andré lara resende

André Lara Resende: Obsessão em atar as mãos do Estado paralisa o Brasil há três décadas

Alta dos juros leva a efeitos distributivos perversos

Neste EU& Fim de Semana, de 16 de abril, José Júlio Senna faz uma crítica ao meu artigo “A quem interessa a alta dos juros”, também aqui publicado. O artigo de José Júlio merece um elogio logo na partida pois, coisa rara no debate econômico de hoje, é uma resposta civilizada e racional. Dito isso, passo a expor por que discordo dos seus argumentos e os considero um exemplo dos problemas da retórica dos economistas.

José Júlio concorda que não há hoje pressão de demanda sobre os preços. Discorda que a alta dos preços internacionais das commodities, associada à desvalorização do real, seja o principal fator por trás do aumento da inflação. Atribui a alta mais aos gargalos de oferta criados pela pandemia do que à pressão das commodities. Sustenta que a pandemia desorganizou a oferta, o que é incontestável, e que houve um desvio da demanda de serviços para bens, o que é uma mera conjectura.

De toda forma, o ponto central de seu argumento não depende disso. Reconhece que o núcleo da inflação não saiu de controle, está apenas ligeiramente acima da meta, aponta para 5,5% no fim do ano, mas pode chegar a ser mais alto a partir de maio, antes de voltar a cair. Sustenta que a alta dos preços no atacado, agravada pelos problemas de logística na pandemia, pode não ser transitória.

Segundo ele, o que poderia ser considerado um mero fenômeno estatístico é preocupante, pois corre-se o risco de influenciar as expectativas. Para José Júlio, a razão pela qual o Banco Central deve elevar os juros é justamente para evitar a perda de controle sobre as expectativas. Reconhece que a alta dos juros não irá reverter a alta dos preços, mas sustenta que irá impedir a propagação dos seus efeitos secundários, através das expectativas.

Paremos aqui um instante para perguntar como a alta dos juros irá reverter as expectativas. Os economistas concordam, coisa rara, que as expectativas são fator importante na formação de preços e na evolução da inflação, mas não têm nenhuma vantagem comparativa na explicação de como as expectativas são formadas. Expectativas de inflação são um fenômeno de psicologia coletiva, o que não é bem o campo dos economistas. Ao reconhecer sua incompetência, coisa ainda mais rara, os economistas resolvem o problema presumindo que as expectativas são formadas de acordo com as premissas do seu próprio modelo.

A hipótese de “expectativas racionais”, hoje praticamente hegemônica na macroeconomia, é exatamente isso: a realidade pouco importa, supõe-se que as expectativas são um mero espelho da formação de preços no modelo teórico utilizado. Resolve-se assim o problema de nada ter a dizer sobre a formação das expectativas, desconsidera-se a realidade e as circunstâncias, e de quebra, tem-se uma solução formalmente elegante.

Demonstrando sensibilidade para a realidade, José Júlio reconhece que as circunstâncias hoje nada têm de normais, o ambiente fiscal e político do país representa um terreno fértil para que as expectativas se deteriorem. O que ele fica devendo é explicar como a alta dos juros irá reverter este ambiente fiscal e político.

É possível argumentar que a alta dos juros pode agravar o ambiente político. Quando o comércio, a indústria, os restaurantes, os hotéis e todas as atividades ligadas ao turismo e ao entretenimento estão praticamente paralisados pela pandemia, passam por sérias dificuldades e são obrigados a se endividar para sobreviver, elevar o custo do crédito não é exatamente um elixir para a paz política e social.

Concentremo-nos no que José Júlio afirma ser o delicado ambiente fiscal. Aqui está o ponto central de meu artigo: a elevação dos juros aumenta a despesa financeira do governo e agrava o desequilíbrio fiscal. Repito aqui o ponto que José Júlio, consciente ou inconscientemente, optou por desconsiderar em seu comentário.

Dado que a dívida pública é hoje 90% do PIB, uma elevação de 4 pontos de percentagem na taxa básica, como antecipa o mercado para o fim do ano, implica um aumento de 3,6% do PIB nas despesas do governo. São aproximadamente R$ 267 bilhões, valor apenas ligeiramente inferior aos R$ 294 bilhões da totalidade do auxílio emergencial até o fim do ano passado. Esse valor é equivalente a mais do dobro de todo o investimento público anual dos últimos anos.

O auxílio emergencial exigiu uma emenda constitucional para ser aprovado. Sua extensão, em valores muito reduzidos neste ano, provocou um acalorado debate sobre se poderia ou não ser excluído do teto dos gastos. Já a alta dos juros depende apenas de uma decisão do Banco Central. O teto não vale para as despesas financeiras do Tesouro, que são determinadas pela taxa de juros fixada pelo Banco Central. Enquanto o auxílio emergencial vai para a população necessitada, desamparada pela perda do emprego e da renda, o aumento das despesas financeiras do governo vai para os detentores da dívida.

A dívida pública hoje é uma divida interna, expressa em moeda nacional e carregada essencialmente por brasileiros. É um passivo do Estado e um ativo do setor privado brasileiro. O aumento dos juros é uma transferência direta do Estado para os detentores da dívida, para aqueles a quem a fortuna, vamos dizer assim, deu renda superior às suas necessidades e lhes permitiu acumular riqueza em títulos públicos.

Ainda que se desconsiderem os efeitos distributivos perversos da alta dos juros, como compatibilizá-la com a tese de que é preciso equilibrar o orçamento fiscal, a qualquer custo, para evitar o “abismo fiscal”? A explicação para um tratamento tão diverso entre as despesas financeiras e as outras despesas públicas, inclusive em investimentos essenciais, está na suposta inevitabilidade das “leis” da economia e das finanças.

É possível falar em leis da física e das demais ciências exatas, mas nas humanas, e economia é uma disciplina social, não existem leis imutáveis. As relações humanas são resultado da combinação de fatores psicológicos e ideológicos definidos num contexto cultural sempre em evolução. O arcabouço analítico dos economistas, que pretende se espelhar na física, pode ser circunstancialmente útil, mas não tem validade científica. É um modelo mental, baseado em postulados sobre o comportamento dos indivíduos, que em circunstâncias altamente idealizadas, batizadas de competição perfeita, justifica o cerceamento da intervenção do Estado na economia. Sob aparência de isenção científica, é uma ideologia conservadora, usada para justificar a impossibilidade de fazer diferente. As coisas são como são e não podem ser diferentes, porque assim determinam as leis da economia1.

Voltemos ao artigo de José Júlio. Segundo ele, o Banco Central atua com “certa liberdade para reagir às mudanças de cenário”, mas sujeito a um “arcabouço teórico rigoroso”. Este arcabouço teórico, formulado numa linguagem algébrica inacessível à grande maioria das pessoas, rigorosamente irrealista, serve para justificar a excepcionalidade dada ao Banco Central. Mas vejamos se o que diz José Júlio, sobre os objetivos do BC, segue o mesmo rigor.

Afirmações como “o BC procura manter a projeção de inflação o mais próximo possível do objetivo, no horizonte relevante de tempo” e “na situação atual, a projeção encontra-se na meta, e o risco de eventual desvio para cima supera o risco de eventual desvio para baixo” não são exatamente exemplos de rigor científico. Ao contrário, deixam claro o grau de inevitável subjetivismo na condução da política de juros do BC.

A recém-aprovada lei que deu autonomia ao BC acrescentou entre os seus objetivos a suavização dos ciclos econômicos e o estímulo ao pleno emprego. Ninguém em sã consciência irá afirmar que, nas atuais circunstâncias, a alta dos juros atende a esses objetivos.

José Júlio considera que a alta dos juros de longo prazo, assim como a pressão exercida pelos analistas para que o BC eleve a taxa básica, são meramente um “movimento antecipatório”, que aumenta a eficácia da política monetária. Como, ele não explica. Provavelmente por elevar o déficit do Tesouro e agravar a recessão e o desemprego. Considera que não há espaço para que o BC influencie diretamente a taxa de câmbio, que se o BC atuasse, como já faz o Banco do Japão, para balizar as taxas futuras, estaria “tabelando” o mercado e “quebrando o termômetro”.

Mais uma vez, sob a pretensão de conhecimento técnico, são meras opiniões, baseadas na ideologia de que o mercado está sempre certo e que toda intervenção de políticas públicas cria distorções em relação ao melhor dos mundos. Mas quando o mercado provoca grandes crises como a de 2008, o BC e o Tesouro são chamados a intervir. O “quantitative easing”, QE, foi uma emissão de mais de 20% do PIB nos EUA para salvar o sistema financeiro de seus excessos. Aí sim, o BC e o Tesouro podem emitir e gastar, mas nunca para enfrentar a pandemia e o desemprego.

A ideologia do fiscalismo, a obsessão em atar as mãos do Estado, inclusive para investir em áreas essenciais, como infraestrutura, saúde, educação, segurança, pesquisa e desenvolvimento, paralisa o país há pelo menos três décadas. A má governança do Estado brasileiro, agravada por um governo verdadeiramente catastrófico, justifica o receio de que dar espaço ao Estado para gastar estimule a irresponsabilidade.

Repito então o que disse ao concluir o meu artigo: é evidente que o Estado deve ser responsável e gastar bem. Restrições institucionais e administrativas para os gastos públicos são necessárias, para evitar abusos e distorções, mas precisam ser desenhadas com base no entendimento correto da importância do Estado, como prestador de serviços e como investidor. A teoria econômica convencional, uma ideologia que se pretende ciência, é hoje o principal empecilho ao entendimento correto do papel do Estado.

1 O irrealismo e a incapacidade do instrumental analítico da economia convencional têm sido alvo de críticas contundentes de alguns de seus mais ilustres nomes. Para os que se interessarem, recomendo a leitura do artigo de Paul Romer “The Trouble with Macroeconomics” (2016) e dos recém-publicados de W. Brian Arthur, “Economics in Nouns and Verbs” (2021), e de S. Bichler e J. Nitzan, “The 1,2,3 Toolbox of Mainstream Economics” (2021).

*André Lara Resende é economista


André Lara Resende: Quem vai pagar essa conta?

O dogmatismo fiscal não ameaça só a economia: é hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, senão quem pagará é a democracia

Até os mais empedernidos defensores do equilíbrio fiscal - e no Brasil de hoje eles dão as cartas - reconhecem que diante da crise é preciso que o Estado gaste para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária. Mas como foram pegos no contrapé, no meio de uma cruzada para equilibrar as contas públicas, para salvar o Tesouro do cerco dos infiéis, perderam o rumo. Não apenas a agenda do ministro Paulo Guedes, mas também o discurso da esmagadora maioria dos analistas, tinha se transformado em samba de uma nota só: eliminar o déficit.

Tudo mais seria irrelevante ou viria como consequência. Investimentos em saneamento, segurança, saúde, educação e infraestrutura? Impossível, não há como financiá-los. Um programa de metas para sair da armadilha da estagnação? Desnecessário, bastaria aprovar as reformas que o investimento externo e a confiança garantiriam o novo milagre brasileiro. Não foi o que se viu. Aprovada a reforma da Previdência, aquela que seria a mãe de todas as reformas “estruturantes” segundo seus preconizadores, a economia continuou anêmica e o desemprego, aberto. É claro que tanto o ministro como o seu coro na mídia agora sustentam o contrário, que a economia estava pronta para decolar, quando foi “atingida por um meteoro”.

A crise provocada pelo coronavírus é de fato inusitada. A parada da economia, tanto pelo lado da demanda como da oferta, não tem precedentes. Ainda por cima é uma crise sincronizada, que atinge praticamente todas as economias no mundo. Nunca se viu nada parecido. Para amenizar o drama humano e evitar uma depressão profunda, o Estado precisa prover um auxílio de emergência. O Banco Central deve emitir para injetar liquidez no sistema bancário e evitar que a parada da economia se transforme também numa crise financeira.

Como o sistema bancário está, compreensivelmente, assustado com a possibilidade de uma onda de quebras e inadimplência, a injeção de liquidez não será repassada para a economia real. É preciso fazer o auxílio chegar diretamente às empresas e às pessoas necessitadas. Nesse momento, o aumento dos gastos públicos é essencialmente uma ajuda de emergência, para aliviar o sofrimento e impedir quebras generalizadas, mas os investimentos contracíclicos serão necessários, uma vez superada a epidemia. É preciso agir com urgência, fazer chegar o auxílio assistencial diretamente aos necessitados, com o mínimo de formalidades burocráticas.

É aqui que a prisão conceitual do ministro da Economia e de sua equipe se torna um obstáculo insuperável. Mal concedem a necessidade imperiosa de expandir a liquidez e de aumentar os gastos, tomados de dissonância cognitiva, entram em pânico. Quem irá pagar essa conta? Por toda parte, em artigos na imprensa, nas videoconferências, a pergunta mais feita no Brasil de hoje é quem irá pagar a conta. Na Europa, o BCE já sancionou uma expansão monetária superior a 6% do PIB, mas a longa tradição de conservadorismo fiscal da Alemanha ainda resiste à criação de um título de dívida europeu que poderia ajudar aos países periféricos da região.

A França, assim como a Inglaterra pós-Brexit, já entendeu que neste momento a preocupação com a expansão de moeda e dívida não faz sentido. A França aprovou gastos de emergência que chegam a mais de 15% do PIB. O presidente Macron em vídeo-entrevista ao “Financial Times”, sem se referir uma única vez ao “custo fiscal”, disse que se trata de “dinheiro de helicóptero”, uma analogia, criada originalmente por Milton Friedman, para designar a ajuda direta e indiscriminada do Estado através da emissão de moeda.

Numa crise como esta, a perda de renda e da redução do poder aquisitivo pode e deve ser compensada pela transferência de recursos do Estado. As guerras sempre exigiram enormes gastos do Estado, justamente quando a economia sofre com o conflito. A história está cheia de exemplos. Entre 1942 e 1945, anos em que os EUA estiveram envolvidos na Segunda Guerra Mundial, o déficit público foi sempre superior a 15% do PIB, chegando a um pico de 30% em 1943. A dívida pública passou de 40% para mais de 120% do PIB. Embora os EUA, desde então, raramente tenham tido superávit fiscal, a relação dívida-PIB se reduziu até a crise financeira de 2008. A razão é simples: a renda cresceu mais do que a dívida. Dívidas públicas internas não são pagas. São renovadas e se tornam irrelevantes com o crescimento da economia.

À medida que a economia se recupera, mesmo uma dívida aparentemente alta se torna perfeitamente administrável. Trata-se de pura aritmética. Se o crescimento da renda é maior do que o serviço da dívida, a relação dívida-PIB não terá uma trajetória explosiva. A mesma aritmética serve para demonstrar que se a economia encolher, independentemente do equilíbrio fiscal, a relação dívida-PIB irá aumentar. A dívida interna brasileira, antes da crise, era da ordem de 75% do PIB. Ainda que com superávit primário, algo praticamente impossível dada a queda inexorável da receita, se a economia vier a encolher 20% nos próximos anos, o que infelizmente não é tão improvável, sobretudo se o Estado tiver as mãos atadas pelo dogmatismo fiscal, a dívida iria para mais de 90% do PIB.

O endividamento público vai crescer e muito nos próximos anos. Trata-se de uma realidade irreversível. O que não tem remédio, remediado está, já dizia minha avó, mas nesse caso existe remédio. Basta impedir que a economia se desarticule numa crise humanitária sobreposta a uma depressão profunda.

Basta que, superada a epidemia, o setor privado não tenha se desarticulado e o Estado possa voltar a investir. Com um programa de investimentos públicos e privados inteligente, com um Estado eficiente, a favor do cidadão e indutor da produtividade, a economia sairá da crise e a dívida interna perderá importância.

Mas a obsessão fiscalista agora ameaça, além da economia, provocar uma crise na federação. Os Estados e os municípios, como não emitem moeda própria, estão obrigados a gastar apenas o que arrecadam. Com a queda da receita provocada pela parada da economia, sem ajuda da União, em poucos meses ficarão impossibilitados de prestar serviços básicos.

A aprovação na Câmara de que as transferências da União tenham como base a arrecadação do ano passado, mais do que razoável nessas circunstâncias, foi taxada de “pauta bomba” pelos cruzados do fiscalismo. Em disputa com os governadores, o presidente da República, provavelmente insuflado pela sua equipe econômica, entendeu a iniciativa do Legislativo como uma provocação. Partiu para o ataque ao Congresso e às instituições democráticas.

Numa crise dessa magnitude, com um presidente desequilibrado, o dogmatismo fiscal já não ameaça apenas a economia. É hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, caso contrário quem vai acabar pagando a conta é a democracia.

*André Lara Resende é economista


André Lara Resende e Francisco Serra: Desafio atual é mobilizar recursos para a saúde

É imperativo ser generoso com a população desassistida e que se adote um programa de ajuda de custo universal

Estamos diante de uma crise sem precedentes. A pandemia provocada pelo coronavírus não tem mais fronteiras. A experiência dos países onde a epidemia está mais avançada deixa claro que não há opção. Para evitar um pico de infectados com necessidade de atendimento hospitalar que levaria ao colapso do sistema de saúde, é imperioso que as pessoas se isolem e evitem todo o contato social. O confinamento domiciliar de todos que não trabalhem nas atividades essenciais é a única forma de reduzir o coeficiente de infecção e de distribuir o número de doentes ao longo do tempo.

O confinamento obrigatório tem altos custos pessoais e econômicos. A paragem brusca da economia será sem precedentes. Muito mais intensa do que a provocada por qualquer crise recessiva cíclica do passado. Estamos diante de uma verdadeira escolha de Sofia: ou o colapso do sistema de saúde, com um enorme número de mortos, vítimas da sobrecarga do sistema hospitalar, ou bem uma paragem sem precedentes da economia. Mas não há alternativa. Ao menos por alguns meses, na melhor das hipóteses, será preciso paralisar todas as atividades não essenciais para reduzir a circulação de pessoas.

A sobreposição da crise econômica a uma dramática crise sanitária exige resposta imediata e audaciosa. Na Europa e nos EUA os governos anunciaram medidas de emergência. O Banco Central Europeu e o Fed estenderam linhas de crédito praticamente ilimitadas para o sistema bancário. Medidas fiscais estão sendo negociadas para aprovação nos parlamentos. Há uma preocupação de não repetir o erro de 2008, quando foi feito “muito pouco, muito tarde”.

Antes de mais nada, é preciso descartar as falsas restrições. A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrônico que foi erigido em dogma dos economistas hegemônicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.

A preocupação com as fontes de recursos e o equilíbrio orçamental do governo são restrições autoimpostas para conter os excessos populistas e tentar dar racionalidade aos gastos públicos, justificadas em tempos normais, mas que devem ser desconsideradas por completo numa emergência como esta pela qual passamos. Países que delegaram a emissão da moeda para sistema supranacional, como é o caso dos países do euro, dependem da atuação coordenada do Banco Central Europeu (BCE). Por isso, a ação do BCE, garantindo crédito ilimitado para as economias da UE, é fundamental.

O desafio não é encontrar “fontes” de recursos. O governo pode sempre gastar para financiar despesas indispensáveis e justificáveis. Ao longo da história, mesmo quando o Estado ainda estava restrito pela exigência de lastrear a moeda num metal precioso, a conversibilidade da moeda foi sempre suspensa quando necessário para fazer face a despesas públicas extraordinárias e imprescindíveis, como no caso das mobilizações de guerra. O verdadeiro desafio é, antes de tudo, como mobilizar, de forma rápida e eficiente, recursos reais para a saúde, como expandir a capacidade da rede de hospitais, com leitos, equipamentos e recursos humanos. Em seguida, como minorar os efeitos econômicos e sociais do confinamento obrigatório e da brusca paragem da economia.

A crise de 2008 foi uma crise financeira que provocou uma crise da economia real. Esta é uma crise da economia real que irá provocar uma crise financeira. Em 2008 o problema estava no sistema financeiro, que carregava créditos ilíquidos e inadimplentes. A injeção de liquidez primária no sistema bancário, para compensar a contração do crédito privado, foi capaz de estancar a crise financeira, salvar o sistema financeiro e com ele toda a economia. Hoje, o problema não está no sistema financeiro. A injeção de liquidez primária pelos bancos centrais irá ficar retida no sistema bancário, que, temendo um incumprimento generalizado provocado pela paragem da economia, irá se recusar a estender crédito às empresas, independentemente da quantidade de reservas injetadas pelo banco central.

É preciso que os governos e os bancos centrais ajam de forma a garantir a liquidez e o crédito, sem depender da intermediação do sistema financeiro privado.

A primeira medida seria uma moratória de todos os créditos correntes, pelo tempo em que durar a paralisação obrigatória da economia. Todos os créditos correntes seriam estendidos, à taxa básica do Banco Central, até o fim do confinamento. Além disso, os bancos deveriam obrigatoriamente conceder crédito adicional a todas as empresas afetadas pela paralisação, à taxa básica acrescida de um spread mínimo para cobrir os seus custos. O risco de crédito, durante a fase crítica de emergência inicial, deverá ser assumido integralmente pelo Estado. Os bancos devem fazer uma análise e aferimento mínimos acerca da idoneidade das empresas e da necessidade do crédito.

Um programa de ajuda de custo universal, no mínimo durante o período em que durar a paralisação, deveria ser imediatamente adotado. É imperativo ser generoso com a população desassistida e com os que irão perder o emprego e as suas fontes de renda.

Medidas como essas tendem a vir acompanhadas de exigências burocráticas para evitar abusos. Compreende-se, mas a hora exige deixar de lado a burocracia. Grandes crises podem tanto despertar o egoísmo quanto o altruísmo. O Estado precisa dar o exemplo, ousar e confiar.

*André Lara Resende é economista e Francisco Serra Lopes Rebelo de Andrade é advogado e empresário português

Este artigo é uma versão reduzida de texto publicado originalmente no jornal digital português “Observador”


Folha de S. Paulo: Liberalismo primitivo de Guedes não leva a crescimento, diz Lara Resende

Um dos formuladores do Real, economista sustenta em livro que debate econômico no país está superado

Vinicius Torres Freire e  Marcos Augusto Gonçalves, da Folha de S. Paulo

Em meio a resultados ruins da economia e ao pânico do coronavírus, André Lara Resende lança livro com teses inovadoras, critica a política econômica e afirma que o debate macroeconômico no país está superado.

Atropelada pela pandemia do novo coronavírus, a recente divulgação do PIB brasileiro de 2019 (1,1%), que selou uma sequência de três anos de crescimento irrisório, após dois de recessão, levantou questões incômodas para os defensores do atual receituário econômico. O fiasco não foi nenhuma surpresa para o economista André Lara Resende: “A atual política econômica baseia-se num liberalismo primitivo, o ‘laissez-faire’ de Milton Friedman dos anos 1960/70”, diz em entrevista à Folha, concedida em São Paulo.

Com passagem pela vida acadêmica e experiência como diretor do Banco Central, negociador da dívida externa, presidente do BNDES e um dos formuladores do Plano Real, ele considera um erro acreditar que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada e a economia volte a crescer.

“Não há recuperação possível nessas condições”, afirma.

Se a situação da economia já se mostrava desalentadora, a ameaça do novo coronavírus tornou o cenário dramático. O pânico nos mercados financeiros e a possível recessão mundial suscitam apelos de ação dos governos —proposta que encontra eco nas ideias do economista.

“Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial”, diz Lara Resende, que vê pouco espaço para a ação dos bancos centrais em relação às taxas de juros, mas prescreve atuação “inteligente” do Estado. “O tema do coronavírus ressalta a imperiosa necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar num momento como esse, ‘para compensar as perdas de receitas do petróleo’ [como foi aventado], beira o surto psicótico”, diz.

Pintado por guardiões do “status quo” econômico como uma caricatura de defensor quase incondicional do gasto público, ele expõe em seu recém-lançado “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia não Dogmática” teses que questionam os mitos da austeridade inscritos nas tábuas da teoria hegemônica. Em seus textos, traça uma história crítica do pensamento e de fatos econômicos e explica por que a disciplina precisa ser repensada a fundo. Não são teses inventadas por ele, mas que teriam sido silenciadas e agora retornam ao debate internacional.

Na visão do autor, Estados que emitem a própria moeda não têm, sob determinadas condições, restrições financeiras. Podem gastar quanto quiserem, por meio de emissão monetária ou por endividamento a uma taxa de juros que têm como controlar. Pergunta-se: em decorrência, não haveria inflação, disparadas de juros e fugas de credores do governo, que deixariam o país ou buscariam outros ativos que não títulos da dívida pública?

Não, dentro de certos limites, responde o economista, que fez seu doutorado no MIT, na mesma turma de Ben Bernanke, presidente do Fed à época da crise de 2008. O governo —argumenta— poderia gastar até o limite em que consumo e despesas de investimento não pressionassem a capacidade de produção.

O país também teria de limitar com muita prudência o endividamento externo, pois não poderia emitir para cobrir esse passivo. De resto, o gasto tem de ser eficiente, definido talvez por uma agência independente. “O que desancora a inflação é crise, o Estado se desorganizar, tanto financeira quanto politicamente, o déficit em conta corrente, o aumento populista do salário mínimo, os choques de preço de energia”, diz.

E os credores, “o mercado”, não cobrariam mais para financiar a parte da despesa coberta por endividamento, com o que a dívida pública cresceria sem limite? Não. O Banco Central tem o poder de definir a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento econômico. Com isso, a dívida cresceria menos do que a economia, e os donos do dinheiro não teriam para onde fugir, a bom preço.

De onde saiu a intuição ou a demonstração para a tese de que não haveria inflação? Da reação dos BCs à quebradeira de 2008. Na sequência do desastre, observou-se uma gigantesca expansão monetária nos EUA e na Europa, quando os bancos centrais, na prática, direta ou indiretamente, financiaram instituições e financistas quebrados e, a seguir, empresas e mesmo seus governos, com emissão de moeda. O resultado de tal política não foi inflacionário.

Segundo Lara Resende, há um ponto cego na teoria econômica, incapaz, há décadas, de explicar as relações entre moeda e atividade econômica. A sombra se tornou um mito, em parte por interesse, em parte por incompreensão do caráter histórico da teoria econômica. Na verdade, a história mudou faz alguns séculos, com a criação da moeda fiduciária. E os bancos criam moeda ao concederem empréstimos.

Se haveria tantos ganhos e tão poucos perdedores, porque a resistência à mudança? O establishment da teoria econômica resiste, bem como os emissores de moeda privada, ou seja, o sistema financeiro.

Lara Resende evita entrar em detalhes sobre como poderia ocorrer na prática a mudança para um tal regime de política econômica, transição que no caso do Brasil teria de superar traumas históricos de endividamento hiperinflacionário, um quase consenso prático e teórico a favor da austeridade e um edifício constitucional e legal em tese erigido para promovê-la, aliás sem muito sucesso, para dizer o menos.

Um problema seria que o “país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT, incompetentes ou corruptos”, diz o economista.

Acredita, no entanto, que a mudança de visão é inevitável, tanto por pressão da quarta revolução tecnológica quanto pela previsível absorção do debate internacional mais atualizado, “como costuma acontecer em praças colonizadas”.

Certamente que tal projeto exige tempo e um debate que não interdite a divergência —ele acredita que ocorra hoje um obstáculo para tal, inclusive na mídia, “que subscreve a política em vigor”.

O economista não se mostra disposto a assumir funções públicas, mas se sabe que tem mantido conversas com lideranças políticas, em especial o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Leia trechos da entrevista.

A atual política econômica preocupa-se com o aspecto fiscal, mas na sua visão está orientada por pressupostos equivocados, como a expectativa de que o crescimento virá como consequência de um ajuste das contas públicas. Formou-se, no entanto, um certo consenso de “liberais” em torno do ministro Paulo Guedes. O que isso nos diz sobre o estágio do debate macroeconômico no Brasil?

A política econômica atual baseia-se num liberalismo primitivo, o “laissez-faire” de Milton Friedman dos anos 1960/70, no qual o monetarismo simplório da Teoria Quantitativa da Moeda foi substituído pela tese da “austeridade fiscal expansionista”. Sustenta-se que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada, e a economia volte a crescer. Trata-se de um duplo equívoco.

Primeiro, porque no mundo contemporâneo, mais do que nunca, um Estado competente é condição para o crescimento. Tanto para garantir serviços públicos de qualidade, como para o bom funcionamento da economia competitiva, a ação do Estado é indispensável. Segundo, porque a tentativa de equilibrar as contas públicas, a curto prazo e a qualquer custo, asfixia o setor privado com impostos distorcidos, inviabiliza os investimentos públicos e paralisa serviços básicos. Não há recuperação possível nessas condições.

O pânico gerado pelo novo coronavírus agrava o cenário. O que esperar?

Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial. Os bancos centrais não têm mais muito espaço com a taxa básica de juros, mas podem minorar uma nova crise de contração do crédito privado, através de recursos para compra de dívidas privadas.

Mais uma vez, o que faria diferença seria a ação coordenada das políticas monetária e fiscal. É imperiosa a necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar, num momento como esse, “para compensar as perdas de receitas do petróleo” [como foi aventado], beira o surto psicótico.

Em sua visão, a reação dos bancos centrais à crise de 2008 demonstrou que as visões macroeconômicas em vigor no Brasil estão ultrapassadas. Por quê? 

A reação à crise de 2008 deixou patente que não existe uma restrição natural para a emissão de moeda. Ao menos quando há capacidade ociosa e o crédito bancário (isto é, a emissão de moeda privada) está contido, a emissão de base monetária não provoca inflação. Os principais bancos centrais emitiram como nunca, multiplicando a base monetária por fatores superiores a 15 vezes, sem provocar vestígio de inflação. Pelo contrário, mais de uma década depois, as economias avançadas continuam perigosamente próximas da deflação. Não pode haver prova mais cabal de que a emissão de moeda não provoca inevitavelmente inflação. O experimento do chamado “quantitative easing” salvou o sistema financeiro e implodiu a macroeconomia estabelecida.

A restrição à emissão de moeda pelo Estado sempre foi uma restrição política. Trata-se de uma opção política por restringir os gastos públicos e abrir espaço para os gastos privados. O comércio e a indústria sempre pressionaram pela expansão da liquidez na economia, mas ao mesmo tempo procuraram impor freios aos gastos considerados conspícuos e ilegítimos do Estado.

Enquanto prevaleceu o padrão-ouro, resolvia-se o problema sem liberar o Estado para emitir sem lastro. Com o fim do padrão-ouro e a desmoralização definitiva da Teoria Quantitativa da Moeda, depois de 2008, uma nova restrição para os gastos públicos precisava ser criada. Os economistas passaram, então, a defender que haveria um limite superior para a relação entre a dívida pública e o PIB.

O livro de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, “This Time Is Different”, de 2009, sustenta que, a partir de uma dívida equivalente a 70% do PIB, a economia se desorganizaria. Inúmeros países, entre eles o Japão, os EUA, e mesmo o Brasil, já passaram desse limite, sem qualquer sinal de apocalipse econômico.

Alberto Alessina, da Universidade Harvard, cunhou a expressão “austeridade expansionista” para defender, contra toda a evidência histórica, que o corte das despesas públicas e do aumento dos impostos não seria recessivo, mas ao contrário, estimularia os investimentos e a economia. Agências internacionais, como a Comissão Europeia e o FMI, subscreveram a nova tese e passaram a prescrever os programas de ajustes fiscais como o único caminho para a retomada do crescimento.

Suas teses parecem não evidenciar um perdedor, embora atinjam o establishment científico da economia e assustem quem teme populismos. Quais os motivos para tamanha resistência? 

Toda mudança de paradigma enfrenta grandes resistências. Ordenamos o mundo segundo as histórias que contamos e que se tornam de aceitação generalizada. A disrupção, para usar um termo em moda, das narrativas estabelecidas é profundamente perturbadora e ameaça seus titulares e beneficiários. Reconhecer que o governo não tem restrição financeira e que deveria fazer uso dessa faculdade para investir, de forma inteligente e produtiva, quando há desemprego, capacidade ociosa e uma flagrante carência de todo tipo de serviços públicos não é exatamente uma pauta revolucionária. Muito pelo contrário, é a receita keynesiana clássica, que pautou a política econômica do pós-guerra.

Nova é a consciência de que a taxa de juros básica está sob controle dos bancos centrais e que pode ser fixada abaixo da taxa de crescimento da economia, garantindo assim que a relação dívida/PIB não irá explodir, ainda que haja déficits fiscais a curto prazo. Nova é a evidência de que a dívida interna pode ser emitida com juros muito baixos ou até mesmo negativos.

Grande parte das teses que sustento tem longa tradição na história do pensamento econômico. Embora intelectualmente superiores, foram politicamente derrotadas e relegadas ao esquecimento. Diferentes concepções do que é a moeda e de como controlar os gastos do Estado estão por trás das duas grandes vertentes da teoria monetária ao longo dos últimos séculos. Schumpeter, em sua história do pensamento econômico, chamou a primeira dessas vertentes de teorias monetárias do crédito e a segunda de teorias creditícias da moeda. Enquanto as primeiras sustentam que a moeda é uma mercadoria com valor intrínseco, as segundas argumentam que é uma unidade abstrata de crédito.

A vitória política das teorias monetárias do crédito foi uma vitória política da necessidade de impor uma restrição ao financiamento do Estado. Como disse Keynes, no seu clássico “Teoria Geral”, a vitória dos metalistas, liderados por David Ricardo, nas controvérsias monetárias do século 19, conquistou “a Inglaterra tão completamente quanto a Santa Inquisição conquistou a Espanha”. A sua aceitação pelos homens públicos e pela academia suprimiu a controvérsia.

As teorias alternativas deixaram de ser ensinadas e foram de tal forma esquecidas que, ao serem trazidas de volta à discussão, justamente quando toda moeda é fiduciária e está a caminho de se tornar apenas escritural, parecem revolucionárias.

Reação tão virulenta é evidência de que o tema é, como sempre foi, politicamente carregado. O espaço para o gasto público e o gasto privado não é ilimitado, está condicionado à capacidade produtiva da economia. Quando há desemprego e capacidade ociosa, o aumento do gasto público não compete com o gasto privado, pelo contrário, pode levar à recuperação do emprego e da renda. Essa é a essência da tese de Keynes na “Teoria Geral”. Nesse caso, não há efetivamente perdedores, todos teriam a ganhar.

Infelizmente, isso não é verdade quando a economia se aproxima do pleno emprego e o gasto público compete efetivamente com o gasto privado. Além de competir pela capacidade produtiva, o gasto público beneficia setores diferentes da sociedade. É, portanto, uma opção política. Abrir espaço para os gastos privados, pautados pela busca de resultados financeiros, também é uma opção política, mas que a teoria econômica pretende transformar numa opção científica. Como lembra Robert Skidelsky em seu último livro, “Money and Government: The Past and Future of Economics”, nada mais agradável aos homens práticos do que encontrar os seus preconceitos travestidos de ciência. Para deixar claro, os perdedores seriam os emissores privados de moeda, o sistema financeiro.

Essas ideias pedem um aggiornamento da profissão e da opinião pública tamanho que pode parecer prematuro perguntar sobre os problemas operacionais de uma mudança desse porte. Parece necessário que esse programa venha com um novo governo, com credibilidade e robustez política. Como você vê essa perspectiva? 

Para o aggiornamento da profissão e da opinião pública, é preciso antes de mais nada que o debate não seja interditado. Diante do questionamento do velho paradigma, a reação da maioria dos economistas tem sido a de desqualificar a priori as críticas. Sem contestá-las racionalmente, esperam que, com o silêncio dos cardeais, as críticas aos dogmas sejam desconsideradas e acabem esquecidas.

Por isso é tão importante que novas lideranças, tanto acadêmicas quanto políticas, entendam e divulguem a crítica à macroeconomia convencional. A apresentação de um programa coerente de revisão teórica e institucional, baseado no novo paradigma, seria fundamental para dar-lhe visibilidade e credibilidade.

Quais os requisitos econômicos e institucionais para dar início a um plano tal qual o senhor propõe? 

A consciência de que o Estado não tem restrição financeira deve vir acompanhada da imperativa necessidade de torná-lo competente. O Estado não precisa, necessariamente, levantar recursos, via impostos ou emissão de dívida, para gastar. Esta é uma decorrência lógica da moeda fiduciária. É ao mesmo tempo liberadora e assustadora.

Liberadora porque deixa claro que gastos, desde que justificados pelo aumento da produtividade e do bem-estar, podem ser feitos sem a preocupação de equilibrar o Orçamento a curto prazo. Perigosa porque sem a disciplina do Orçamento equilibrado, a vocação patrimonialista do Estado, a tentação populista para gastar de forma irresponsável, corporativista e corrupta, pode se tornar incontrolável.

Por isso é tão importante estabelecer limites rígidos para o gasto na operação do próprio Estado e critérios racionais para os investimentos públicos. A tecnologia já permite criar um Estado desburocratizado, com um custo de operação muitíssimo mais baixo.

A plataforma digital nacional, que proponho no meu livro e que já existe na Estônia e na Índia, é o caminho a ser seguido. Deve-se manter, de toda forma, a exigência de que os gastos correntes do Estado sejam sempre cobertos por receitas tributárias, mas abrir exceção para que os investimentos públicos possam ser aprovados fora do Orçamento. Para isso, deveriam ser avaliados e ordenados por uma agência independente, com base em critérios técnicos de retorno. O problema é que o o país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT.

O temor de que a democracia representativa não seja capaz de lidar com o fato de que o Estado não tem restrição financeira é compreensível. Por isso, é preciso adaptar as instituições e rever as regras para a aprovação de gastos públicos.

BC e Tesouro devem ser mantidos como agências à parte, mas teriam de ser coordenados. Como se resolve essa coordenação na manutenção da estabilidade de preços? O senhor poderia precisar qual seria o papel de uma autoridade monetária nessa nova configuração? 

Está comprovado que a taxa de juros é menos eficaz do que se imaginava para o controle da inflação. Quando sistematicamente mantida acima da taxa de crescimento da economia, transforma-se num dos principais fatores de desequilíbrio fiscal. Juros mantidos acima do crescimento potencial da economia são um equívoco de graves consequências.

As políticas monetária e fiscal não são independentes, são intimamente interligadas. Um BC independente que ponha a taxa de juros sistematicamente acima do crescimento potencial da economia sabota o equilíbrio fiscal. O BC é, antes de mais nada, o banqueiro do Tesouro e precisa trabalhar a favor e não contra o Tesouro. Com mercados financeiros líquidos e juros próximos de zero, a distinção entre moeda e dívida pública é menos importante do que parece. Tanto a moeda como a dívida interna são passivos financeiros do Tesouro que requerem uma gestão coordenada.

O controle da inflação é essencialmente uma questão de coordenação das expectativas. A desancoragem das expectativas é quase sempre decorrência da combinação de grandes desvalorizações cambiais, quando o financiamento externo é bruscamente interrompido, com ajustes populistas de salários e a desorganização recessiva da economia. Também do controle artificial de preços, como os de energia. Déficits fiscais transitórios, ainda que expressivos, não provocam necessariamente inflação.

O Tesouro poderia gastar, atendidos os pressupostos de eficiência etc., até o limite em que sua despesa não pressione além da conta a capacidade de produção, que não provoque excesso de demanda. Como se verifica esse limite? 

O principal sinal de que a economia está superaquecida e de que há pressão excessiva da demanda é o desequilíbrio das contas externas. Enquanto houver superávit comercial, há espaço para o crescimento da demanda.

O senhor observa os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo, da corrupção etc. As agências seriam instrumento suficiente para conter o esbulho da nova política? 

A experiência demonstra que o Estado é mau empresário, e as empresas estatais, ainda que possam começar bem, sempre envelhecem mal. Por outro lado, acreditar que seja possível ter uma economia capitalista competitiva sem um Estado competente é uma ilusão. Exatamente porque o setor privado procurará sempre capturar o Estado e as agências reguladoras é que o Estado precisa ser competente em todas as suas dimensões. O Estado despreparado, inchado e corporativista é presa fácil dos interesses específicos e dos “rent-seekers”.

Como diz David Graeber, antropólogo da London School of Economics, em seu “Dívida: Os Primeiros 5.000 Anos”, a ideia do mercado sem o Estado é o mito fundador da teoria econômica. A história da moeda-mercadoria, como uma geração espontânea dos mercados, ensinada nas escolas, não tem fundamento.

O Estado deve ser voltado para o bem-estar da sociedade, não um criador de benesses para os seus ocupantes e de dificuldades para o cidadão. Esta não é, como se sabe, uma tarefa fácil. O Estado brasileiro, apesar de ainda ter alguns focos de excelência, é inchado, burocrático e patrimonialista. Mas asfixiá-lo não é a solução. Acreditar que o Estado jamais poderá ser competente, que deva ter as suas mãos atadas, é um grave equívoco. Trata-se de uma visão forjada durante os anos da Guerra Fria, hoje flagrantemente anacrônica.

No Brasil corremos o risco de um processo de “failed state”. Presenciamos uma situação em que o crime se politiza e a política se criminaliza. Podemos caminhar para uma Venezuela.

*Vinicius Torres Freire, mestre em administração pública pela Universidade Harvard e colunista da Folha;

*Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima e editorialista da Folha.


André Lara Resende: Os riscos do fiscalismo dogmático

Como explicar que o Brasil seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Uma modernização do sistema passaria pela criação de uma moeda digital do BC, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado

A crise da macroeconomia
A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.

A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Em artigo recente, "Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência", que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças, procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.

Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.

Pilares de um novo paradigma
O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro "Juros, Moeda e Ortodoxia", de 2017.

Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.

O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.

O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados "agregados monetários", mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.

O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário - aquele que exclui os juros da dívida - for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.

Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.

Novas ideias, antigas raízes
Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico-financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro "The State Theory of Money". Ficou conhecida como "cartalismo" e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.

Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio "Functional Finance and the Federal Debt", Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.

A primeira prescrição de Lerner, a sua "primeira lei da finanças funcionais", é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda "lei das finanças funcionais", é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.

Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.

Já o fato de que o governo - que emite a sua própria moeda - não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.

Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.

A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, "O Valor da Ciência", o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.

Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.

É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo "o seu, o meu, o nosso dinheiro", para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.

Uma armadilha brasileira
Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.

O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.

A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.

Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.

Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.

Reformas voltadas para o futuro
Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das "reformas" deve ser estimular o investimento e a produtividade.

Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.

A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.

Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.

Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.

Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de "Juros, Moeda e Ortodoxia", sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.

*André Lara Resende é economista