André Lara Rezende

Valor: Livro de André Lara Resende reúne ensaios que criticam visão dominante da teoria econômica

André Lara Resende reúne, em livro, ensaios que criticam a visão dominante da teoria econômica: "Estávamos errados"

Por Diego Viana e Robinson Borges | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

SÃO PAULO - Desde 2017, os artigos do economista André Lara Resende publicados no Valor têm sido alvo de controvérsias. Suas críticas à política de juros e à teoria macroeconômica que embasam decisões e análises no Brasil geram reações em outros economistas, provocando debates duradouros. Suas opiniões sobre a natureza da moeda e o peso da dívida pública vão na contramão das teorias mais tradicionais.

Em “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia Não Dogmática”, livro lançado hoje pela Portfolio-Penguin, o economista retoma os artigos publicados no ano passado e vai além. Relembra a própria trajetória como pesquisador e investidor, sua participação na elaboração dos planos Cruzado e Real e na negociação da dívida externa. O título do livro é extraído do primeiro artigo publicado no ano passado, que tratava das transformações na macroeconomia desde a crise de 2008. Com seu subtítulo, “Déficit, Dívida e Previdência”, o ensaio anunciava que as relações entre o endividamento público e a evolução do déficit fiscal não ocorrem do modo como se costumava pensar.

Coautor dos artigos que introduziram a noção de inflação inercial e contribuíram para formular o Plano Real, o economista é crítico da política de juros implementada no país desde 1994. A Selic alta não contribuiu para segurar a inflação e ainda teve impacto na dívida pública e no baixo crescimento. Assim, a recente redução dos juros pelo Banco Central é vista como uma correção de rumos, embora tardia.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Lara Resende ao Valor:

Valor: No ano passado, seus artigos geraram uma cascata de respostas e réplicas. Como o senhor avalia o debate suscitado, em termos de qualidade e pertinência?

André Lara Resende: Interpreto isso como sinal de que tocaram num ponto nevrálgico. Como digo na introdução de meu novo livro, depois de dois anos de profunda recessão, 2015 e 2016, a economia brasileira continua estagnada. Enquanto a renda da China é hoje 18 vezes o que era há 40 anos, a brasileira não chega ao dobro do que era em 1979. A distância entre o Brasil e os países avançados não se reduziu. Pelo contrário, aumentou. Não foi possível superar o fosso que separa o Brasil rico e moderno do Brasil onde impera a miséria e a desesperança. Sem inflação e sem dívida externa, o país está paralisado, preso a uma armadilha ideológica imposta pelos cânones de uma teoria macroeconômica anacrônica.

Valor: Um dos pontos controversos de seus ensaios é a afirmação de que a restrição financeira do Estado é política e não econômica. Qual é o peso político-ideológico nessa questão?

Lara Resende: A questão de que um Estado emissor de moeda fiduciária não tem restrição financeira é de lógica. E não é novidade. Está em [John Maynard] Keynes. Enquanto a moeda era lastreada, metálica, obrigava o Estado a ter certa restrição. E toda vez que o Estado precisava, por questões de força maior - quase sempre em caso de guerra ou depois no caso de crises bancárias -, modificava a quantidade de lastro da moeda para emitir mais. Nos últimos anos, especialmente após a crise de 2008, houve uma obsessão com a ideia do equilíbrio orçamentário. Mas sempre foi política. Nos EUA, por exemplo, por anos o Partido Republicano foi obcecado com o desequilíbrio do orçamento fiscal. Enquanto o Partido Democrata foi mais tolerante. O que é impressionante é o dogmatismo com que a passou a ser defendida.

Valor: Como o senhor analisa essa questão?

Lara Resende: Como menciono num dos artigos do livro, chegou-se a afirmar a ideia de austeridade expansionista, o que é uma contradição em termos. Ao contrair o gasto fiscal, você faria a economia se expandir. Depois da irresponsabilidade com que os gastos fiscais foram feitos na gestão do PT, especialmente no [governo] Dilma e no segundo mandato do Lula, houve uma espécie de estresse pós-traumático. Qualquer coisa que se fale sobre aumentar gastos públicos é percebida como se fosse estapafúrdia. Na verdade, ter certa disciplina fiscal é sempre desejável. Em todos meus artigos sempre digo isso. Existe uma restrição efetiva, que é a capacidade instalada da economia e do emprego. Se começar a pressionar os limites, começa a pôr pressão, [provoca] desequilíbrio externo. Cria redução de superávit no balanço de pagamentos, balança comercial e, eventualmente, começa a ter pressões inflacionárias. Existem restrições? Existem, mas não é uma questão financeira, sempre e a qualquer custo, do equilíbrio fiscal e financeiro.

Valor: Para o senhor, essa visão traz efeitos para o Brasil, que não faria investimentos necessários?

Lara Resende: Em momentos como o Brasil de hoje, que está com muita capacidade ociosa, grande desemprego e profundas necessidades de gastos públicos - infraestrutura, saneamento, saúde, educação, segurança -, é fundamental poder fazer esses gastos. É melhor para a confiança e para atrair investimentos privados internos e externos do que a ideia de uma obsessão de equilibrar o orçamento a qualquer custo, no curto prazo.

Valor: O senhor argumenta haver uma espécie de retórica “científica” dos economistas para poder fazer um contrapeso ao poder de um Estado, demagogo, que estaria “livre para gastar demais”...

Lara Resende: Como digo no meu ensaio sobre a moeda e a política, a questão é que sempre houve uma tensão permanente. Ao reconhecer que o Estado emissor da moeda não tem restrição financeira, há sempre o risco de o Estado gastar de forma conspícua, favorecendo a própria corte, a aristocracia e seus ocupantes. O risco de o Estado gastar mal, ser um Estado corporativista, defendendo os interesses dos seus funcionários e dos donos do poder sempre existirá e é preciso controlá-la. Uma forma de controlá-la foi a ideia de que a moeda emitida pelo Estado tivesse lastro metálico. Mas isso criava “iliquidez”, o que era prejudicial para a economia. Sempre houve essa contradição. No século XX, para efeitos práticos, terminou o padrão-ouro, as moedas são fiduciárias, não tem mais como impor ao Estado essa restrição. Inventou-se então a teoria quantitativa da moeda, cujo grande defensor foi Milton Friedman, na Universidade de Chicago, dizendo: “Embora não haja necessidade do lastro para emitir moeda, não se pode emitir mais moeda do que o crescimento da renda nominal - a teoria quantitativa da moeda -, senão vai causar inflação. Isso nunca foi empiricamente correto, mas foi muito aceito.

Valor: A crise de 2008 teve um peso na revisão dessa teoria?

Lara Resende: Com o quantitative easing [afrouxamento monetário], a expansão monetária que todos os bancos centrais dos países desenvolvidos fizeram depois da crise de 2008, isso [a teoria dominante] foi completamente desmoralizado. Veste-se como uma coisa técnica, com cientificidade, uma restrição que é uma restrição exclusivamente política. Essa exigência do equilíbrio fiscal é contraproducente em momentos de recessão e em momentos em que há necessidade de investimentos em infraestrutura. É o caso do Brasil, que está com infraestrutura “colapsada”. Tudo o que falta ao Brasil são serviços públicos de qualidade, são gastos públicos e investimentos de qualidade, e o Brasil está de mãos atadas. Quando você diz que o Estado não tem restrição financeira, assusta aqueles que consideram que o Estado não pode fazer e nunca fará nada certo. Precisa restringir ao máximo o Estado.... E é música para os ouvidos daqueles que acham que o Estado nunca faz nada errado. A direita tem horror e a esquerda fica fascinada. Os dois não estão corretos. O Estado pode fazer coisas certas e coisas erradas.

ValorQual é o papel do Estado?

Lara Resende: Não há saída para o mundo contemporâneo sem um Estado competente e eficiente, produtivo, que entenda o espaço, que gaste e trabalhe a favor da população. O Estado é para defender o interesse público, o bem público, não o interesse corporativista dos seus ocupantes, os interesses eleitorais ou demagógicos dos donos do poder no momento. O fato de estarmos numa democracia representativa e de termos visto abuso de gasto do Estado não é razão para inventar restrição.

Valor: O senhor considera que moeda é um bem público indissociável do poder e das instituições, e não uma criação espontânea dos mercados?

Lara Resende: Para o [professor da London School of Economics] David Graeber, autor de “Debt”, o mito fundador da economia contemporânea é a ideia de que a moeda é uma criação espontânea dos mercados. Uma economia funcionando como uma economia de escambo é uma economia exatamente como a nossa, contemporânea, só que não tem moeda, só escambo. Então cria-se uma mercadoria que vira de aceitação geral, a moeda. O Graeber mostra que isso nunca foi verdade. Você só começa a criar a ideia de troca, de mercado, quando cria a moeda. E só se cria moeda quando tem um poder central: o Estado. Não existe mercado sem a moeda e não existe moeda sem Estado, logo não existe mercado sem Estado. O que cria mercado competitivo e competente, produtivo, é um Estado competente e com consciência da importância do mercado competitivo.

Valor: Ao falar do papel do Estado, o senhor considera que a democracia representativa precisa ser repensada?

Lara Resende: Tem de resolver o problema do Estado, um problema político. Como se organiza uma democracia representativa no mundo contemporâneo, com mídia social, internet? A democracia representativa no século XX, dos “founding fathers”, tinha a ideia de que o Estado contemporâneo tem que ser tocado pela elite, como sempre foi no mundo. Essa elite deixou de ser, no século XX, uma elite aristocrática, portanto de sangue, para ser uma elite de competência, mas é elite. Questões de Estado são complicadas demais para serem tocadas por assembleias populares. Então, a democracia é representativa. Você pode mudar entre diferentes grupos da elite, que estão representando interesses diferentes, ou visões de mundo ligeiramente diferentes sobre a sociedade, não podem ser muito diferentes senão a coisa não funciona, mas é o que acontece. Quando você desmonta essa estrutura e passa a ter uma ideia de caminhar em direção a uma democracia direta, “assembleísta”, cria os problemas que o mundo enfrenta. A defesa foi o Estado ser ocupado por tecnocráticos, a independência do Banco Central, a Comissão Europeia. Os políticos são eleitos, mas não mandam mais nada.

Valor: Qual é o efeito desse fenômeno?

Lara Resende: Hoje os eleitores percebem que elegem políticos que não mandam nada e, como eles não mandam nada, passaram a defender seus interesses corporativistas e, portanto, interesses corporativistas cada vez mais corruptos. Os eleitores ficam indignados com essa percepção, consciente ou inconscientemente, de que “a democracia está parecendo uma farsa”, e é essa tentação populista, da ideia de “contra”, que é o Trump nos Estados Unidos, contra o “pântano” de Washington, e no Brasil, que é o bolsonarismo, contra “o establishment político”, que é “corrupto”. “Nós é que vamos fazer isso diretamente, de uma forma autoritária, diretamente representando o povo.”

Valor: Na sua opinião, por que muitos economistas reagiram aos seus artigos da forma como fizeram?

Lara Resende: Primeiro, os economistas do “mainstream”, a visão dominante no Brasil, são fiscalistas. A ideia é fazer o ajuste fiscal e deixar que a confiança, os investimentos privados e os investimentos estrangeiros façam tudo o que for necessário para a economia. Isso é um liberalismo completamente equivocado. Eu me considero um liberal, mas isso é uma versão ingênua e profundamente equivocada de como funciona a economia. Segundo, minha crítica é muito profunda sobre a macroeconomia mainstream. Estou dizendo: toda a macroeconomia está construída sobre bases equivocadas. Isso é perturbador para economistas com essa formação, como a minha. Só que você tem de reconhecer: estávamos errados. Como os economistas, principalmente os macroeconomistas, se tornaram homens públicos - na verdade políticos, fazem política, embora pretendam estar fazendo ciência -, isso ameaça a legitimidade para se expressar na vida pública. A questão é: a macroeconomia estava errada. Circunstancialmente funcionou durante certo tempo.

Valor: O que mudou?

Lara Resende:Desde o fim do século passado ela não é mais adequada para explicar o funcionamento da economia. A economia hoje é de puro crédito, a visão de moeda creditícia é incompatível com a da teoria monetária do início do século passado. Existe, portanto, uma razão política e uma ameaça sobre a estrutura teórica da macroeconomia, que fundamenta a sua legitimidade de opinar na política.

Valor: Quando o crescimento começou a voltar nos EUA, o Fed reverteu o QE, mas a economia voltou a desacelerar e o portfólio do Fed subiu novamente. Em 2013, o senhor se referia ao QE como “um grande ponto de interrogação”. O que aprendemos com ele, além do fato de que o aumento da base monetária não traz inflação?

Lara Resende: O QE não provocou inflação, como previa a ortodoxia monetária, mas não foi capaz de estimular o crescimento. Para isso, seria necessário fazer uso de uma política fiscal keynesiana, reduzir impostos e expandir os investimentos públicos, sem preocupação com o equilíbrio orçamentário. Quando a taxa de juros está próxima de zero, o custo da dívida pública é insignificante. Investimentos públicos na infraestrutura e em outras áreas que estimulem a produtividade não correm o risco de elevar de forma permanente a relação da dívida com o PIB. Infelizmente, também nas economias avançadas, o dogma do equilíbrio fiscal prevaleceu. Quando o governo de Donald Trump, por outras razões, finalmente cortou os impostos, a recuperação da economia se consolidou e o desemprego chegou ao seu mínimo histórico, sem qualquer indício de inflação. A inflação é uma questão de expectativas coletivas. Uma vez ancoradas, são mais estáveis do que se imaginava.

Valor: No livro, o senhor também contesta a tese de que a dívida pública é um ônus a ser arcado pelas gerações futuras como muitos economistas advogam. Por quê?

Lara Resende: Isso é um equívoco lógico. Para ficar claro, a dívida pública é interna, não externa. Quem é o detentor da dívida pública interna? São os credores, o próprio país. Os devedores são aqueles que vão pagar, no futuro, os impostos, os contribuintes. Quem são os credores? São os detentores da dívida pública. Quem são os detentores da dívida pública? Os agentes superavitários. Então, existe um elemento distributivo na dívida pública. Quando a dívida pública é justificável? Se você emitiu dívida pública para fazer investimentos que beneficiam a todos, inclusive aos mais pobres, é razoável. Sempre serão os agentes superavitários que vão deter a dívida pública, e esses agentes superavitários tendem a ser um dos mais ricos nos países muito injustos, mas são fundações, todos os fundos de aposentadoria - que não necessariamente são superavitários; são poupadores, que detêm a dívida pública. O errado é perceber a dívida pública como ameaça, quando a dívida pública é uma dívida de nós com nós mesmos. Então, tem efeitos sobre como os gastos que foram financiados com a emissão dessa dívida pública são feitos. O mais importante é que sejam benfeitos, que beneficiem a produtividade e o bem-estar de todos, portanto os serviços públicos, investimento em infraestrutura, saúde, educação, segurança

Valor: Depois do efeito distributivo não pode ficar um ônus fiscal?

Lara Resende: Só haverá ônus fiscal, como disse num artigo, se a taxa de juros da dívida pública for muito superior à taxa de crescimento da economia. Se não for, não haverá ônus, o próprio crescimento resolve a questão do pagamento dos juros da dívida. Outra questão é: não há razão nenhuma para ter, por períodos prolongados, a taxa de juros real da dívida pública, a taxa básica, que é totalmente controlada pelo Banco Central, acima da taxa de crescimento da economia. Você não tem problema nenhum em emitir dívida pública, desde que você garanta que a taxa de juro real não será superior, por muito tempo, à taxa de crescimento da economia. Com isso, você não terá crescimento da razão dívida-PIB. Como hoje no mundo todo as taxas de juro são praticamente zero, a taxa real zero, até negativa em tantos países, e a taxa de crescimento, embora baixa, 1,5%, 2,5%, é muito superior, então não há restrição nenhuma para emissão de dívida pública.

Valor: Isso se aplica ao Brasil também?

Lara Resende: Isso vale para o Brasil também. Agora a taxa de juro no Brasil ainda é positiva, mas já vi duas entrevistas de gestores dizendo que o Banco Central está criando uma bolha. Qual é o problema? Se criar, corrija o mercado acionário. Bolha na bolsa brasileira, isso é irrelevante. Agora, a grande mídia tende a olhar, a só responder a essa visão, que é a visão da bolsa, a visão da Faria Lima. Essa visão é monolítica, sem um instante de reflexão.

Valor: O Brasil vivenciou, nos últimos anos, uma queda da inflação e dos juros. É duradoura? Como aponta no livro, a explicação para a inflação deve ser buscada no longo prazo; esta desinflação também reflete processos de longo prazo?

Lara Resende: O Banco Central, na gestão de Roberto Campos Neto, finalmente se deu conta do equívoco que era manter a taxa de juros básica nos níveis absurdamente altos em que foram mantidas desde o Plano Real. Sobretudo diante do desemprego e do alto nível de capacidade ociosa observados desde a recessão de 2014 e 2015, a política de juros do Banco Central era absolutamente injustificável. Tenho a impressão de que a alta taxa de juros apenas agravou o desequilíbrio fiscal e desestimulou o investimento, sem, já há muito anos, dar qualquer contribuição para o controle da inflação.

Valor: O senhor criticou a resposta do governo brasileiro à crise em 2008 como “oportunidade perdida para baixar os juros”. Corrigiu-se o erro daquele momento?

Lara Resende: Sim, corrigiu-se com mais de dez anos de atraso e com um altíssimo custo em termos de investimentos, do crescimento e do aumento da relação da dívida com o PIB.

Valor: Comentando o período prolongado de juros baixos no mundo desenvolvido, o ex-secretário do Tesouro americano Lawrence Summers se referiu a um “buraco negro dos juros”. Essa situação tende a se perpetuar?

Lara Resende: A convivência com juros muito baixos e até mesmo negativos é uma situação nova e inusitada. Não é o caso do Brasil, que, apesar da queda recente, ainda tem juros reais positivos. O experimento da expansão de reservas bancárias, ou seja, de emissão de moeda, o chamado QE, promovido pelos principais bancos centrais do mundo desenvolvido, sem que houvesse sinal de volta da inflação, comprovou quão equivocada estava a teoria monetária dominante. Qual o efeito a longo prazo de juros negativos e se vão continuar muito baixos por muito tempo é difícil dizer. Mas estou entre os que acreditam que os juros serão bem mais baixos no futuro do que foram no século passado.

Valor: A ideia de que a correlação entre juros e inflação é oposta ao que crê tradicionalmente a economia faz pensar na expectativa de inflação no Brasil, que voltou a subir no fim de 2019. Se a causalidade é inversa ao que se pensava, subir os juros para responder a uma eventual alta da inflação seria um erro?

Lara Resende: A conjectura, levantada originalmente [pelo economista] John Cochrane, de que a relação entre a taxa de juros básica e a inflação pudesse ser positiva, e não negativa como sempre supôs a teoria macroeconômica, não é tão estapafúrdia quanto pode parecer. Apesar de, no curto prazo, o juro alto desestimular a demanda e moderar as pressões inflacionárias, se mantido por muito tempo, induz os agentes a inferir que o BC, que é quem mais tem informação sobre a inflação futura, espera que ela seja alta. A taxa de juros básica, assim como a taxa de câmbio e os salários, seria, assim, um dos principais preços balizadores das expectativas de inflação. A inflação no Brasil acompanhou a queda da taxa de juros e as expectativas parecem ancoradas. Não há motivo para especular sobre uma eventual alta da taxa de juros apenas porque a inflação nos últimos meses do ano passado ficou ligeiramente acima do esperado.

Valor: Com a reforma da Previdência quase concluída, como ela se encaixa no que o senhor esperaria de uma reforma dessas?

Lara Resende: Com o envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida, o sistema previdenciário de repartição se torna deficitário e precisa ser revisto. O problema ocorre no mundo todo, não apenas no Brasil. Além de deficitária, a previdência brasileira é injusta, porque o funcionalismo público, em todos os níveis e nas diferentes esferas do Estado, tem aposentadorias incomparavelmente mais generosas do que o trabalhador do setor privado, que se aposenta pelo INSS, regido pelo RGPS [Regime Geral da Previdência Social]. A atual reforma, focalizada primordialmente no RGPS, além de não constituir uma solução definitiva, não enfrentou o corporativismo do funcionalismo. Manteve seus privilégios praticamente intactos.

Valor: O senhor foi um dos primeiros economistas brasileiros a demonstrar interesse pela Teoria Monetária Moderna (MMT). Poderia contar sobre como conheceu essa corrente?

Lara Resende: Apesar do nome, a MMT nada tem de nova. Recupera uma longa tradição na história da teoria da moeda, que Joseph Schumpeter, na sua “História da Análise Econômica”, chamou de teorias creditícias da moeda. A essência da moeda é ser uma unidade contábil de créditos e débitos entre os agentes da sociedade. A MMT recuperou as teorias creditícias da moeda e, por isso, não comete os equívocos dos que insistem em ver a moeda como mercadoria. É uma descrição muito mais realista do funcionamento dos bancos centrais e dos mercados financeiros num sistema de moeda fiduciária, como são todos os sistemas monetários contemporâneos.

Valor: Se gastos públicos, taxação e outras variáveis são cruciais, como no caso da MMT, então a macroeconomia começa a se parecer com um ramo da ciência política. É ilusório pensar a economia como um campo autônomo?

Lara Resende: É completamente equivocado pensar a economia como um campo autônomo. Até o século XIX a economia era um campo da filosofia. Foi a partir do fim do século XIX e o início do século XX que a teoria econômica se separou das demais ciências sociais e históricas. Adotou, então, a formulação e a metodologia que hoje lhe são características. O aparente rigor analítico lhe permitiu se arvorar como uma disciplina, mais do que independente, superior às demais ciências humanas. Basta um segundo de reflexão para concluir que questões como quanto e como tributar, onde e como investir recursos públicos, têm um inescapável componente político. Mas não apenas as questões tributárias e monetárias são eminentemente políticas, toda e qualquer questão econômica não pode ser analisada fora do seu contexto político e social.

Valor: O senhor sugere que, na última década, os bancos centrais fizeram política fiscal veladamente. E o senhor marca a diferença entre essa política fiscal e a que é feita pelo Executivo: são compras de ativos, não investimentos em infraestrutura ou transferências. Trata-se de uma transferência de soberania para os BCs?

Lara Resende: Quando os bancos centrais expandem a base monetária, como fizeram com o QE, para adquirir ativos, desalavancar os bancos e impedir o colapso do sistema financeiro, estão fazendo um misto de política fiscal e monetária. Estão financiando gastos públicos para adquirir ativos financeiros. Não salvaram apenas o sistema financeiro, mas provavelmente toda a economia mundial de um colapso sem precedentes. De toda forma, se é possível expandir gastos extraorçamento fiscal para uma emergência como essa, cabe sempre a pergunta: por que não também expandir gastos extraorçamentários para outras questões vitais que contribuam para o aumento da produtividade e do bem-estar? A exigência de que se equilibre o orçamento fiscal é uma restrição autoimposta que se justifica para evitar a tentação de gastos irresponsáveis, demagógicos e até mesmo corruptos, mas acaba sendo uma camisa de força que impede gastos plenamente justificáveis. Como definir tais gastos justificáveis e como evitar os injustificáveis? Não é uma questão simples, sobretudo nas democracias representativas, mas é algo que precisa ser urgentemente examinado. O custo do equilíbrio fiscal mantido a ferro e fogo, como se fosse um imperativo natural, muitas vezes é excessivo.

Valor: Qual é sua visão sobre o Green New Deal? Um programa de investimentos tão ambicioso é viável atualmente?

Lara Resende: Acho importante que seja discutido com seriedade.

Valor: Sobre os modelos DSGE [dinâmicos estocásticos de equilíbrio geral], o senhor comenta que, depois da crise, finalmente começou uma tentativa de introduzir neles a finança e a moeda. Quão longe foi esse esforço? A mudança provocou grandes transformações nos resultados e nas conclusões da macroeconomia?

Lara Resende: Com a grande crise financeira das economias desenvolvidas de 2008, o irrealismo dos modelos macroeconômicos, nos quais não havia moeda, nem sistema financeiro, ficou patente e se tornou insustentável. Houve, realmente, um esforço da teoria predominante para incorporar o sistema financeiro e tentar dar um toque de realismo aos modelos. Mas, como insistem em partir de uma concepção equivocada da moeda e a privilegiar a formalização matemática, os novos modelos acrescentaram muito pouco à capacidade de formulação de políticas públicas.

Valor: Há alguns anos, o senhor se lamentava que a macroeconomia tinha virado uma “área menor da matemática aplicada”, porque não incorporava problemas de ordem social e política. Isto está mudando?

Lara Resende: É verdade. A teoria macroeconômica, na busca de se equiparar às ciências da natureza, adotou uma excessiva formalização matemática. Levada ao paroxismo, a macroeconomia hoje ensinada aos alunos de doutorado nas principais universidades americanas, que ainda servem de referência acadêmica, perdeu toda a capacidade de representar a realidade complexa das questões econômicas que são indissociáveis de suas dimensões psicológicas, políticas e sociais. Tornou-se, de fato, uma área menor da matemática aplicada.


‘Nosso vício é a dependência do Estado’

Entrevista com André Lara Resende, economista

Alexa Salomão, O Estado de S.Paulo

Para economista, maior problema do País não é inflação, mas a incapacidade de equilibrar as contas públicas

No início do ano, o economista André Lara Resende levantou uma polêmica em torno da relação entre taxa de juros e inflação. A regra prega que juro alto é como a Novalgina: um remédio eficiente para baixar a inflação. Mas o artigo de Lara ia contra esse princípio: taxas de juro altas por muito tempo - como ocorre no Brasil - teriam o efeito inverso e sustentariam a inflação. E mais: a taxa de juros não cede porque o Estado gasta demais. Haveria aí um ciclo vicioso.

Nesse contexto, a reforma da Previdência é essencial. Agora, Lara lança o livro Juros, Moeda e Ortodoxia, em que aborda o tema de maneira mais extensa e mantém a posição: “Nosso vício não é a inflação, mas a dependência excessiva de um Estado patrimonialista e incompetente que é levado a se endividar em excesso”.

A seguir, trechos de sua entrevista.

O sr. poderia explicar o princípio de sua teoria sobre juros e inflação que tanta polêmica causou entre os economistas?

Antes de mais nada, não se trata de uma teoria, mas de uma conjectura. A teoria sempre postulou a existência de uma relação inversa entre a taxa de juros e a inflação. Ou seja, que a elevação da taxa de juros reduz a inflação e vice versa. A teoria monetária predominante - que pauta os bancos centrais - está baseada em metas para a inflação e uma regra para a fixação da taxa de juros.

Simplificadamente, se a inflação sobe acima da meta, o banco central deve elevar a taxa de juros mais do que proporcionalmente a aceleração da inflação. É uma espécie de regra de bolso, que parece funcionar na prática. Acontece que com a ameaça da deflação nos países avançados depois da grande crise financeira de 2007/2008, os bancos centrais se viram impossibilitados de continuar baixando a taxa de juros quando elas chegaram a zero. A teoria levaria a crer que, diante das mãos atadas dos bancos centrais, a deflação se aceleraria. Não foi o que ocorreu. A inflação, assim como a taxa de juros, se estabilizou perto de zero.

E o que isso quer dizer?

Inverte a convencional relação inversa entre a taxa de juros e a inflação. Por isso é tão polêmica. Abre-se a possibilidade de que seja a alta taxa de juros que sustente a inflação. As razões para isso seriam basicamente duas. Primeiro, altas taxas de juros mantidas por longo tempo, sobretudo quando a dívida pública é alta, agravam o desequilíbrio fiscal e levantam dúvidas sobre a solvência a longo prazo do Estado. Segundo, a taxa de juros funcionaria como sinalizador das expectativas de inflação.

O fato de a inflação ter sido tão resistente no início da recessão é um sinal de que talvez essa “conjectura” possa estar acontecendo no Brasil: taxa de juros funciona como sinalizador de inflação?

Sim, é uma possibilidade. Não apenas no Brasil, mas em toda parte hoje, há sinais de que o efeito da recessão e do desemprego sobre a inflação é muito mais fraco do que parecia.

O Brasil, então, no que se refere a inflação é como um alcoólatra: não pode cheirar um copo de álcool que tem recaída?

A inflação não é um vício, mas o sintoma de vícios. Que vícios seriam esses? O principal deles é a incapacidade de garantir o equilíbrio a longo prazo das contas públicas, a tentação permanente de levar o Estado a gastar mais do que ele é capaz de extrair via impostos da sociedade. Nosso vício não é a inflação, mas a dependência de um Estado patrimonialista e incompetente que é levado a se endividar em excesso.

E por que a taxa de juros é tão resistente no Brasil? Desde o Plano Real, nunca foi abaixo de 7%.

Essa é a pergunta que há anos, desde a estabilização do real, tem causado perplexidade e levado os analistas a quebrar a cabeça. A possibilidade de que na raiz da questão esteja um desequilíbrio fiscal estrutural, diante do qual a alta taxa de juros contribua para agravar o problema. É justamente a tese da dominância fiscal.

Mas existe mesmo a chamada “dominância fiscal”: a perda de efeito da taxa de juros sobre o controle da inflação quando o Estado gasta mais do que pode?

Dominância fiscal é uma situação anormal, que se torna tão mais provável quanto mais alta for a percepção da probabilidade de insolvência do Estado e de calote na dívida pública. O Estado brasileiro é muito deficitário, sua dívida como proporção do PIB é alta e cresce rapidamente. Reunimos portanto as condições para o caso de “dominância fiscal”.

“Reunimos” em que sentido? Podemos vir a sofrer dessa anormalidade ou já estamos nela?

Reunimos, no sentido de que as condições para a dominância fiscal estão aí. Se estamos ou não em dominância fiscal é algo que não se pode afirmar categoricamente. Só uma análise aprofundada, a mais longo prazo, pode ajudar a responder à pergunta.

Há uma defesa incondicional da reforma da Previdência para equilibrar as contas e a dívida pública. Qual seria o efeito da reforma sobre os juros?

Como está, o sistema previdenciário é insustentável. O problema não é novo. Quando destacado para estudar a questão no governo FHC, já estava claro que o sistema iria explodir antes de 2020. Algumas modificações foram feitas na idade mínima e chegamos até aqui, mas a queda brusca da taxa de natalidade e o rápido envelhecimento da população tornaram a previdência insustentável. O desequilíbrio é grave e afeta todo o sistema, mas é na Previdência dos funcionários públicos onde a crise é mais aguda. Grande parte do desequilíbrio das contas públicas, sobretudo estaduais e municipais, vem da Previdência dos servidores. Sem dúvida, a aprovação de uma reforma coerente, que garantisse a saúde e a solvência das contas públicas no longo prazo, é fundamental para viabilizar a queda da taxa básica de juros.

 

Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,nosso-vicio-e-a-dependencia-do-estado,70001846449