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Lara Resende: Por que Summers e Bernanke agora defendem política fiscal expansionista

A hora é da política fiscal expansionista com ênfase nos investimentos públicos, propõem grandes nomes da formulação econômica americana

No dia 1º de dezembro, duas das instituições mais influentes de Washington, a Brookins e o Peterson Institute, promoveram um seminário para reavaliar o papel da política fiscal. Jason Furman e Larry Summers, ambos professores da Universidade de Harvard, respectivamente ex-presidente do Conselho Econômico de Obama e ex-secretário do Tesouro de Clinton, prepararam o texto que serviu de base para a discussão1. Para o debate foram convidados, além dos ilustres autores, Ben Bernanke, Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff. Bernanke presidiu o Fed durante a grande crise financeira de 2008, Blanchard e Rogoff foram economistas-chefes do FMI. Os três são renomados acadêmicos, doutorados pelo MIT, professores das Universidades de Harvard e Princeton. Estamos falando do que é a melhor expressão do cruzamento entre a academia e a tecnocracia, a fina flor da formulação e da execução da política econômica americana.

A conclusão do seminário, como disse Summers e, em seguida, Blanchard repetiu no Twitter, é que estamos diante de uma mudança de paradigma. Cesse tudo que a antiga musa canta, saem as políticas de austeridade e a busca do equilíbrio orçamentário. A tão decantada relação dívida/PIB é um indicador enganoso, deve ser desconsiderado. A hora é de uma política fiscal expansionista com ênfase nos investimentos públicos.

Essa já vem sendo a tese defendida pelo FMI. A diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, e a economista-chefe, Gita Gopinath, deram recentemente entrevistas defendendo o uso da política fiscal, tanto para amenizar a crise provocada pela pandemia como para garantir uma recuperação sustentada uma vez passada a crise.

Contra a corrente e sofrendo severas críticas, venho batendo nessa tecla desde antes da pandemia. Sustento que a combinação de uma política de juros altíssimos, conduzida pelo Banco Central desde a estabilização da inflação, com o Real em 1994, até muito recentemente, combinada com uma obsessão de equilibrar as contas públicas através de aumento da carga tributária e de corte dos investimentos, foi razão do baixo crescimento da economia nestes últimos 25 anos. Mas, antes de analisar o caso do Brasil, vejamos o que dizem Furman e Summers.

Comecemos pela relação dívida/PIB, que os nossos economistas e analistas que despontam na mídia usam como um indicador de que caminhamos inexoravelmente para o abismo. Os luminares americanos concluíram que estavam equivocados. A relação dívida/PIB não deve ser levada em consideração como indicador da solvência de um país. É um indicador falacioso, porque compara um estoque, a dívida, com um fluxo, a renda.

Na sua apresentação, Furman diz que nunca mais deixará de se sentir culpado por ter usado o conceito de dívida/PIB por tantos anos. Um indicador relevante deve comparar fluxo com fluxo, ou estoque com estoque. A comparação de estoque com estoque exige que se calcule o Valor Presente Redescontado (VPR) dos PIBs futuros do país. O VPR, ou o Valor Presente Líquido, é um conceito amplamente usado em economia e finanças.

Usa-se o VPR, por exemplo, para calcular o valor de uma empresa, a partir da estimativa de seus lucros futuros. Porque depende dos fluxos esperados de renda futura e da taxa de juros utilizada, o VPR está sujeito a grandes variações, de acordo com as expectativas utilizadas no seu cálculo. É essa variação que faz com que alguns achem que uma empresa cotada em bolsa está cara e outros, barata.

Uma empresa pode ter dificuldade para refinanciar a sua dívida, por isso compara-se o endividamento com o fluxo de caixa livre, o chamado Ebitda. Mas não faz sentido avaliar o risco de solvência de um país comparando o estoque da sua dívida com a sua renda hoje, dado que um país que emite sua moeda não corre risco de iliquidez. A dívida pública em moeda nacional deve ser comparada com o VPR da renda nacional.

Países, assim como civilizações, podem desaparecer, mas vamos simplificar e supor que os países tenham vida longa, em particular que o Brasil, posto que não é chama, seja eterno. O VPR do Brasil deve ser calculado redescontando o fluxo infinito dos PIBs futuros pela taxa de juros esperada daqui para frente. Supondo uma taxa de juros real de 2% ao ano, mesmo que o PIB brasileiro nunca mais crescesse, o VPR do Brasil seria 50 vezes o PIB de hoje.

Usando-se a dívida bruta do Tesouro, conceito inadequado como veremos à frente, mas o favorito dos novos “Beatos Salus” do fiscalismo, a dívida que é hoje 85% do PIB é apenas 1/50 de 85%, ou seja 1,7% do VPR da renda do país. Se supusermos que o país volte a crescer, a dívida torna-se ainda mais insignificante quando comparada ao VPR da renda. Se a taxa de crescimento for maior do que a taxa de juros, a dívida, mesmo como proporção do PIB, irá se reduzir sistematicamente se não houver déficit primários excessivos.

Supor que o país possa ter um crescimento superior à taxa de juros da dívida é uma hipótese mais do que razoável, se conseguirmos nos livrar da camisa de força ideológica do equilíbrio fiscal e se o Banco Central não se curvar aos apelos dos economistas do mercado para elevar a taxa de juros.

O cálculo do VPR da renda do país é um exercício intelectual para calcular um indicador coerente, que compare estoque com estoque, mas dada a enorme variância no seu valor, dependendo das hipóteses utilizadas, tem pouca utilidade prática. Como sustentam Furman e Summers, o indicador mais relevante é o que compara fluxo com fluxo, ou seja, o serviço da dívida com o PIB. Assim como ao examinar a viabilidade de assumir um financiamento de longo prazo, deve-se verificar se o valor das parcelas é compatível com a renda, a comparação relevante para a avaliação do endividamento público é entre o serviço da dívida e a renda nacional.

No Brasil de hoje, com a taxa real de juros abaixo de 2% e a dívida bruta perto de 85% do PIB, o serviço da dívida é de apenas 1,7% do PIB, muito abaixo do que era até recentemente, quando a dívida era menor, mas o juro muito mais elevado. Em toda parte do mundo, com as taxas de juros muito baixas, o serviço da dívida é hoje pouco oneroso.

A ideia do VPR do PIB chama atenção para um ponto fundamental e pouco compreendido: o que ancora a moeda fiduciária é a percepção de perenidade do Estado. É o fato de que o Estado estará sempre lá para aceitar seus títulos para pagamento de impostos que dá credibilidade e aceitação à moeda. Essa é a tese do economista alemão Georg Knapp (1842-1926), que, no início do século XX, foi reinterpretada pela moderna Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP). A diferença é que a TFNP dá mais importância à solvência financeira do Estado, enquanto Knapp ressalta a estabilidade política-institucional do Estado.

Todo o espaço para a emissão de moeda e de dívida, sem provocar a inflação, se evapora quando o Estado ameaça se desorganizar. O fato de que quando o Estado caminha para o colapso político-institucional, ainda que com baixo nível de endividamento, a moeda perde credibilidade e a inflação se acelera é evidência clara a favor do Cartalismo de Knapp.

Voltemos a Furman e Summers. Reconhecido o equívoco de se utilizar a relação dívida/PIB como indicador da saúde fiscal e da sustentabilidade da dívida, eles concluem que é preciso praticar uma política fiscal agressivamente expansionista. Numa flagrante reversão da tese da “austeridade expansionista”, defendida por alguns deles depois da crise de 2008, concluem que a política fiscal expansionista em períodos de recessão não aumenta, mas sim reduz a relação dívida/PIB.

Reconhecem que investimentos públicos se pagam e hoje são altamente necessários. Bernanke, nos seus comentários, sustenta que os investimentos públicos, em infraestrutura, saúde, educação, energia limpa e pesquisa, têm atualmente retorno muito mais elevado do que os investimentos privados. Em artigo recente, na mesma linha, argumentei que no mundo de hoje existe um excesso de oferta de bens materiais e de serviços privados e uma insuficiência de serviços e bens públicos.

No dia seguinte ao seminário da Brookings, participei, com Luiz Carlos Bresser-Pereira, Nelson Marconi, Monica de Bolle e Manoel Pires, de um painel sobre o investimento público e a retomada do crescimento no Fórum de Economia da FGV-SP. Bresser-Pereira e Marconi apresentaram uma proposta para elevar o investimento público no Brasil para 5% do PIB i. Na década de 1970 a taxa de investimento público foi em média quase 8% ao ano. Desde então, está em queda, até chegar a menos de 2% nos últimos anos e caminha para ser zero, se o teto dos gastos e o aumento das despesas correntes forem mantidos. Partem da premissa incontestável de que o crescimento depende do investimento. Sustentam que o investimento público é indispensável e complementar ao investimento privado.

Enquanto houver capacidade ociosa e desemprego, o investimento público não concorre com o investimento privado. Ao contrário, se bem conduzido, restrito à expansão de bens e serviços públicos, sem invadir setores onde o investimento privado dá conta do recado, aumenta a produtividade da economia e o bem-estar social.

Na mesma linha de Furman e Summers, argumentam que, como o investimento público de qualidade depende de planejamento e de projetos que tomam tempo, o Estado deveria ter sempre uma carteira de investimentos aprovados, que seriam executados de acordo com a necessidade e a capacidade da economia. A velocidade de execução seria calibrada para evitar tanto a recessão e o desemprego quanto as pressões inflacionárias e o desequilíbrio nas contas externas.

Em consonância com o que propus, em artigo neste mesmo Valor no ano passado, sugerem a criação de uma agência com competência técnica para avaliar os investimentos e a velocidade adequada de sua execução. A política monetária é incapaz de estimular a economia quando a taxa de juros já está muito baixa. A insistência numa política monetária expansionista, perto do limite inferior dos juros, corre risco de provocar um excesso de euforia nos mercados financeiros, sem qualquer efeito sobre a demanda agregada e o nível de atividade.

Essa é a razão pela qual uma agência competente de investimentos públicos é hoje tão ou mais importante do que o Banco Central. As políticas monetárias e fiscal são indissociáveis, não podem ser conduzidas de formas independentes e muitas vezes contraditórias. Bresser-Pereira e Marconi propõem que o Conselho Monetário Nacional, à semelhança do que faz o Copom em relação à taxa de juros, de acordo com a sua avaliação da economia e das pressões de demanda, defina o ritmo dos investimentos públicos.

A governança dos órgãos responsáveis pela avaliação da qualidade dos investimentos e pelo ritmo de sua execução é uma questão da mais alta relevância e merece estudo cuidadoso. É preciso encontrar um equilíbrio delicado, um desenho institucional que evite tanto pressões políticas ilegítimas quanto a arrogância tecnocrática.

A governança das políticas monetária e fiscal é um tema complexo e politicamente sensível. É preocupação com pressões políticas ilegítimas que explica a resistência de aceitar o que é uma constatação lógica irrefutável: o Estado que emite sua moeda fiduciária não tem restrição financeira. A moeda fiduciária é um passivo do Banco Central, portanto uma dívida do Estado, assim como os títulos do Tesouro.

A moeda fiduciária é apenas um título de dívida do Estado, emitido pelo Banco Central, que não paga juros e não tem prazo de vencimento, é uma perpetuidade. A distinção entre moeda e dívida pública perdeu sentido com o fim do padrão-ouro. O desenvolvimento dos mercados financeiros deu aos títulos de dívida pública uma liquidez quase perfeita, indistinguível da moeda. É possível comprar e vender dívida pública no mercado quase que instantaneamente.

A taxa de juros próxima de zero na dívida foi o golpe final na distinção entre moeda e dívida. Hoje, moeda e dívida são perfeitamente líquidas e praticamente não pagam juros. Quando o Estado gasta, credita necessariamente moeda em quem recebe do Estado. A decisão de obrigar o Estado a compensar a moeda emitida - creditada seria um termo mais adequado, dado que a moeda é quase que integralmente eletrônica - com a arrecadação de impostos é uma restrição institucional.

Uma restrição que deixa de fazer sentido quando se entende que o espaço para a emissão de moeda e dívida é muito maior do que se supunha. Foi o que o demonstrou de forma incontestável o experimento do QE. Como lembrou Bernanke, autor intelectual e executor do QE, no debate da Brookings, o mesmo experimento já vinha sendo posto em prática no Japão, desde o início do século, sem pressionar a inflação. Quando há insuficiência de demanda agregada, capacidade ociosa e desemprego, o Estado pode e deve gastar, emitindo uma combinação de moeda e dívida, sem se preocupar com o equilíbrio fiscal ou com o aumento da relação dívida/PIB. A responsabilidade fiscal e a disciplina orçamentária devem ser reinterpretadas como a busca da qualidade do gasto, da eficiência na operação do Estado.

Trocar ideias e discutir propostas, como tive a oportunidade de fazer no Fórum da FGV-SP, me pareceu um sopro de ar fresco no ambiente dogmático e raivoso com que tenho me deparado desde que passei a sustentar que o consenso macroeconômico convencional estava equivocado. Tenho me esforçado para entender as razões de uma tal falta de abertura mental de nossos economistas ortodoxos, hoje em grande parte associados ao mercado financeiro.

Resisto a aceitar que se trate de mera defesa de interesses, ainda que inconsciente. Parece-me mais uma combinação de um arraigado colonialismo intelectual, com o temor da perda do prestígio e da influência que adquiriram nas últimas décadas. Agora, com a guinada dos cardeais da metrópole, ficará difícil explicar a insistência no mantra fiscalista.

Pode-se sempre argumentar, parafraseando um ex-banqueiro central canadense a respeito da aposentadoria da Teoria Quantitativa da Moeda, que “não fomos nós que abandonamos o fiscalismo, foi o fiscalismo que nos abandonou”. Seja lá o que isso quer dizer. Com certeza, irão apelar para a tese da “jabuticaba”, que o Brasil é diferente, o que vale para os países avançados não vale aqui, um país que tem um histórico de inflação, que não emite uma moeda reserva, onde impera a irresponsabilidade política.

A moeda reserva faz realmente diferença para os países que têm déficits recorrentes nas contas externas e dívida externa. Foi o caso do Brasil na segunda metade do século passado. Obrigado a se financiar no exterior em moeda estrangeira, para compensar o déficit na conta corrente do balanço de pagamentos, o Brasil passou por graves crises todas as vezes que viu o crédito externo ser bruscamente interrompido.

Se emitisse moeda reserva, como os EUA e a União Europeia, não teria tido problemas. Hoje, o Brasil é autossuficiente em petróleo e trigo, tem um setor agropecuário altamente superavitário, a conta corrente caminha para o equilíbrio e o país acumulou o equivalente a mais de 30% do PIB em reservas internacionais. A atual dívida pública brasileira não sofre do que a literatura econômica chama do “pecado original”, o fato de ser uma dívida com estrangeiros, denominada numa moeda que o país não emite. A dívida pública brasileira hoje é do Estado com brasileiros e denominada em moeda nacional. O aumento da dívida e da taxa de juros tem, sim, efeitos redistributivos perversos, mas essa é uma outra história. Fica para uma próxima oportunidade.

Quando o Tesouro anuncia o maior déficit nominal da história, quando a relação dívida/PIB atinge o seu mais alto nível e o coro dos que anunciam a hecatombe final se intensifica, o Brasil acaba de fazer uma emissão externa de dívida pública, desnecessária por sinal, à menor taxa de todos os tempos. A cotação do dólar cai e a bolsa sobe, mas os fiscalistas insistem que vamos para o abismo se o teto dos gastos for desrespeitado e o Banco Central não subir os juros. E os economistas se dizem cientistas que se baseiam na evidência empírica. Julgue por você mesmo, caro leitor.

1 Furman, Jason and Summers, Larry "A Reconsideration of Fiscal Policy in an Era of Low Interest Rates", presentation to the Hutchinson Center on Fiscal & Monetary Policy and Peterson Institute for International Economics - December 1, 2020

i Bresser-Perreira, L.C. e Marconi, N. "5% do PIB para o Investimento Público", mimeo, Nov. 2020

*André Lara Resende é economista


André Lara Resende: ‘Investimento público é mais importante que juro baixo para atenuar recessão’

Para economista, é preciso superar o arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica

Adriana Fernandes, O Estado de S. Paulo

O economista André Lara Resende é hoje uma voz dissonante do pensamento econômico dominante no Brasil. Quinto entrevistado da série do Estadão "Saídas para a Crise Fiscal”, Lara Resende afirma que o investimento público é hoje muito mais importante do que a política de juros como resposta para a retomada econômica após a pandemia do coronavírus e também para o desenvolvimento de longo prazo do País.

Um dos formuladores do Plano Real e com a experiência de ter trabalhado mais de 30 anos no mercado financeiro, Lara Resende propõe a criação de um órgão, protegido de "pressões políticas ilegítimas", para definir os investimentos públicos. Para ele, essa é hoje uma medida mais valiosa do que um Banco Central independente.

O economista alerta que até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Ambientalista, Lara Resende diz que é incompreensível a postura do governo Jair Bolsonaro em relação à questão ambiental, considerada por ele o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, e que compromete o Brasil no exterior. 

Como o sr. avalia a resposta do governo à pandemia da covid-19?

A resposta à pandemia foi conturbada, incompetente e negacionista no todo. Quanto à política econômica, apesar de alguma hesitação inicial, com o auxílio de emergência, o governo acabou por dar uma resposta que aliviou temporariamente a situação dos que perderam o emprego ou a renda. O auxílio emergencial foi fundamental para aliviar a recessão e a crise social provocada pela pandemia. Até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Quando a pandemia parece recrudescer, volta-se a falar na necessidade de encerrar o auxílio em nome do equilíbrio fiscal. Mais uma demonstração clara de que o governo continua dominado por restrições ideológicas.

Uma das preocupações no Brasil é justamente o crescimento da dívida, que caminha para 100% do PIB. É um problema?

Trata-se de uma preocupação infundada. Em várias ocasiões na história, sobretudo depois de guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas superiores ao PIB. Hoje, Japão, EUA, Itália, entre outros, têm dívida superior ao PIB. A dívida pública não pode ter uma trajetória explosiva, mas, desde que o seu crescimento acelerado seja transitório, que passada a crise, com as contas reequilibradas e restaurado o crescimento da economia, a relação entre dívida e PIB volte a cair, não há qualquer problema em ultrapassar os 100% do PIB.

Existe um limite para a dívida?

Não existe um limite intransponível para a dívida interna e o PIB. O endividamento externo, que depende de financiamento do exterior em moeda estrangeira, é sim perigoso. Como aprendemos com as sucessivas crises da dívida externa no século passado, quando os credores internacionais passam a ter dúvida sobre a capacidade do País de honrar seus compromissos em moeda estrangeira, a súbita interrupção do fluxo de financiamento pode provocar crises gravíssimas. No século passado, o Brasil era importador líquido de petróleo e derivados, assim como de trigo e outras commodities (produtos classificados como  básicos por não ter tecnologia envolvida ou acabamento). Precisava de financiamento externo para cobrir o déficit com o resto do mundo. Hoje, somos autossuficientes em petróleo, exportadores líquidos de commodities e temos um setor agropecuário altamente superavitário. O Brasil de hoje não tem dívida pública externa, ao contrário, tem quase 30% do PIB em reservas internacionais. A nossa dívida é interna, do Estado com os brasileiros.

Em entrevista recente ao ‘Financial Times’, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, disse que os países precisam evitar o erro de retirar prematuramente os estímulos fiscais, como ocorreu na crise financeira. Ela chama atenção que há formas de investimento público que podem criar empregos e aumentar a atividade econômica e, ao mesmo tempo, serem fiscalmente responsáveis para sair da crise. Como conciliar essas coisas?

Gita Gopinath disse apenas o que se sabe desde a publicação do livro de John M. Keynes (1883-1946, defensor de maior intervenção do governo na economia para estimular o crescimento) na década de 1930. Gopinath não é uma heterodoxa irresponsável, mas economista-chefe do FMI, doutora pela Universidade de Princeton, onde teve como orientadores Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, e Ken Rogoff, professor da Universidade Harvard, dois expoentes da ortodoxia econômica. A política fiscal, sobretudo investimentos públicos que aumentem a produtividade e o poder aquisitivo da população, é o mais poderoso instrumento, tanto para se sair de uma recessão como para garantir a retomada do crescimento sustentado.  A pergunta mais complicada de ser respondida é por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada “Visão do Tesouro”, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério.

O Brasil, que tinha uma situação fiscal frágil e déficits há sete anos e com previsão de resultados negativos até 2028, pode seguir essa recomendação do FMI em 2021?

É verdade que há mais de duas décadas a relação dívida e PIB do Brasil tem aumentado, mas não temos uma situação fiscal frágil. A carga fiscal do Brasil é de quase 35% do PIB, muito alta para um país de renda média. Apesar da alta carga fiscal, não conseguimos controlar o crescimento da dívida. A razão é que a taxa de juros foi extraordinariamente alta até muito recentemente. Com taxas de juros que chegaram a mais de 25% ao ano e um crescimento medíocre da economia, o resultado é inexorável: a relação dívida/PIB cresce. O Estado brasileiro custa muito e gasta mal? Com certeza, mas não é essa a razão do crescimento da dívida. A política de taxa de juros do Banco Central, do real até muito recentemente, foi um gravíssimo equívoco. A história irá deixar claro o preço de uma política de juros extraordinariamente altos, associada a uma pesada e kafkiana carga fiscal.

Qual a saída a seguir?

Antes de mais nada, é preciso superar a camisa de força imposta por um arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica. Dizem que com equilíbrio fiscal todos nossos problemas estarão milagrosamente resolvidos. Sem ele, caminhamos a passos largos para o abismo. Nada mais falso. Precisamos urgentemente voltar a ter um projeto para o País, ter objetivos de políticas públicas que balizem os investimentos públicos e privados, que norteiem a transição para uma matriz energética limpa e não nos deixe perder o bonde da revolução digital em curso. Precisamos refletir sobre as políticas de emprego, saúde e educação neste novo mundo do século XXI.

Por que o sr. considera ser uma falácia o argumento de que o governo não tem dinheiro para investimento?

Porque é falso. O governo não tem recursos para investir porque adotamos restrições legais-administrativas que deixam relativamente livres os gastos correntes e impõem limites ao total dos gastos. O teto dos gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) é exemplar: se mantido, vai levar ao colapso completo do investimento público. O governo que emite sua moeda fiduciária (documento que possa ser aceito como pagamento, como as notas de real), como é o nosso caso, não tem restrição financeira, pois, quando gasta, necessariamente, emite moeda. A decisão de obrigar o governo a retirar a moeda emitida, seja através da cobrança de impostos ou da emissão de dívida, é uma decisão político-administrativa. Pode se justificar para impedir que o governo gaste de forma irresponsável e incompetente, mas não é uma restrição real.

É mais eficiente deixar os investimentos fora do teto?

Sim. O teto pode até ser uma restrição importante para impedir um Estado inchado, que gaste muito na sua própria operação, mas não faz sentido ter um teto com os gastos correntes não controlados. O resultado é a inviabilização dos investimentos. Os investimentos públicos são muito mais importantes do que juro básico baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão quanto para o desenvolvimento de longo prazo. É mais importante ter um órgão sério e competente, protegido das pressões políticas ilegítimas, para definir os investimentos públicos, do que um Banco Central independente.

É possível fazer uma recuperação econômica verde e sustentável pós-pandemia?

Infelizmente, o governo Bolsonaro está na contramão de uma política ambiental sustentável. A incompreensível postura do governo em relação à questão ambiental, hoje considerado o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, compromete o Brasil no exterior, prejudica nossas exportações e reduz os investimentos externos. Além de fazer a coisa certa, teríamos muito a ganhar com uma política ambiental inteligente e responsável, que poderia servir de balizador de uma nova etapa de nosso desenvolvimento.

Qual o papel das reformas administrativa e tributária para destravar o crescimento?

Me parece que uma reforma tributária, cujos objetivos fossem a simplificação, a racionalização e a equidade, não o equilíbrio a qualquer custo, e que nos livrasse do atual cipoal tributário, seria um passo importante para nos tirar do atoleiro em que nos metemos. Mais do que uma reforma administrativa, nome que se dá ao que é apenas mais uma tentativa de reduzir os salários e os benefícios do funcionalismo, precisamos modernizar a governança do País, inclusive o sistema político, que caminha a passos largos para se tornar disfuncional e corre o risco de perder legitimidade.

*André Lara Resende, economista, graduado em ciências econômicas pela PUC-Rio, André  Lara Resende nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É doutor em economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). Trabalhou mais de 30 anos no mercado financeiro e é um dos formuladores do Plano Real. Em seu livro mais recente, “Consenso e Contrassenso”, uma coletânea de ensaios, propôs uma virada nas perspectivas teóricas da macroeconomia. Foi diretor do Banco Central, negociador chefe da dívida externa e presidente do BNDES. Seus livros "Os limites do possível" e "Devagar e simples", publicados pela Companhia das Letras, ganharam o prêmio Jabuti em 2013 e 2015. 


Valor: Dogma e temor de reeleição mantêm teto de pé, diz Lara

Para economista, mecanismo inviabiliza a retomada

Por Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

SÃO PAULO - O teto de gastos tem data marcada para ruir, mas sobrevive com base em dois pilares, o dogma do mercado e o receio do Congresso de que sua derrubada favoreça a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O economista André Lara Resende tem interlocução suficiente no mercado e no Congresso e independência de ambas as instâncias para fazer uma afirmação dessas sem rodeios.

É um sequestro mútuo, sem vítimas inocentes. O mercado se ampara no teto de gastos porque acredita que o Brasil tem que continuar a remar contra a maré mundial e usa o fantasma da confiança do investidor para pressionar o Congresso a manter barreiras artificiais contra o gasto público.

O Congresso é mais sensível ao gasto, visto que depende dele para arrumar voto, mas vale-se do fantasma da fuga de capitais para negociar sua autorização, seja pela disputa entre beneficiários das liberações de verbas, seja porque teme que o maior deles seja a reeleição do presidente em 2022.

Os argumentos de Lara Resende são conhecidos. Se o Brasil ultrapassar os 100% na relação dívida/PIB, será um entre tantos do clube. A convivência com déficits, ainda que durante alguns anos, não é mais tratada, em lugar algum, como uma ameaça, mas como uma alavanca necessária para tirar economias do buraco em que a pandemia as meteu. E como o país não tem dívida externa, mas doméstica, falar em fuga de capitais é enganação.

O setor público deve atuar na indução do investimento privado e na incorporação das massas excluídas. Não é pela obsessão pelo equilíbrio orçamentário que se vai chegar a um ou a outro. Desde a crise de 2008 ruiu a crença de que a emissão de moeda provoca inflação. O controle de gastos deve evitar que interesses patrimonialistas deles se apropriem, mas não por ser um valor em si mesmo.

Essa obsessão freia, por exemplo, a convergência em torno de uma proposta de reforma tributária. São tantos os empecilhos criados pelos setores que podem vir a ser atingidos pelas medidas de simplificação que Lara Resende não vê outra saída senão aceitar um gasto compensatório, ainda que temporário, para mitigar perdas e permitir a reforma.

O risco a ser evitado, diz, é o da reforma da Previdência, que, tratada como a grande panaceia, acabou se mostrando como necessária, mas insuficiente, porque mais danosa ao INSS do que ao setor público.

Ex-presidente do BNDES, Lara Resende não gosta do Pró-Brasil nem conhece as mudanças que o ministro Paulo Guedes pretende fazer no programa. Tem certeza, porém, que uma agência de investimentos públicos, capaz de uma alocação eficiente para o desenvolvimento, com a mediação do Congresso, teria hoje um papel mais importante para a economia do que um Banco Central independente.

O economista vê uma conversão dessa natureza como um cavalo de pau difícil para as convicções do ministro, de quem foi colega na PUC-Rio, de cátedra e das peladas entre professores. Alguma mudança, porém, parece estar se operando, como adiantou o Valor na sexta-feira, na disposição do ministro em reformular e incorporar o Pró-Brasil, hoje capitaneado pelas pastas do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e Infraestrutura (Tarcísio Freitas) em aliança com os ministros de extração militar do Palácio do Planalto.

Junte-se a isso a reunião entre Guedes e o grupo de parlamentares que negocia a perenização de um programa de renda básica após o fim da vigência do auxílio emergencial. Os parlamentares presentes saíram com a impressão de que o governo está disposto a viabilizá-lo, ainda que não esteja claro como.

A pretensão, explicitada aos parlamentares, é levar adiante não apenas a junção do Bolsa Família, do salário família e do abono salarial como a incorporação de créditos a serem devolvidos do imposto decorrente da unificação do PIS e Cofins. São planos que dependem de, pelo menos, duas mudanças de intrincada costura: o fim do abono e a aprovação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). À tarefa some-se ainda a aprovação do imposto sobre transações eletrônicas que viria a financiar a retomada do investimento público, além da desoneração da folha.

É tudo difícil, mas um primeiro obstáculo foi tirado da frente na semana passada. Enquanto o ministro se reunia com os parlamentares da frente pela renda básica, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), conduzia a sessão que manteve o veto ao reajuste do funcionalismo.

Surgiu uma brecha de convergência que aponta, paradoxalmente, para o desmonte, explícito ou disfarçado, do teto de gastos. Essas ideias amadurecem no governo e no mercado. No BTG Pactual, por exemplo, já há conselheiros convertidos às ideias de Lara Resende.

No mesmo dia de sua última fala pública, no Fórum de Desenvolvimento, do economista Raul Velloso, um grupo de economistas, em grande parte de instituições financeiras, fez um manifesto em defesa do teto. O texto não abre mão do teto, mas reconhece o mérito, para a eficiência econômica e para o bem-estar da população, da expansão dos gastos assistenciais e de infraestrutura. Desde que reduzidas despesas obrigatórias, como as de pessoal.

Foi nesse sentido que avançou a manutenção do veto ao aumento do funcionalismo na semana passada e é nessa direção também que aponta a proposta de emenda constitucional do gatilho de gastos em tramitação no Senado. É uma proposta que veda reajustes, suspende promoções e proíbe concursos. Ao fim e ao cabo, aperta a máquina pública para alocar recursos em obras e renda básica.

Para chegar à proposta de Lara Resende e evitar a deterioração dos serviços públicos, precisaria avançar na direção de um governo digital, cujos ensaios malogrados levaram à saída do secretário de desburocratização, Paulo Uebel.

A PEC está no Senado, onde o jogo ficou mais instável com a derrota do governo na votação dos vetos presidenciais. É por meio dela, porém, que se pode fazer uma reforma administrativa disfarçada, enquanto a proposta do governo não vem. Na hipótese de a celeuma de o teto de gastos se acomodar aos interesses de lado a lado, esta será a nova frente de batalha.

Os economistas liberais e lideranças como Rodrigo Maia cobram a redução da máquina pública, necessária mas de alto custo político. Trata-se de outra convergência, com vetores distintos da defesa do teto, mas cujo pedágio também é o desgaste do presidente.