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Andrea Jubé: Bolsonaro e os presidentes que liam

Temer abrigou Moreira sem mexer na biblioteca

O Brasil tem dois ex-presidentes com assento na Academia Brasileira de Letras (ABL): José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Juscelino Kubitschek passou perto da instituição: em 1975, perdeu a eleição para a cadeira nº 1 por dois votos para o goiano Bernardo Élis.
Ao contrário de muitos de seus antecessores que eram leitores apaixonados ou ao menos, avalistas de políticas culturais e de estímulo à leitura, a relação do presidente Jair Bolsonaro com esse universo é de descaso ou desconforto.

Em novembro, passou despercebido que pela primeira vez em 25 anos, o presidente não anunciou a Ordem do Mérito Cultural, a principal condecoração do setor, que prestigia artistas de todos os segmentos: literatura, artes plásticas, teatro, cinema e música. No Dia Nacional da Cultura de 2019, Bolsonaro comandou cerimônia de balanço dos 300 dias de governo.

Na semana passada, o presidente irritou-se com perguntas sobre a reforma da biblioteca do Planalto para abrigar o gabinete da primeira-dama Michelle Bolsonaro. “Estão descendo a lenha que a biblioteca vai diminuir em vez de elogiar a primeira-dama”, reclamou, e “deu uma banana” para os jornalistas.

No mês passado, Bolsonaro criticou os livros didáticos e prometeu que em sua gestão, “virão com a bandeira do Brasil na capa, o hino nacional e um estilo mais suave”. Depois, soltou a frase emblemática: “Os livros hoje em dia, como regra, é [sic] um amontoado de muita coisa escrita”.

Há anos Bolsonaro reitera que seu livro de cabeceira é a “Verdade Sufocada”, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de torturar presos no DOI-Codi. Nunca citou outro título. Seu desprezo pelo universo artístico, especialmente literário, contrasta com a postura de muitos de seus antecessores.

Depois que transmitiu o cargo para o general Costa e Silva, o marechal Castello Branco planejava se dedicar à leitura dos clássicos da literatura universal e a escrever suas memórias, conforme relato de Lira Neto na biografia do primeiro presidente do regime militar.

É singular que Castello tenha passado os seus últimos dias na fazenda da escritora Rachel de Queiroz, no Ceará, de quem era amigo próximo. Mas ele viria a falecer quatro meses após deixar o cargo, vítima de acidente aéreo. Entre os destroços do bimotor, próximo ao seu corpo, encontraram um exemplar da primeira edição de “Iracema”, autografado pelo próprio José Alencar. Era um presente de Rachel a um terceiro, mas ela receava que Castello o surrupiasse para incorporá-lo à sua biblioteca.

Juscelino Kubitschek prezava especialmente a companhia de escritores. Declarava que nunca recebeu denúncias de corrupção envolvendo sua equipe, que se não estava trabalhando, estava em processo de criação, sem tempo para atos de improbidade.

O ministro da Casa Civil de JK era o escritor e crítico literário Álvaro Lins; o secretário de Imprensa era o escritor mineiro Autran Dourado; e seu conselheiro pessoal e redator de discursos era o poeta Augusto Frederico Schmidt. Subchefe de gabinete, o escritor Cyro dos Anjos redigiu uma das mensagens anuais ao Congresso a quatro mãos com o antropólogo Darcy Ribeiro.

Meses antes, no exercício do mandato de governador de Minas Gerais, Juscelino esteve com Getúlio Vargas às vésperas do gesto fatal. Getúlio foi a Belo Horizonte para a inauguração de uma usina e aceitou o convite para pernoitar no Palácio das Mangabeiras. Insone, tomado pela angústia, foi flagrado por Juscelino com um exemplar de Eça de Queirós nas mãos. “Nunca durmo sem antes ler um pouco”, justificou, em passagem que consta do último volume da trilogia “Getúlio”. Doze dias depois, daria cabo da própria vida.

José Sarney foi jornalista, é poeta e escritor, autor, entre outros títulos, de dois romances: “Saraminda” e “O Dono do Mar”. Sociólogo e professor universitário, FHC publicou dezenas de obras nas áreas de sociologia e ciência política. Nos últimos anos, assinou quatro volumes de seus diários na Presidência.

Dilma Rousseff e Michel Temer são leitores ávidos e frequentes. Sarney convenceu Temer a recriar o Ministério da Cultura e foi autor da Lei do Livro, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que regulamentou o setor literário e instituiu programas de fomento à leitura.

Na abertura da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2004, Lula fez a infeliz comparação de um livro a uma esteira de ginástica: “Dá preguiça começar, mas depois de vinte minutos a gente vê como é importante.”

Com o tempo, Lula se converteria à leitura. Divulga-se hoje, equivocadamente, que ele começou a ler na prisão em Curitiba. Na verdade, ele se tornou um leitor frequente em 2011, quando se submeteu ao tratamento do câncer na laringe. Na ocasião, leu as biografias de Getúlio, João Goulart, Franklin Roosevelt, Nelson Mandela.

Num país com problemas candentes como desemprego e profunda desigualdade social, desmontar a biblioteca do palácio parece uma filigrana, mas é um aceno ruim para um governo que almeja entrar para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A instituição responde pelo Pisa, avaliação internacional que testa estudantes nas áreas de leitura, matemática e ciências. Em leitura, o Brasil ficou no 58º lugar no ranking de 80 países na última prova. Um relatório do Banco Mundial estimou que, nesse ritmo, o Brasil vai demorar 260 anos para atingir o nível de países desenvolvidos em leitura.

Quando Michel Temer criou a Secretaria-Geral da Presidência para acomodar Moreira Franco no Planalto, desalojou a Subsecretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, que passou a funcionar no prédio da Vice-Presidência.

Com o deslocamento do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para o Ministério da Economia, há gabinetes vazios no Planalto que poderiam acomodar a primeira-dama e preservar o espaço de leitura, memória e pesquisa.

O Brasil pode ser admitido na OCDE mesmo com mau desempenho no Pisa e uma massa de analfabetos funcionais. Mas será algo como chegar a uma festa sofisticada, com trajes rotos e sapatos sujos, pela porta dos fundos.


Andrea Jubé: O troca-troca no governo Bolsonaro

Cresce pressão pela substituição de Gustavo Canuto

O presidente Jair Bolsonaro foi aconselhado a aproveitar a nomeação da atriz Regina Duarte para a Secretaria de Cultura para deflagrar mudanças no primeiro escalão que são cogitadas há meses.

É essa a expectativa para o desembarque de Bolsonaro hoje em Brasília, após a viagem à Índia, que está causando frisson (para citar Tunai, morto na última semana) entre autoridades e políticos influentes na Esplanada.

Muito além da controversa recriação do Ministério da Segurança Pública, que induz ao confronto direto com o superministro Sergio Moro, evoluíram nos bastidores articulações para substituir os ministros do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, e da Educação, Abraham Weintraub.

Bolsonaro é avesso a mudanças. Em dezembro, disse que não faria reforma ministerial. “No meu governo não tem troca-troca”. Mas o risco de uma septicemia na área educacional e de novas crises com o Congresso em ano de reformas o obrigam a refletir.

Uma fonte do governo ressalva que não se cogita uma “reforma ministerial”, mas o que se chama nos bastidores de “freio de arrumação” para recolocar áreas estratégicas nos trilhos, como a Educação, e afinar a relação com parlamentares, já que o Desenvolvimento Regional abriga os programas de maior apelo eleitoral, depois do Bolsa Família.

Em dezembro, em uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), Bolsonaro afirmou que estava disposto a substituir Canuto, segundo relato de uma fonte do DEM. O sucessor seria um nome avalizado pelo Centrão (DEM, MDB, PP, PL, SD, Republicanos), que comandou a pasta em gestões anteriores.

Em ano de eleições municipais, com o Congresso esvaziado a partir de junho, interessa ao presidente aparar as arestas com os parlamentares para garantir, senão a aprovação, o avanço das reformas no Legislativo: tributária, administrativa e três emendas constitucionais (PECs): emergencial, do pacto federativo e dos fundos infraconstitucionais.

O Desenvolvimento Regional - que veio da fusão da Integração Nacional e Cidades - é um dos mais cobiçados da Esplanada. Com orçamento de R$ 14 bilhões, pilota políticas de forte apelo popular, como o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), e estratégicas para o Nordeste, por meio da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), que destina recursos para prefeituras da região e do norte de Minas Gerais.

No fim do ano, cresceu a insatisfação no Planalto com Canuto. Bolsonaro ficou contrariado porque o ministro autorizou a execução de emendas extraorçamentárias - recursos transferidos às prefeituras indicadas pelos parlamentares - à revelia do palácio.

Paralelamente, o ministro enfrenta a resistência da equipe econômica. O ministro Paulo Guedes torce o nariz para o projeto de Canuto de instituir vouchers no MCMV para a compra ou reforma de moradias populares.

Nessa conjuntura adversa, Canuto ainda entra em rota de colisão com os parlamentares ao tentar retirar das prefeituras a condução do processo de seleção dos beneficiários, transferindo-a ao Ministério da Cidadania.

Uma mudança dramática em pleno ano de disputa municipal porque as prefeituras compartilham a atribuição com os governos estaduais, que cedem terrenos ou fornecem equipamentos para os complexos habitacionais.

Está em jogo o poder de prefeitos, governadores e parlamentares de influir na disputa por meio do programa.

Embora associado ao governador do Pará, Hélder Barbalho (MDB), de quem foi secretário-executivo na Integração Nacional, Canuto é considerado um quadro técnico. Engenheiro, bacharel em Direito e funcionário público de carreira, foi escolhido após se destacar no governo de transição.

Enquanto ele permanece na cadeira, políticos influentes que no passado indicava o titular de seu posto, acomodaram apadrinhados em postos-chave na Codevasf.

O diretor-presidente do órgão, Marcelo Medeiros, foi indicado pela cúpula do DEM. O líder do partido, deputado Elmar Nascimento (BA), emplacou o irmão, Elmo Nascimento, na Superintendência Regional em Juazeiro (BA).

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), indicou Aurivalter Cordeiro para a superintendência em Petrolina (PE), sua base eleitoral. O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), indicou o superintendente regional em Teresina, Inaldo Pereira, e o diretor de revitalização das bacias hidrográficas, Fábio Miranda.

A pressão pela substituição de Canuto remonta a maio do ano passado, em meio às tratativas pela votação da reforma da Previdência. A proposta era recuar da fusão e recriar as pastas das Cidades e da Integração. Os deputados chancelariam nome do ex-titular da pasta Alexandre Baldy para as Cidades. Aos senadores caberia a indicação de Fernando Bezerra para a Integração - ele comandou o ministério na gestão petista.

Bolsonaro confirmou a reunião com Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para tratar do tema, mas alegou que o pleito vinha das entidades representativas dos prefeitos. A opinião pública não engoliu a história e a articulação deu em água. Oito meses depois, voltou à pauta.

Weintraub está nas cordas há meses, mas a gravidade da crise implicando o processo de Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e a correção das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) - ações de maior visibilidade da pasta - podem recair sobre ele com a força de um nocaute.

A Justiça Federal suspendeu a divulgação dos resultados do Sisu depois que o MEC reconheceu erro na correção do Enem. Weintraub disse que a falha afetou cerca de 6 mil candidatos. O episódio será explorado na volta do Congresso semana que vem.

No governo que “não tem troca-troca”, Bolsonaro fez quatro substituições em um ano: duas na Secretaria-Geral, uma na Secretaria de Governo e outra no MEC. Nada impede que novas trocas se avizinhem.


Andrea Jubé: A vida noturna dos políticos

Texto da Câmara deve prevalecer na reforma tributária

Uma das tiradas famosas de Ulysses Guimarães era de que a verdadeira política se faz à noite, depois que se encerram as votações no Congresso. O palco não é mais o Piantella, mas a regra continua atual: até hoje, depois das sessões de maior quórum no plenário às terças e quartas-feiras, os políticos se dispersam entre concorridos jantares.

Os cenários variam: as residências oficiais dos presidentes da Câmara e do Senado, casas de parlamentares ou empresários. Só o licor de pera de Ulysses é que deixou o cardápio.

Na noite de terça-feira, a estiagem após uma sucessão de temporais favoreceu a comemoração da aprovação da nova Lei de Franquias no Senado e mais uma rodada de articulações da reforma tributária.

O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), trocou cumprimentos, circulou entre os convidados, e saiu à francesa. “Ainda tenho de passar em mais dois jantares”, justificou.

O atual marco regulatório das franquias é um anacronismo porque uma lei de 25 anos rege um setor marcado pela inovação - pressionado por um comércio digital inimaginável para uma legislação de 1994 -, que hoje responde por 2,7% do PIB e gerou cerca de 1,4 milhão de empregos diretos neste ano. A projeção de faturamento para este ano é de 7% em relação a 2018, enquanto a economia brasileira deve crescer 1,1%.

Longe da atmosfera de polarização que sobrecarrega o ar brasiliense, o ambiente no jantar promovido pela Associação Brasileira de Franchising (ABF), regado a música, vinhos nobres e garçons solícitos, era ameno e propício às articulações bilaterais.

Instado a discursar, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), deixou afoito o canto reservado em que interagia com o senador Dário Berger (MDB-SC). Na fala de improviso, reafirmou o compromisso com o prosseguimento das reformas econômicas, como a tributária.

O clima entre Alcolumbre e a relatora do projeto, a senadora Kátia Abreu (PDT-TO), era de puro entrosamento. Uma cena surpreendente para quem testemunhou o embate entre ambos há dez meses, na eleição para presidente da Casa. Com o dedo em riste, a senadora enfrentou o então candidato e surrupiou a pasta com os documentos que o orientavam na condução da sessão.

No dia seguinte, entretanto, Kátia levou flores para Alcolumbre e refizeram os laços com o tempo. Durante o jantar, em uma roda com jornalistas, Kátia deu aula de articulação: explicou que um dos segredos da boa política é o pragmatismo. “O primeiro passo para o sucesso é não apontar o dedo, é articular sem preconceito nem ideologia”.

Além de Kátia, Alcolumbre e Berger, também compareceram o senador Weverton Rocha (PDT-MA), e a bancada do PP em peso: Ciro Nogueira, a líder Daniella Ribeiro (PB), o senador Esperidião Amin (PP-SC), entre outros.

Com ar de fadiga, o relator da reforma tributária e líder da maioria na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), chegou na hora do karaokê. Eram mais de 22h e ele confidenciou que ainda vestia o mesmo terno do café da manhã com lideranças.

Depois que Kátia Abreu arriscou versos de “Evidências”, o clássico de Chitãozinho & Xororó, Aguinaldo assumiu o palco, o banquinho e o violão. Confiou a taça de blend argentino ao interlocutor, dedilhou o instrumento e soltou a voz com o sugestivo “Vamos fugir”, de Gilberto Gil.

Descontraído, prosseguiu com “Morena Tropicana”, de Alceu Valença, e apesar dos apelos, esquivou-se do bis.

Agora investido da tarefa de reformar o imbrincado sistema tributário, o relator abre para poucos a faceta de artista, dos tempos em que tocava em uma banda de rock. Já um político consagrado, ele estampou a capa da revista “Rolling Stone” quando era ministro das Cidades.

Nos bastidores, a tendência é que Aguinaldo consolide-se como relator da única proposta de reforma tributária com chances reais de avançar no Congresso.

Um líder de bancada no Senado disse à coluna que o relatório do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) desagradou a maioria dos senadores e não deve sequer ser submetido à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Entre outros pontos, Rocha incluiu dispositivos favorecendo o seu próprio Estado.

Em outra frente, o Ministério da Economia deve encaminhar à Câmara em fevereiro a proposta do governo de criação do IVA federal. Esse projeto deve ser apensado à proposta relatada por Aguinaldo, de autoria do líder do MDB, Baleia Rossi (SP).

Aguinaldo não concluiu o relatório, mas vem recebendo demandas dos empresários. Ele já recebeu os pleitos dos franqueadores e franqueados, que temem uma oneração da carga tributária com a proposta de unificação dos impostos no Imposto sobre Valor Agregado (IVA).

“A reforma tributária é transversal, ajuda a economia como um todo com a simplificação dos tributos e a melhoria no ambiente de negócios, não é uma demanda só do setor de franquias”, remarcou o diretor executivo da ABF e anfitrião do jantar, Marcelo Maia - conterrâneo de Aguinaldo.

Ele observa que o setor de franchising já arca com a cobrança de royalties aos franqueados pela exploração comercial da marca e não suportaria uma sobrecarga fiscal.

“Estamos preocupados que o modelo da reforma não onere a prestação de serviços dentro do nosso setor”, diz Maia, que foi secretário de Comércio e Serviços do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).

O modelo de negócios das franquias é verticalizado, dividido em seis segmentos: serviços, produto, indústria, e três variações mistas entre eles.

Com 180 mil lojas no país, apesar da crise, o setor é um dos que mais cresce no país. O novo marco regulatório do setor foi aprovado no Senado no último dia 6 de novembro e aguarda a remessa para a sanção presidencial.

A nova lei detalha as obrigações do franqueador na circular de oferta de franquia (COF) e esclarece finalmente que o contrato entre franqueador e franqueado não cria relação de consumo ou vínculo empregatício. A senadora Kátia Abreu diz que agora é o momento de se criar franquias para o agronegócio.


Andrea Jubé: Agenda social aproxima Maia do ‘centro progressista’

Presidente da Câmara encampa pacote elaborado por parlamentares ligados a movimentos

Fiador da agenda de reformas e do ajuste fiscal, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), investe agora em uma pauta frequentemente associada à esquerda - o combate à pobreza e à desigualdade social. O recente lançamento da agenda social de desenvolvimento, na prática, o aproxima do centro, ao mesmo tempo em que faz aceno relevante aos parlamentares estreantes, egressos dos movimentos de renovação política.

O pacote de propostas para a área social também afina o diálogo de Maia com o apresentador Luciano Huck, com quem o integrante do DEM se encontrou algumas vezes, e que tem sustentado em palestras pelo país que o ajuste fiscal, necessário ao desenvolvimento econômico, não pode vir dissociado do combate à desigualdade social.

“Cresceu entre congressistas a compreensão muito evidente de que só fazer reformas de cunho fiscal não resolve o problema do Brasil”, disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) ao Valor. Ele reconhece que o pacote é a primeira iniciativa legislativa de expressão, com efetivo potencial de aprovação no plenário, do grupo de parlamentares eleitos a partir dos movimentos de renovação política, apoiados por Luciano Huck.

O movimento de Maia rumo a um “centro progressista” ocorre a um ano das eleições e na metade do segundo mandato de presidente da Casa, com chances remotas de reeleição. A agenda social tem apelo eleitoral maior que a agenda econômica, baseada principalmente nas reformas da Previdência e do sistema tributário.

Há uma preocupação da cúpula do DEM com a expansão eleitoral da sigla, que perderá protagonismo quando encerrarem os mandatos de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), no início de 2021. Não há ambiente político para eventual emenda constitucional autorizando a reeleição dos dirigentes das Casas no meio da legislatura.

Sem o comando da Câmara, Maia tem planos de continuar viajando pelo país para viabilizar uma candidatura presidencial - com a qual ele flertou em 2018 - ou uma vaga de vice. Projeto amparado em sua interlocução com o mercado e no eventual legado da agenda social. Até lá, Maia tem mantido um canal de diálogo aberto com o PSDB do governador João Doria, com o PDT do presidenciável Ciro Gomes e até mesmo com o PSL de Luciano Bivar.

Em abril, a deputada Tabata Amaral (PDT-SP) alertou Maia que o governo do presidente Jair Bolsonaro era omisso na área social e, diante dessa lacuna, caberia ao Congresso protagonizar o debate sobre o combate à desigualdade social numa realidade de 15 milhões de novos pobres e miseráveis a partir de 2014 - número equivalente a três Dinamarcas -, 12,5 milhões de desempregados e a estratégia do governo de taxar os desempregados para gerar novas vagas de trabalho.

Então Maia encomendou a Tabata propostas para a área social. O presidente da Câmara liberou consultores de seu gabinete para atuar junto com os assessores do gabinete compartilhado dos parlamentares do movimento Acredito, grupo formado por Tabata, pelo senador Alessandro Vieira e pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES).

Após quase oito meses de trabalho, o resultado é um pacote de projetos formado por uma proposta de emenda constitucional (PEC) que transforma o programa Bolsa Família em política de Estado e pelo menos sete projetos de lei. O primeiro PL, protocolado na semana passada, inclui 3,2 milhões de crianças na primeira infância ao Bolsa Família - é o único com impacto fiscal, estimado em R$ 9 bilhões.

A pauta tem sintonia fina com o discurso político de Huck e de seu conselheiro econômico, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga. Ambos sustentam que não existe conflito entre crescimento econômico, distribuição de renda e proteção social.

Na incursão por Brasília há duas semanas, antes da finalização dos projetos, Huck se reuniu, separadamente, com Rodrigo Maia, e também com os parlamentares do Acredito: Tabata, Rigoni e Vieira.

Questionado se Huck colaborou no projeto, Alessandro Vieira diz que foram discutidas apenas “superficialmente” com o apresentador, que desponta como presidenciável em 2022.

Por meio de sua assessoria, Huck disse que vê “com excelentes olhos o Congresso se movimentando no sentido de entender que não adianta fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. “Ou ele cresce alimentando a todos ou teremos a perpetuação da pobreza. E o Brasil irá mergulhar definitivamente no abismo social que nos divide”, disse o apresentador ao Valor. “De nada adianta um Estado eficiente se ele não for afetivo. Está claro que se não cuidarmos das nossas contas, não cuidaremos das nossas pessoas. A nossa responsabilidade é do tamanho dos nossos privilégios”, acrescentou.

Alessandro Vieira relata que antes do lançamento da agenda social, o trio fez reuniões com lideranças do PP, DEM, PSC, MDB, que se mostraram receptivos à ideia. Cada projeto será discutido em uma comissão especial a ser criada por Rodrigo Maia, e a meta é aprovar a maioria das propostas no primeiro trimestre de 2020.

Nesta semana será protocolado o segundo lote de projetos da agenda social. Um deles contempla alterações na Lei do Jovem Aprendiz: o tempo que o aluno passa dentro da empresa, trabalhando, passaria a contar como crédito no ensino médio; e o limite de dois anos no contrato do jovem aprendiz deixaria de existir.

Um dos projetos em gestação, dentro do pilar de políticas para boa governança, propõe uma Lei de Responsabilidade Social, inspirada na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, um dos marcos da gestão de Fernando Henrique Cardoso. A LRF impôs o controle dos gastos da União, Estados, Distrito Federal e municípios, condicionando-os às respectivas capacidades de arrecadação fiscal.


Andrea Jubé: O jogador

Bolsonaro erra no time e enfrenta Congresso dividido

Mequinho que se cuide porque o presidente Jair Bolsonaro aventurou-se na arte do tabuleiro. Mais de uma vez, ele comparou o governo a uma partida de xadrez, o jogo milenar de estratégia que surgiu na Índia e dialoga com o que lhe é caro. Em sânscrito, o nome do jogo significa “os quatro elementos de um exército”: a infantaria (peões), a cavalaria, as carroças (torres) e os elefantes (bispos).

Autoproclamado Rei, Bolsonaro convocou autoridades para o seu time e distribuiu-as no tabuleiro. O que está em xeque na política brasileira é a relação do governo com o Congresso.

O Planalto aguarda o desfecho da reforma da Previdência que o Senado calculadamente tarda em concluir. Monitora o desdobramento da reforma tributária, que fatiada em três - a dos deputados, a dos senadores e a promessa do ministro Paulo Guedes - avançará aos solavancos.

E observa Câmara e Senado, convulsionados pela partilha dos recursos da cessão onerosa e pela disputa de protagonismo entre Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. “Há vários dias acontecem fatos que põem em xeque a relação harmônica entre os poderes que fazem o Legislativo”, reconheceu o líder do PP, Arthur Lira (AL), após o entrevero com o senador Cid Gomes (PDT-CE).

É como se o Rei encarnado por Bolsonaro vivesse em xeque permanente. A metáfora do jogo de xadrez surgiu dois dias antes do anúncio do nome de Augusto Aras para o comando da Procuradoria Geral da República. Um mês depois ele retomou a comparação, na posse de Aras. “Se fosse um jogo de xadrez, o Aras seria a Rainha, eu o Rei”, definiu, entre risos e aplausos dos presentes.

“O Rodrigo Maia seria uma Torre, e a outra Torre o Alcolumbre. O Cavalo, no bom sentido, o Dias Toffoli. Meus ministros os peões”, prosseguiu.

Bolsonaro parece entender a dinâmica do jogo, mas erra na escalação do time. A Rainha, por controlar o maior número de casas, é a principal atacante do Rei. Mas Bolsonaro não poderia escalar o titular da PGR para o ataque sob pena de sofrer gol contra.

Recorde-se que o então procurador-geral Rodrigo Janot - agora protagonista de um dos maiores escândalos da República - ofereceu não uma, mas duas denúncias contra o então presidente Michel Temer.

E ao menos em teoria, o procurador-geral da República goza de autonomia e independência institucionais. Uma prerrogativa que não intimidou o presidente a cobrar publicamente de Aras que seja alertado previamente das investigações: “por muitas vezes, se nós estivermos num caminho não muito certo, que muitas vezes estamos fazendo aquilo bem intencionados, nos procurem para que possamos corrigir”.

Escalar o presidente do STF como Cavalo é manobra arriscada ou ingênua. O Cavalo é peça que pode ser decisiva nos jogos fechados no centro do tabuleiro. Num erro tático, o Cavalo pela sua posição pode cercear a rota de fuga do Rei. A caneta de Toffoli e de seus pares do STF tem tinta para limitar ou ampliar os passos de todas autoridades com foro: inclusive do filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), beneficiado com recurso àquela Corte.

Apesar de todo o esforço de aproximação institucional, é quiçá perigoso ter Maia e Alcolumbre no papel das Torres. Essas peças são atacantes velozes porque se deslocam pelo maior número de casas na horizontal e na vertical. Maia e Alcolumbre comportam-se, todavia, ora como aliados ora adversários.

Os gestos de aproximação se acentuaram depois que o Planalto ampliou os espaços do DEM no governo, sigla de Maia e Alcolumbre. O partido que já controla três ministérios (Casa Civil, Saúde e Agricultura), ganhou postos estratégicos no segundo escalão: a presidência do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), tática na interface com prefeitos, em indicação atribuída a Maia; a Secretaria Nacional da Receita Federal, em indicação atribuída a Alcolumbre; a presidência da Companhia de Desenvolvimento do São Francisco (Codevasf), em indicação atribuída ao líder da bancada, deputado Elmar Nascimento (BA).

É em meio ao latifúndio do DEM no governo que Rodrigo Maia declarou há três que Bolsonaro, que no início optara pelo confronto, agora estaria “conciliador”.

Mas o Congresso não se resume ao DEM ou ao PSD - partido que tenta ampliar as pontes com o governo - e os parlamentares estão indóceis. “O governo quer casamento com vida de solteiro. Não pode cobrar fidelidade distribuindo cargos de segundo escalão”, observa um líder de bancada.

Segundo esta liderança, o acordo de procedimentos dos partidos de Centro com o governo restringiu-se à reforma da Previdência.

Na última semana, a indefinição da partilha dos recursos da cessão onerosa foi o estopim para a explosão de nervos. As duas Casas concordam com o modelo de divisão dos recursos por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Mas um grupo de deputados quer vincular a destinação dos recursos a obras de saneamento e infraestrutura. O receio é encher os cofres dos adversários regionais nas eleições municipais.

Ante o impasse que impediu a votação de seu relatório na Câmara, o relator da matéria no Senado, Cid Gomes, xingou Arthur Lira de “achacador”. Lira devolveu: “não sei o que ele tem na cabeça, mas não são neurônios, nem qualquer eletrodo que faça com que o cérebro dele funcione. Ele é irresponsável, é leviano, é vil, é pequeno, e não merece estar naquela cadeira [de senador], que é muito maior do que as nádegas dele”, vociferou.

O embate desses dois expoentes do parlamento reflete a tensão entre as duas Casas. Um deputado da oposição diz que o Senado quer posar de “bonzinho” com a população. Manteve o valor atual do abono salarial, que os deputados haviam reduzido a pedido do governo. E retarda a votação do segundo turno beneficiando aqueles que podem apressar os processos de aposentadoria. Com o tabuleiro em desordem, melhor Bolsonaro escalar outro time para defender o Rei. Senão o jogo pode acabar em xeque-mate.


Andrea Jubé: Tempo quente, guerra fria

O "nós contra eles" de Bolsonaro opõe o povo ao Congresso

O presidente Jair Bolsonaro está cansado. A revelação é do deputado Marco Feliciano (Pode-SP), um de seus aliados mais próximos, que encomendou uma corrente de orações pela proteção do mandatário e do governo aos seus mais de 4 milhões de seguidores.

"Notei no seu semblante, em sua fala ainda que descontraída, um cansaço", disse Feliciano, em vídeo divulgado no sábado nas redes sociais. Segundo o parlamentar, que acompanhou Bolsonaro na viagem a Dallas, o presidente enfrenta uma "guerra fria" porque as forças que não o elegeram se uniram para paralisá-lo: "O que não conseguiram fazer com aquela facada na barriga estão tentando com punhaladas nas costas".

Bolsonaro tem falado em exaustão de forma recorrente, embora ainda tenha pela frente 44 meses de mandato. Ao receber um senador em seu gabinete recentemente, apontou a cadeira presidencial e decretou: "Aquilo é uma desgraça". Ao apresentador Sílvio Santos, disse que a Presidência só traz problemas. Há um mês e meio, desabafou: "Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar".

Caciques políticos interessados no avanço das reformas preocupam-se com dois fatores: o aparente esgotamento nervoso de Bolsonaro, e sua indisposição para ajustar a relação com o parlamento. A avaliação interna na cúpula do Congresso é que Bolsonaro tem comportamento ambíguo, porque admite a exaustão a interlocutores, ao mesmo tempo em que demonstra fôlego para o confronto.

Na semana passada, quando uma multidão foi às ruas em mais de uma centena de cidades protestar contra os cortes na área de educação, e o governo sofreu derrotas relevantes no Congresso, a maioria dos líderes acreditava que Bolsonaro faria gestos de conciliação ao Congresso.

Mas o que se viu neste começo de semana decisiva para o governo foi uma declaração de guerra. "O que eu tenho para oferecer é a humildade, a coragem de enfrentar grupos corporativistas", disse o presidente ontem na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). O combate às corporações remete ao polêmico texto que ele compartilhou com aliados no fim de semana, segundo o qual o país seria "ingovernável" se ele continuasse resistindo a fazer "conchavos" com as "corporações".

Bolsonaro alega cansaço, mas demonstra disposição para a briga. Afirma que "o que mais quer é conversar", mas tenta apagar o fogo com gasolina. Ontem ele também reiterou os ataques aos políticos, dificultando ainda mais qualquer canal de diálogo com o Congresso, e via de consequência, a votação das reformas. "É um país maravilhoso que tem tudo para dar certo, mas o grande problema é a nossa classe política", acrescentou, no mesmo discurso na Firjan.

Incomodado com a dimensão das manifestações contra o governo no dia 15, o presidente estimula a reação de seus apoiadores com os protestos convocados para o dia 26. Indiferentes às denúncias envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, defensores do governo marcharão em defesa da reforma da Previdência e do pacote anticrime do ministro Sergio Moro. Mas também contra os deputados do Centrão, que acusam de achaque ao governo, e contra o Supremo Tribunal Federal.

Paralelamente, haverá a tréplica dos estudantes já programada para o fim do mês, com o mote #dia30vaisermaior. A batalha das ruas é uma reedição da conturbada campanha eleitoral, quando grupos de brasileiros duelaram nos protestos #elenão - a maior concentração popular liderada por mulheres na história brasileira - e #elesim, em defesa do então candidato.

Parlamentares influentes lamentam a persistência de Bolsonaro no embate com a classe política. Há uma leitura de que o presidente tenta reeditar a fórmula praticada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que colocava o povo ao seu lado contra as chamadas "elites". Segundo Lula, não era desejo desse segmento que a população de baixa renda comesse filé mignon ou viajasse de avião. Lula agia para garantir o apoio popular, mas não jogava o povo contra os políticos.

O problema, na visão desse grupo de parlamentares, é que a versão do "nós contra eles" de Bolsonaro instiga o povo contra os congressistas. Justamente os deputados e senadores que deverão votar as propostas de interesse do governo, como as reformas da Previdência e tributária, além do projeto de reestruturação da carreira dos militares - prioritário para o presidente.

Os atritos com os parlamentares impõem sucessivas derrotas ao governo no Congresso. A medida provisória que permitiu 100% de capital estrangeiro nas companhias aéreas prescreve amanhã. Justamente a norma que levou o ministro Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, a comemorar a chegada ao Brasil da AirEuropa, que geraria empregos, equilibraria a oferta de voos e reduziria os preços dos bilhetes, diante do colapso da Avianca. Agora o futuro da AirEuropa é incerto.

Apesar do azedume entre Congresso e Planalto, ainda há disposição dos líderes de aprovar um substitutivo para a MP que atualiza o marco legal do saneamento básico no país, e até mesmo a reestruturação do primeiro escalão. Mas o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) não deve retornar ao Ministério da Justiça.

Nesse campo de batalha, a cúpula da Câmara decidiu não se omitir diante da inércia presidencial em ajustar a articulação política e assumiu as rédeas da agenda econômica. Assim o Centrão dita o ritmo da reforma da Previdência, com o PR no comando da comissão especial. E o estreante João Roma (BA), do PRB, vai relatar um projeto de reforma tributária do Legislativo.

Em suma, Bolsonaro está pintado para a guerra e comanda um contingente expressivo, mas enfrenta defecções na brigada. A líder do governo, Joice Hasselmann (PSL-SP) ontem pediu paz. "É preciso baixar a guarda, chega de clima beligerante; não se consegue aliados atacando pessoas", ensinou.


Andrea Jubé: Moro pode levar mais "caneladas"

Abuso de autoridade pode voltar à pauta do Congresso

Na esteira das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, caciques do Congresso farejaram um vento favorável à retomada da votação dos projetos de lei que regulamentam o abuso de autoridade - uma pauta indigesta à Lava-Jato, e que dormita nos escaninhos das duas Casas há dois anos. Se a movimentação se concretizar, será mais uma "canelada" no ministro da Justiça, Sergio Moro - para usar um termo caro ao presidente Jair Bolsonaro.

Desde que entrou para o jogo político, Moro vem levando cotoveladas e "carrinhos por trás". Na última semana, os parlamentares retiraram o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) da Justiça para alojá-lo na Economia. Há dois meses, o ministro teve de recuar da nomeação de Ilona Szabó, mestre em estudos de conflito e paz e especialista em segurança, para uma vaga de suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

O possível avanço dessa pauta seria também um chute na canela do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que relatou o projeto das "10 medidas contra a corrupção", no qual foi aprovado o destaque estabelecendo o crime de abuso de autoridade. O alvo já era a Lava-Jato e os protagonistas da operação, em particular os procuradores da República que faziam parte da força-tarefa.

Esse clima propício à retomada da discussão sobre o abuso de autoridade, na visão desse grupo de parlamentares, vem da inflexão do Supremo em pautas consideradas éticas. Na última quinta-feira, sete ministros do STF decidiram ratificar o decreto de indulto natalino editado pelo ex-presidente Michel Temer em 2017, e que havia sido suspenso pelo ministro Luís Roberto Barroso. O decreto reduziu para um quinto o tempo de cumprimento das penas de condenados por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, beneficiando inclusive condenados por corrupção.

Em outro julgamento o Supremo decidiu que as assembleias legislativas têm poderes para revogar prisões ou medidas cautelares impostas a deputados estaduais. Por seis votos a cinco, foram mantidos trechos das constituições do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Norte e de Mato Grosso que conferiam essa prerrogativa aos parlamentares estaduais.

É a reboque dessas decisões, e do azedume com o Planalto, que ganhou corpo nos últimos dias o movimento de parlamentares influentes para convencer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ou o do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a pautarem a medida em uma das Casas.

A Câmara pode votar o projeto que os senadores aprovaram em abril de 2017, autorizando a punição dos agentes públicos que praticarem abusos, desde servidores de prefeituras, concursados ou terceirizados, a integrantes do Ministério Público, juízes, deputados e senadores. Relatado pelo então senador Roberto Requião, o texto exige a comprovação da intenção da autoridade de prejudicar ou beneficiar a si próprio, por capricho ou satisfação pessoal, para que fique caracterizado o crime de abuso.

Na ocasião, Sergio Moro - ainda como juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba - divulgou nota afirmando que receios mais graves foram afastados, mas ele advertiu que o texto ainda merecia "críticas pontuais". O juiz e seus aliados haviam articulado para evitar a votação da proposta - foi a primeira derrota do magistrado no Legislativo.

No Senado, aguarda análise o projeto que foi relatado pelo então deputado Onyx Lorenzoni. Ele foi derrotado pela aprovação acachapante do destaque do então líder do PDT, deputado Weverton Rocha (MA) - respaldado por 313 votos, quando bastava a maioria simples - que estabeleceu que magistrados e integrantes do Ministério Público responderiam por crime de abuso de autoridade quando praticassem conduta incompatível com o cargo.

Enigmas presidenciais
Bolsonaro flertou com a tragédia grega nos últimos dias quando desafiou o país a decifrar enigmas. A charada mais hermética foi o cataclismo vaticinado para estes dias. "Talvez tenhamos um tsunami na semana que vem, mas a gente vence o obstáculo com toda a certeza".

O presidente completou a frase voltando a falar em "erros". "Somos humanos, todos erram. Alguns erros são perdoáveis, outros não". Há 15 dias, ele teve de se retificar pela tentativa de ingerência na queda dos juros. "Tenho que ser sublime, senão dá tudo errado", afirmou.

O tsunami seria uma alusão ao filho Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Ontem foi revelado pelo jornal "O Globo" que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro autorizou no mês passado a quebra do sigilo bancário de Flávio e do ex-policial Fabrício Queiroz, de seus familiares e de 88 funcionários do gabinete - uma ampla devassa fiscal. Em nota divulgada à imprensa Flávio nega qualquer erro: "Nada fiz de errado".

Em outra declaração misteriosa, o presidente conciliou répteis e anfíbios. "O pessoal fala muito em engolir sapo. Eu engulo sapo pela fosseta lacrimal [sic] e estou quieto aqui, ok?" A fosseta loreal é um órgão sensorial das serpentes.

O presidente poderia falar somente em "engolir sapos", ou seja, lidar com aborrecimentos e contrariedades inerentes ao exercício do cargo. Mas cogitar a ingestão de um batráquio por um orifício minúsculo evidencia a dimensão das aflições que o perseguem, e que vão além dos despachos presidenciais.

Como um personagem do teatro grego, Bolsonaro vê-se acuado por conflitos entre amigos, familiares e o exercício do poder. Sofre pressão do guru Olavo de Carvalho, dos filhos - principalmente de Carlos Bolsonaro, com quem estaria sem falar há semanas - e dos militares. A cúpula militar exige uma resposta mais firme de Bolsonaro contra os ataques aos generais, mas ele tergiversa.

Em "Édipo Rei", de Sófocles, a esfinge desafiava os homens de Tebas a decifrar seus enigmas para não devorá-los. Quando Édipo desvendou a adivinhação, a esfinge jogou-se em um abismo. O presidente precisa manter o suspense enquanto não encontra uma solução para os conflitos que atravancam o governo.


Andrea Jubé: O quarto poder

Generais despontam como o quarto poder no governo

Desde a transição democrática, há 34 anos, a articulação política não se concentrava tão ostensivamente nas altas patentes militares. A demissão do ministro Gustavo Bebianno isola o ministro Onyx Lorenzoni no quarto andar do Palácio do Planalto, ante a ascensão do general Floriano Peixoto à Secretaria-Geral da Presidência. Considerando-se o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, são cinco generais e um civil no primeiro escalão do palácio, elevando as Forças Armadas ao patamar de quarto poder da República.

Na última semana, foi uma dupla de generais que entrou em campo com a espinhosa missão de aconselhar o presidente, apaziguar as relações no entorno familiar e político e evitar a demissão de Bebianno, vista como um gesto temerário neste começo de governo. Por acaso, um desses generais exibe no currículo um curso de combate na selva, que talvez faça a diferença neste início bélico, com o abate do primeiro ministro em 50 dias de gestão.

Essa dupla é formada pelos ministros do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto Santos Cruz, que integram o núcleo mais próximo a Bolsonaro. Eles se reuniram quase diariamente com o presidente desde o seu retorno a Brasília, na fase aguda da turbulência, quando o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) foi a público chamar Bebianno de "mentiroso". Naquela hora, Bolsonaro já havia gravado entrevista para a televisão endossando as acusações do filho.

Heleno recebeu Bolsonaro na Base Aérea, e o acompanhou até o Alvorada, de onde saiu horas depois. No dia seguinte, uma quinta-feira, o general Santos Cruz chegou às 8 horas para despachar com Bolsonaro no Alvorada, e uma hora depois foi a vez do general Heleno. Na sexta-feira, a reunião que selou o destino de Bebianno contou com Heleno e Mourão, que foi acionado quando estava a caminho do Palácio do Jaburu, retornando de uma agenda no Mato Grosso. Era o segundo despacho de Heleno com Bolsonaro naquele dia.

No entorno de Bolsonaro, a intervenção dos generais na gestão da crise política foi comparada ao exercício do poder moderador, a principal novidade da Constituição do Império, outorgada por dom Pedro I em 1824. Tratava-se de um quarto poder que se sobrepunha e arbitrava eventuais divergências entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. Era a "chave de toda a organização política", dispunha o texto constitucional.

O poder moderador era privativo do imperador, a quem cabia nomear e demitir livremente os ministros, e até mesmo dissolver a Câmara dos Deputados. Entre 1824 e 1889, dom Pedro I e dom Pedro II invocaram o quarto poder 12 vezes para dissolver a Câmara - em média, uma vez a cada cinco anos.

Inspirado nas ideias do pensador franco-suíço Henri-Benjamin Constant de Rebecque, o poder moderador foi concebido para que o soberano mediasse e evitasse o choque entre os poderes. A proposta era velar pela independência, equilibrio e harmonia dos outros três poderes. Passados 195 anos da Constituição do Império, o quarto poder agora é atribuído aos generais. Com interlocução de respeito e confiança com o presidente, os oficiais investiram-se da missão de zelar pela estabilidade do governo. Uma das condições era de que o presidente botasse limites na ingerência dos três filhos mais velhos - Flávio, Carlos e Eduardo - sobre o governo.

"Os generais Heleno e Santos Cruz são os sustentáculos do Bolsonaro no palácio", afirma um oficial com trânsito na cúpula do governo. A afinidade e a sintonia entre ambos - dois ex-comandantes das forças de paz da ONU no Haiti - somadas à proximidade de Bolsonaro, os credencia, segundo este oficial, como conselheiros presidenciais no cenário de instabilidade, num momento em que o governo precisa consolidar a formação da base parlamentar e concentrar-se na votação da reforma da Previdência.

Os generais Hamilton Mourão e o ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas - que já começou a despachar no Planalto, na equipe do general Heleno - despontam como forças auxiliares na missão encabeçada por Heleno e Santos Cruz. Na sexta-feira, Mourão declarou, após uma solenidade em Sorriso (MT), que "os filhos são um problema de cada família", e que Bolsonaro saberia impor limites. "Tenho certeza de que o presidente, em momento aprazado e correto, vai botar ordem na rapaziada dele".

Até agora, entretanto, o chefe do Executivo resiste ao quarto poder. Apesar da articulação dos generais para evitar ou adiar a demissão de Bebianno - cenário que prevalecia até a tarde de sexta-feira - a implosão provocada por Carlos Bolsonaro culminou na baixa do soldado. "As consequências virão depois", era a advertência que ecoava de um núcleo militar do governo no fim de semana.

Na entrevista concedida na quarta-feira, Bolsonaro colocou-se ao lado dos filhos. "Parte da mídia tenta me jogar contra meus filhos e meus filhos contra mim, não existe isso", rechaçou. Os sinais até agora são de que os filhos estarão cada vez mais presentes nas articulações governistas. Após a mediação dos generais, Carlos baixou o tom nas redes sociais, mas continua gerenciando as contas de Bolsonaro.
O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) - sem cargo de liderança, e ainda implicado na investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) - tornou-se assíduo em reuniões no Planalto. Na quinta-feira, Flávio participou de reunião para discutir a reforma da Previdência com Onyx Lorenzoni, o general Santos Cruz e o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL). Na sexta-feira, Flávio acompanhou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (PSL-AP), na primeira audiência com Bolsonaro após sua eleição.

Por fim, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ) articula para ser eleito presidente da Comissão de Relações Exteriores na Câmara. O cargo o credenciará para acompanhar as viagens internacionais do presidente: Estados Unidos e Israel estão no horizonte. Eduardo também é padrinho de dois assessores palacianos: o secretário de Comunicação Social, Floriano Barbosa, e o subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Jorge Antônio de Oliveira, que antes despachavam em seu gabinete.


Andrea Jubé: Um Davi e dois Golias

Reforma da Previdência será outro gigante a enfrentar

Era 2005 e o senador Renan Calheiros candidatava-se pela primeira vez à presidência do Senado. Habilidoso, com dez anos de mandato na Casa, o emedebista desde então distribuía afagos e favores. Quando um eleitor em potencial reclamou do gabinete, apertado e distante do plenário, Renan ofereceu-lhe o seu - amplo e localizado na concorrida Ala Teotônio Vilela - e assegurou o voto.

Naquela mesma campanha, outro senador prometeu-lhe apoio desde que Renan lhe apresentasse um laudo comprovando a inviolabilidade do painel para se certificar do sigilo de seu voto.

Os senadores não haviam superado o trauma com a violação do painel na votação da cassação do senador Luiz Estevão, em uma articulação conjunta do então presidente do Senado, o todo-poderoso Antonio Carlos Magalhães, e o líder do governo, José Roberto Arruda. Veio a público o voto da senadora Heloísa Helena, contrário à cassação, num contrassenso ao que ela pregava publicamente.

Esse episódio atesta, 19 anos depois, como o sigilo do voto interfere na história da República. Se tivesse prevalecido no sábado, o desfecho poderia ter sido outro, com Davi Alcolumbre vencido, e Renan reconduzido ao quinto mandato de presidente da Casa.

Ao antever o fracasso, Renan invocou a previsível metáfora bíblica: "Eu retiro a postulação porque entendo que o Davi [Alcolumbre] não é o Davi [rei dos judeus]; Davi sou eu, ele é o Golias, atropela o Congresso, o próximo passo é o Supremo Tribunal Federal, sem o carro e sem o sargento". Ele se referiu ao apoio do governo Bolsonaro ao seu adversário.

Foi a deixa para o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni - que todo o tempo deu suporte nos bastidores à postulação de Alcolumbre - retrucar na rede social: "Davi respondeu: - Você vem contra mim com espada, lança e dardo. Mas eu vou contra você em nome do Senhor Todo-Poderoso".

A ascensão de Alcolumbre é uma vitória tripla: dele próprio, do Palácio do Planalto e do DEM, que ressurgiu das cinzas. "Ninguém morre na política", alerta o ex-líder do DEM Pauderney Avelino. Relembra que em 2010, o então presidente Lula bradou que era preciso "extirpar o DEM" da vida pública. Quase uma década depois, a sigla comanda o Senado, a Câmara, a Casa Civil e mais dois ministérios.

Aos 41 anos, até então um senador inexpressivo, Davi - judeu, como o homônimo da Bíblia - tem outro Golias para enfrentar: conduzir a votação da controvertida reforma da Previdência. Uma missão espinhosa, num cenário em que os senadores se movem no compasso das redes sociais, e a sociedade tende a se opor às mudanças na aposentadoria.

O outro "Golias" é Renan. É uma incógnita que postura ele assumirá a partir de agora. Quem o conhece a fundo, pondera que o emedebista dificilmente irá para o confronto aberto com o governo. Mas nas coxias, tramará contra os desafetos.

É importante lembrar que, entre 2007 e 2009, Renan desceu ao Inferno de Dante, navegou na barca de Caronte pela bacia das almas, e conseguiu voltar ao Paraíso do poder. Renunciou à presidência da Casa em meio a denúncias de recebimento de propina de empreiteiras, e passou o ano de 2008 em auto-exílio no 15º andar. Só aparecia às quintas-feiras, com o plenário vazio, para gravar discursos para a TV Senado. Ressurgiu em 2009 como o combativo líder do MDB. Em 2013, reelegeu-se presidente da Casa.

A façanha de Alcolumbre, até agora, foi retirar do senador Petrônio Portella, morto em 1980, o título de presidente mais jovem do Senado. Em 1971, quando se elegeu para o comando do Senado, Portella tinha 46 anos.

Há mais pontos em comum: ambos vêm de Estados pobres e pequenos, Alcolumbre do Amapá, Portella do Piauí. Na prática, são do mesmo partido. Portella era uma liderança nacional da Arena, que deu sustentação do regime militar. A Arena deu origem ao PDS que virou PFL que virou DEM, sigla de Alcolumbre, que presidirá o Senado como aliado de um governo eleito pelo voto popular, mas sustentado pela cúpula militar.

Outra coincidência pode ser a liderança na condução de reformas relevantes. Reconduzido à presidência do Senado, em 1977, Portella teve importante papel na distensão política ao conduzir a votação da emenda constitucional que revogou os atos institucionais da ditadura militar.

Alcolumbre ainda tem de construir a liderança sobre 80 senadores e comprovar que tem pulso para conduzir a votação das reformas, sem submissão ao Planalto.

O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, liderança nacional do DEM, diz que Alcolumbre mostrará independência, e que o cenário é propício para o avanço das reformas. "Pela primeira vez na história a pauta é convergente com o partido, com o palácio e com o Congresso, tem tudo para andar ligeiro!"

A dificuldade de Alcolumbre mostrar autonomia em relação ao Planalto começa pelo seu próprio gabinete, que emprega a esposa de Onyx Lorenzoni. Um aliado minimiza o fato, observando que Onyx a conheceu quando ela já estava lotada no gabinete do correligionário.

Aliados apontam a disposição e a coragem de enfrentar Renan como atestados de sua independência. Dizem que não foi só o apoio do Planalto, e citam precedentes. A primeira vitória sobre Renan se deu em 2015, quando Alcolumbre elegeu-se presidente da Comissão de Desenvolvimento Regional por aclamação. Renan queria emplacar no cargo o senador Hélio José, um de seus leais escudeiros.

Também sugerem uma "conspiração" divina a favor de Alcolumbre, diante do ocaso dos caciques do MDB derrotados nas urnas, já que Eunício Oliveira e Romero Jucá eram candidatos naturais à presidência da Casa. Esse fato favorecia o discurso da mudança. "Foi tudo dando certo e ele se viabilizou como o anti-Renan", diz Pauderney.

O nome completo do presidente do Senado é "Davi Samuel", em alusão ao livro do profeta que narra a parábola de Davi e Golias. Samuel recebeu de Deus o comunicado de que o próximo rei seria um dos filhos de Jessé. Davi era o caçula, ruivo, franzino e improvável. Quando se viram um diante do outro, o profeta ouviu de Deus: "Este é o homem". Resta saber se o Davi que preside o Senado será o "homem" das reformas.