Angela Alonso

Angela Alonso: Um sinhozinho

É o cidadão de bem dos tempos bolsonaristas, sem máscara e com revólver na gaveta

O nome dele é Jack, mas podia ser um Zé. Sua boca é humana em corpo que, apesar do terno e gravata, é de macaco-prego. Está sendo interrogado por detetive loiro, acinzentado pelo nevoeiro do cigarro, num curta de David Lynch, em que tudo é branco e preto. Trata-se de "What Did Jack Do?" (2017).

Ali, ao seu costume, o diretor joga com o absurdo: o macaco-humano é acusado de crime. A cena remete ao corriqueiro nos grandes países escravistas, aqui, na África do Sul, nos Estados Unidos.

Num prolongamento simbólico da escravidão, a sujeição dos negros é precedida por seu rebaixamento ao mundo da natureza: em vez de pessoa, é visto como animal. E, como tal, é sempre suspeito e requer disciplinamento.

O raciocínio vive por aí. Quem o emitiu nesta semana foi Vinícius Pereira da Silva. Dos píncaros de sua parca eloquência tratou a porteira do prédio onde mora como um bicho: "Macaca! Chimpanzé! Chipanga!". Um adjetivo pareceu-lhe insuficiente. Talvez porque, de tanto uso, "macaco" tenha gastado parte da potência depreciativa, daí o recurso a outro símio conhecido e ao sinônimo inusual.

Tudo porque Silva não foi atendido de pronto. Recusou-se a se identificar na entrada da garagem, conforme a regra do condomínio, supondo que todo mundo deve reconhecer um Senhor. Decerto, se a porteira não verificasse a identidade do motorista, o xingamento viria do mesmo modo, por descumprir as ordens.

O sinhozinho goiano não mora em qualquer prédio, mas no Residencial M Times, duas torres inspiradas na "emblemática e pulsante Times Square", o sonho turístico brasileiro.

Foi lançado no mesmo ano do filme de Lynch. Nos anúncios, prometia o modo de vida da classe média alta, em projeto que "equilibra custo e benefício na medida certa para colocar sua família no coração de onde a vida acontece". Tem porcelanato e varanda gourmet. Tem elevador social e de serviço, de modo que o sinhozinho pode evitar a mistura. Cada um no seu quadrado.

Esse senhor é tipo conhecido. Bermuda longa, abdome proeminente, bíceps definidos envolvem sua prepotência desbocada: "Você não presta, desgraça. Você é uma merda, abaixo de zero", ouviu dele a porteira. É o cidadão de bem dos tempos bolsonaristas, sem máscara no rosto e com revólver na gaveta: "Vou meter minha arma na cintura e vou aí resolver".

Ameaçou porque, além de malograr o bem servir, a "chipanga" tampouco se submeteu ao castigo. Em vez de se sujeitar, gravou o ataque. Seu filme é tão surreal quanto os de Lynch. A imagem some, mas, em off, pelo interfone, a intimidação segue. O sinhozinho se declara policial, da classe dos que apertam pescoços até a asfixia.

Isso na semana do julgamento do assassino de George Floyd, outro crime racial filmado. Lá se viu o quanto instituições e lideranças políticas importam. Enquanto Trump congratulou os supremacistas do Proud Boys, Biden fez pronunciamento antirracista e recebeu a família enlutada de Floyd. Presidentes dão —num sentido ou noutro— o exemplo.

"Chipanga" é vocábulo antigo, como o clima do curta de Lynch. Mas cada história tem um desfecho. Jack tentou a fuga, a porteira encarou a briga. Denunciou o crime racial. Os sinhozinhos não vão mudar se não houver punição. As vítimas sim, vem mudando, como atesta a goiana.

"Eu espero que todo mundo que passou ou venha a passar por isso consiga denunciar, porque só assim a gente vai conseguir que essas pessoas nos respeitem e nos tratem como seres humanos".

*Angela Alonso é professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento


Angela Alonso: Andar de cima demora a cansar de Bolsonaro

Esquerda sozinha não fará verão em tentativa de impeachment de presidente

Cloroquinistas desfilaram de carro, e AI-cinquistas aglomeraram-se à roda do presidente, que tossia. É imponderável se sobreviverão à epidemia e ao desgoverno Bolsonaro, mas é certo que se creem invulneráveis ao vírus e às leis. O primeiro tem sido mais eficaz que as segundas em enquadrá-los.

O inusitado é duplo: são manifestações de rua em tempo de confinamento e usam técnica democrática contra a democracia.

Intriga pouco a sintonia entre AI-cinquistas e seu eleito. Discursos e ações de Bolsonaro ao longo de suas carreiras, a exitosa de político e a gorada de militar, testemunham, cristalinos, a devoção por ideias, líderes e métodos da ditadura. Quem votou nele concordou ou encheu os ouvidos de cera. O presidente horroriza, mas não surpreende.

Intrigante é a ausência de manifestação concertada dos contrários. O sentimento antigoverno de cerca de metade dos brasileiros não gerou grandes protestos de rua antes da Covid-19.

Os organizadores habituais de protestos nos últimos anos são de três campos, que ora ocupam a rua sozinhos, ora em pares e, excepcionalmente (em 2013), em trio. O autonomista, de movimentos sociais recentes em torno de identidades sexuais, liberação de costumes e direitos sociais, tem pouca representatividade, com predomínio de ativistas saídos de um estrato da elite social —jovem, branco, cosmopolita, altamente educado. É antibolsonarista, mas carece de capilaridade.

Quem é representativo e sempre levou gente à rua é a esquerda socialista, campo de muitos movimentos em torno de direitos do trabalho e da redistribuição. Anda, porém, em crise. Durante os governos petistas, vários líderes seus viraram formuladores ou administradores de políticas. Tanta gestão secou o ímpeto de mobilização.

Pós-Dilma, veio um duplo baque. Uns foram atrás de emprego fora da política. Outros viram-se penalizados financeiramente, com a mudança da legislação sindical. Esse campo, então, tem as razões para contestar o governo, mas carece dos meios para orquestrar grandes eventos.

O terceiro campo é colcha de muitos retalhos antipetistas: movimentos de defesa da propriedade, por segurança, redução da intervenção do Estado na economia e na vida privada, costumes tradicionais, combate à corrupção. Aqui a equação é inversa: abundam recursos, mas há menos motivos.

Sua facção liberal não saiu à rua por estar de acordo com a condução de economia. A ala conservadora viu-se atendida pelo foco moral de Damares e similares. Já a patota autoritária anda feliz da vida. São os AI-cinquistas da carreata de domingo passado. Sectários de Bolsonaro, aferram-se a mesmas crenças e métodos.

Não são esses os janeleiros. É fácil saber contra quem as panelas batem e as hashtags sobem, mas é difícil coordenar o protesto. Até aqui, líderes socialistas e autonomistas não chamaram a si o serviço.
Talvez porque quem também paneleia agora são os que panelaram contra Dilma. Arrepiados com o trote autoritário, tiraram de novo o inox do armário. Porém, lideranças liberais e conservadoras, que poderiam coordená-los, embora imersos nas panelas financeira e midiática, não fritaram Bolsonaro com o fogo alto que acenderam no “tchau, querida”.

E o farão? Parte dos líderes de movimentos liberais e conservadores são empresários ou com eles se conectam. E não estão sendo empurrados por essa sua base. Sondagem Datafolha aferiu que 65% dos empresários seguiam vendo no presidente um líder no começo do mês. No pós-Mandetta, escalaram a 70%. O andar de cima demora a cansar de Bolsonaro.

Assim, falta uma peça do quebra-cabeças dos bem sucedidos impeachments de Collor e Dilma: apoio amplo do empresariado. Pode ser que com a queda de Moro e o esvaziamento de Guedes o vento mude.

O mexe-mexe no governo pode encaixar a outra peça, o laço entre mobilização social e sistema político. Até aqui a frente de políticos abertamente contra Bolsonaro era de esquerda, o que limitava sua penetração social. Mesmo sua capilaridade nos movimentos autonomistas e socialistas era relativa, já que os primeiros desconfiam de instituições e os demais se dividiam entre seus pequenos partidos e o PT. Mas agora o PT se candidatou a liderá-los, ao abraçar o impeachment.

Contudo, a esquerda sozinha não fará verão. Quando o longo inverno do isolamento acabar, quem, deste lado, quiser lotar a rua contra o presidente vai ter que engolir o “eu avisei”, para persuadir líderes liberais e conservadores. Estes últimos, por sua vez, terão de engolir sapos —com barba ou sem— se quiserem salvar o Estado de Direito. Aliança abstrusa, mas, nestes tempos, o inverossímil adquiriu plausibilidade. O 1º de Maio será um ensaio dessa concertação, da CUT a Maia, de FHC a Lula.

Isso, claro, se até lá sobrevivermos à pandemia, como indivíduos e como democracia.

*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.


Angela Alonso: A volta do Estado

Adversários do Estado passam a defende-lo com a pandemia; hoje nenhum governo pode se dar ao luxo de ser liberal

Quando definir fica difícil, filiar nova safra a cepa velha é um conforto. O prefixo “neo” salva a pátria. A Covid-19 trouxe novo membro à família, que já tem neofascismo, neoliberalismo e que tais: o neokeynesianismo.

Subitamente, adversários do Estado entraram a defendê-lo. Espera-se que coordene iniciativas, financie os gastos com a crise, dê o rumo. Toada na contramão do que se dizia em versos e colunas de jornal até outro dia.

Na última década, a sociedade se mobilizou e muito para reclamar do Estado —e não ficou na conversa. Ações diretas proliferaram, desde coletivos culturais, sociais e políticos até o empreendedorismo cívico, no gênero empresário social ou ambientalmente responsável, e o religioso, que movimenta cultura e economia de autoajuda entre fiéis. Todos martelando a autogestão da vida coletiva pelos cidadãos como superior à estatal.

Duas retóricas difundiram a ideia. Uma é a da autossuficiência da ”sociedade civil”, que, se bem organizada, proveria tudo —bens, serviços etc.— mais e melhor que o Estado. Outra é a do autointeresse. Se o Estado parasse de meter o bedelho, empreendedores de “espírito animal” —opostos dos funcionários parasitas— venceriam a luta pela vida, gerando uma sociedade repleta de prósperos empresários.

Ambas deslegitimaram o Estado como gestor da vida coletiva, demandando protagonismo para a ágil, eficaz e moralmente superior sociedade civil. O Estado era o inimigo. Corrupto e ineficiente, desmereceria a confiança, o poder e os impostos dos cidadãos. Melhor reduzi-lo ao mínimo guedesiano.

Ante o vírus, a linha do autointeresse insistiu no individualismo: isolar-se, munindo-se de grandes estoques, e deixar à livre iniciativa quem mal mora, ou nem mora —e que não tem para comer hoje, que dirá para estocar papel higiênico. Esses “loosers” deveriam é voltar logo ao trabalho de servir o andar de cima.

Já a retórica da autossuficiência impulsiona ações solidárias de empresas, associações civis e cidadãos de estratos médios e altos e bem-educados. Precisaram, quase todos, da pandemia para descobrir a miséria que grassa há dois séculos, com sua anuência ou vista grossa.

Das boas intenções nasceram muitas iniciativas meritórias, mas estão em dissonância com seu discurso da inutilidade do Estado, pois se coordenam ou se subordinam a políticas e órgãos estatais. Afinal quem está respondendo centralmente à emergência médica é o Estado, aqui como mundo afora.

O fato de termos um presidente incapaz torna mais nítida a distinção entre Estado e governo. O que está funcionando não é o governo Bolsonaro, é o Estado brasileiro, sua burocracia e o conjunto de regras e políticas públicas construídas desde a Constituição de 1988, que fizeram do sistema de saúde brasileiro uma referência internacional.

É esse aparato que impostos, dos quais a retórica do autointeresse reclama, financiam. A indignidade das condições de vida de tantos brasileiros, recém-descoberta por ricos de bom coração, pode ser não apenas mitigada, como extinta com políticas estatais —como já o demonstrou o Bolsa Família. O Estado tem capacidade para isso. Claro, desde que o governo não atrapalhe com o discurso neoliberal, uma insensatez nas circunstâncias, embora combine com presidente insensato.

Para agir, no entanto, o Estado precisa de recursos. Hora de grandes empresas que, ao longo de décadas, beneficiaram-se com políticas protecionistas, baixos salários e concessões governamentais, devolverem à administração estatal. Idem para fundações e igrejas, alimentadas por renúncia fiscal.

Por mais louvável que seja, a mobilização cidadã corre o risco de ser efêmera. Quando acabar a pandemia, a maioria dos cívicos solidários vai retornar energias e moedas para seus projetos e bancos, reconfortados com a contribuição episódica. Reinstalada a zona de conforto, logo tornará a cantilena contra a corrupção e os impostos, enquanto os pobres ficam lá no seu histórico cercado, o do esquecimento.

Hoje nenhum governo pode se dar ao luxo de ser liberal, com “neo” ou sem ele. Se virá outro New Deal, novo Plano Marshall ou neokeynesianismo, tanto faz. Num país de abissal desigualdade, políticas públicas são cruciais —e não apenas nesta emergência.

O Estado deve operar como redistribuidor de recursos e oportunidades. A parte bem-intencionada da sociedade do andar de cima ajudará muito se, em vez de difundir a retórica antiestatista, se comprometer com esse projeto.

*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.