-democracia na Europa nasceu de sindicatos e grêmios, de pessoas reais se encontrando no trabalho. A democracia cristã, que compõe os principais partidos de direita e centro-direita na Europa, surgiu de movimentos baseados na igreja, não na religião, mas em grupos religiosos, pessoas reais que se conheciam em clubes da juventude católica e fóruns assim. Hoje, não está mais clara a conexão dos partidos com as pessoas. Eles perderam sua raiz e seu propósito. E, nesse sentido, não surpreende que as pessoas estejam começando novos movimentos políticos na internet. As pessoas agora experimentam a política de forma online e procuram pessoas online com quem possuam coisas em comum. Há um partido político na Europa que nasceu de um fórum de discussão na internet, o Movimento 5 Estrelas, da Itália. Infelizmente, nunca teve políticas muito claras e atraiu pessoas aleatórias e líderes iliberais. Mas é uma experiência interessante: uma forma de juntar pessoas em torno de um determinado conjunto de problemas, discutir esses temas online e criar um movimento político significativo. Suspeito que vamos ver mais casos desse tipo. Se você conseguir fazer com que as pessoas se motivem a trabalhar em suas comunidades, focando em problemas reais em vez de problemas de guerra cultural, que só fazem as pessoas sentirem raiva, isso pode fazer com que novas pessoas entrem na política. Ainda precisamos de partidos, do contrário nossos sistemas parlamentares não funcionam muito bem. Mas concordo com você de que os partidos modernos, como eles existem hoje, não refletem mais uma visão coerente de mundo.
Luciano Huck: Além de perder a capacidade de liderar qualquer agenda global, durante a pandemia o Brasil tornou-se um país a ser evitado. Nosso fracasso no combate à doença, impulsionado pelo negativismo do governo, que também atropelou nossa cultura, nosso patrimônio histórico, somado à destruição da Amazônia e a uma não política de defesa da floresta, o que afasta investidores relevantes, nos isolou do mundo e nos colocou nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica. Como você avalia a situação do Brasil?
Anne Applebaum: Eu não sou uma expert sobre o Brasil, embora já tenha estado aí e adoraria voltar. Mas a lição para o Brasil é a mesma para tantos outros países. É ridícula a ideia de que o Brasil conseguirá prosperar, se desenvolver e melhorar a vida de seus cidadãos ao se descolar do resto do mundo. Nenhum de nós consegue viver sozinho. A pandemia nos ensinou que estamos todos conectados. A começar pela rapidez do contágio, causada pelo fluxo global de viagens. Do mesmo modo, as vacinas e os remédios para a doença são soluções globais, serão distribuídas graças a instituições internacionais. São farmacêuticas americanas trabalhando junto a empresas alemãs; uma das principais empresas alemãs é liderada por um casal turco-alemão, que é imigrante; a testagem dessas novas vacinas e tratamentos foi realizada ao redor de todo o mundo, África do Sul, Brasil, EUA, Grã-Bretanha... Todos nós estamos absolutamente integrados no mundo, querendo ou não. Assim, se o Brasil deseja prosperar e os brasileiros querem que o seu país seja mais feliz e mais habitável, eles precisam estar integrados ao resto do mundo e precisam se perguntar se possuem um governo que os sirva nesse sentido. A Amazônia é o seu grande tesouro internacional. É o que vocês possuem que os distingue. Cuidar dela e investir nela, preservando-a para futuras gerações, é uma das maiores coisas que o Brasil pode fazer para se tornar uma grande nação. Imaginar que queimá-la vai contribuir de alguma forma para o bem-estar dos brasileiros é estranho e errado.
“Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio.”Anne Applebaum
Luciano Huck: No seu livro, você lembra uma passagem interessante da “sua turma de 1999”, usando uma festa de réveillon na sua casa como pano de fundo. Aquele grupo hoje em dia nem se cumprimenta em razão de divergências políticas e visões distintas sobre a democracia. Se você fizesse uma festa hoje na sua casa, qual seria o assunto? E como você imagina esse grupo daqui a 20 anos?
Anne Applebaum: A política promove reagrupamentos. Pessoas que antigamente eu considerava esquerdistas demais para conversar hoje são meus amigos. Pessoas que eram meus amigos agora estão em algum outro lugar. Esses reagrupamentos políticos acontecem periodicamente. Não há nada de estranho nisso. Na verdade, deveríamos tirar proveito disso. Acho que a lição da minha festa de 1999 é “tenha certeza que você terá sempre a capacidade de fazer novos amigos”. Ou, colocando de outra forma, “pense sempre em quem são os seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado”. Se o projeto é proteger a Amazônia, por exemplo, ou transformar a economia brasileira, observe ao redor para entender quais grupos sociais, quais pessoas, quais partidos políticos poderão ser os seus aliados, mesmo que você ainda não os conheça. Encontre novos aliados, faça novas coalizões. As velhas coalizões podem não ser mais as corretas.
Luciano Huck: Muito obrigado.