Ana Carla Abrão

Ana Carla Abrão: De boas intenções…

Temos que ter mais do que boas intenções para desenhar políticas públicas corretas e eficazes para o mercado de crédito

O mercado de crédito responde a riscos. Maior o risco, em particular o de inadimplência, mais caro e mais escasso o crédito. Esse é o mecanismo que garante que os recursos – captados do público pelos bancos ou de investidores pelas fintechs – sejam aplicados de forma segura e sejam canalizados para investimentos com maiores chances de vingar. Vem daí a contribuição do mercado de crédito para o desenvolvimento econômico e para o aumento do bem-estar das pessoas.

No Brasil, há episódios recentes em que se tentou desvirtuar esse mecanismo, forçando a desconexão entre risco, preço e volume de crédito e impondo redução de juros via bancos públicos ou financiando projetos e empresas a juros subsidiados. Esses, na melhor das hipóteses, poderiam ter sido financiados a juros de mercado. Na pior, nem deveriam ter sido financiados. Nessa ilusão de que intervenções diretas no mercado de crédito funcionam, o que se conseguiu ao final foi: i) transferência da inadimplência do sistema para os bancos públicos (e portanto para o Tesouro Nacional) e ii) uma contração maior do mercado de crédito do que seria esperado em condições normais de funcionamento. Vivemos hoje a maior crise da nossa história.

Aliam-se à crise de saúde uma crise econômica sem precedentes e uma crise política desnecessária, mas infelizmente presente e grave. Nada mais natural do que a proatividade na busca de saídas e ações de resposta por parte dos nossos agentes públicos. A maioria deles com a melhor das boas intenções. A bola da vez agora é o mercado de crédito. Sabemos que ele é um importante motor de crescimento e pode ser, quando escasso e caro, um fator adicional de agonia e angústia num momento tão crítico. Mas não se pode abandonar os conceitos quando se busca uma solução, sob o risco de se provocar uma grande desorganização do mercado de crédito e adicionar um fator adicional de instabilidade, ao criar um risco sistêmico que pode agravar ainda mais a atual crise.

A crise na economia real resvala no mercado de crédito por meio do aumento da inadimplência. Foi assim em 2015, por exemplo. Ali, foram observados aumentos de 85% e superiores a 100% na inadimplência de pequenas e médias empresas e de grandes corporações, respectivamente. A atual crise tem características distintas, mas é claramente mais profunda e espalhada. Considerando-se o movimento de expansão de crédito observado pré-covid, não é errado supor que um impacto ainda mais forte possa ser observados sobre as carteiras de crédito atuais.

É possível, com base em cenários de estresse, estimar esses números. Esses exercícios indicam que o impacto nas carteiras deve significar um aumento substancial nas provisões, que podem superar os R$ 400 bilhões. Esse número não difere muito do que o próprio Banco Central apresentou no Relatório de Estabilidade Financeira, divulgado no final do mês passado. Como nosso sistema bancário é capitalizado, o risco sistêmico está controlado na medida em que os bancos possam responder com a contração de crédito necessária para contrabalançar a perda de crédito que se seguirá do aumento da inadimplência, mantendo assim a higidez do sistema e protegendo os recursos dos depositantes.

Mas, aos olhos da sociedade, isso não parece ser o melhor cenário. Afinal, estamos vivendo um período de exceção, com grandes perdas econômicas e um aumento brutal da desigualdade. Lidar com restrições de crédito nesse momento parece ser cruel e desumano. E, de fato, é. Mas é aí que mora o perigo das boas intenções. Interferir diretamente no mercado de crédito – a exemplo do que quer fazer o projeto de lei do senador Álvaro Dias, que limita juros e congela limites – significa emperrar essa roda e adicionar ao cenário um novo risco: o de uma desorganização do mercado de crédito, com impactos futuros que, na melhor das hipóteses, comprometerão ainda mais nossa capacidade de crescimento. Na pior, poderá gerar uma crise financeira sistêmica, fragilizando o mercado, gerando maior concentração e eliminando do setor participantes novos que vinham trazendo competição, eficiência e inclusão financeira à população de mais baixa renda.

O que fazer, então, para se conseguir alívio sem interferir nos mecanismos que garantem o bom funcionamento do mercado de crédito? Um caminho é partir de uma avaliação do potencial problema de crédito já contratado, com base nos cenários possíveis de estresse, e desenhar um amplo programa de apoio ao crédito. Programas pontuais e setoriais, como os já anunciados pelo governo, Banco Central e bancos foram e são adequados para lidar com a crise emergencial de liquidez. Mas podem não ser suficientes para dar conta de uma eventual crise de solvência, abrindo caminho para a proatividade bem intencionada do Legislativo e também do Judiciário. Mas temos que ter mais do que boas intenções para desenhar políticas públicas corretas e eficazes. Até porque, de boas intenções, o inferno está cheio.

*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.


Ana Carla Abrão: Amanhã vai ser outro dia

Projeto que foi aprovado no Senado corrige arroubo de generosidade dos deputado

A maioria dos brasileiros – infelizmente não todos – entende que é a proteção da vida e da saúde das pessoas a maior de todas as prioridades neste momento. Estamos debruçados em números e projeções assustadores, que mostram a escalada da pandemia que já ultrapassou os 3,5 milhões de infectados e já matou ao menos 250 mil pessoas no mundo. No Brasil, já ultrapassamos a marca dos 100 mil infectados e dos 7 mil mortos nos números oficiais que, sabemos, estão subestimados em função da baixa taxa de testagem da população. Mesmo com toda essa tragédia humana, a pandemia ainda está longe de estar controlada e nós no Brasil estamos longe de entender toda a extensão do seu impacto sobre a população e sobre a economia do País.

Medidas emergenciais foram adotas nas áreas da saúde e da economia. Discussões políticas acaloradas fizeram parte do noticiário dos últimos meses. A ignorância e o descaso dominaram a pauta em alguns momentos. Esses passarão para a nossa história de forma vergonhosa. Mas a verdade é que, na medida em que outros países do mundo começam a adotar medidas de flexibilização do isolamento social e se preparam para um novo normal, levantam-se as dúvidas quanto ao futuro e à capacidade de recuperação das economias após essa brusca interrupção. Percebe-se que as incertezas em relação à recuperação não estão vinculadas apenas à intensidade da crise, mas também à natureza das medidas adotadas durante os momentos mais agudos e à efetividade das ações de retomada. No Brasil não será diferente.

Um exemplo é o plano de ajuda aos Estados e municípios. Colocado em contexto, responde à necessidade urgente de aumento de gastos com saúde que os entes subnacionais enfrentam como linha de frente no combate à pandemia. A situação se agrava com a queda de arrecadação vinculada à interrupção da atividade econômica. Entes subnacionais não emitem dívida e estão, portanto, limitados às suas receitas e às transferências da União. Se alguma dessas despenca, tudo desaba. Ainda mais no desequilíbrio que já viviam. Priorizar vidas neste momento significa ajudar esses entes a ultrapassarem esse momento. O projeto aprovado na Câmara ia muito além, prometendo o céu e contratando uma conta não necessariamente vinculada às necessidades impostas pela pandemia.

Felizmente, o projeto que foi aprovado no último sábado pelo Senado corrige boa parte desse arroubo de generosidade. A proposta define um limite de R$ 60 bilhões para o auxílio financeiro direto, contribuindo para que o socorro não gere leniência na gestão da arrecadação local. Além disso, inclui-se como contrapartida o congelamento dos salários dos servidores públicos – exceção feita a profissionais de saúde, de segurança e das Forças Armadas – até o final de 2021. Ao também restringir reestruturações de carreira, contratação de pessoal (exceto para repor vagas abertas) e interromper por um ano e meio a contagem de tempo para concessão de anuênios, quinquênios, etc, o Senado conseguiu bloquear a canalização desses recursos para o financiamento de aumentos das despesas de pessoal no setor público. Ao excluir a segurança desse dispositivo, boa parte da economia ficou de fora, mas ainda é melhor do que só o congelamento. Outra grande conquista é que essas limitações atingem os três poderes e não somente o Executivo. A não ser que haja as conhecidas e históricas reações corporativistas no Judiciário, teremos um pouco mais de controle desses gastos pela primeira vez em décadas.

Mas a verdade é que, ao mesmo tempo em que mantemos a proteção da vida e da saúde dos brasileiros no topo das prioridades e intensificamos o combate à pandemia, temos de pensar no dia de amanhã e já começar a construí-lo. É chegada a hora de começarmos a pensar em um plano nacional de retomada que parta dos conceitos corretos e faça a transição entre o enfrentamento da crise e a gestão do futuro. Não me refiro aqui a obras públicas mirabolantes, listadas a partir de um delírio nacionalista e nostálgico. Falo de um plano de retomada que leve em conta as diversas dimensões desta crise: o monitoramento da curva de contaminação e as necessárias ações de saúde; os motores de crescimento da economia (crédito, confiança, ambiente de negócios); a aceleração do processo de digitalização dos serviços públicos e a retomada da agenda de reformas, única garantia possível de manutenção de nossa solvência e dos patamares baixos de juros e, portanto, da recuperação de nossa capacidade de crescimento. Um plano assim se constrói com liderança e coesão e passa necessariamente pela recuperação dos laços federativos esgarçados por embates políticos. Passa também por uma grande coalizão entre Executivo, Legislativo e Judiciário e por capacidade de formulação de medidas de retomada que combinem responsabilidade, competência e consistência. Afinal, apesar de você, amanhã há de ser outro dia.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA


Ana Carla Abrão: Crédito e contaminação

A renda que se perdeu neste período de isolamento social dificilmente será recuperada

No mundo todo a crise do covid-19 está impondo desafios que vão além dos impactos na saúde e dos efeitos das medidas de isolamento sobre a economia real. O mercado de crédito e o setor financeiro têm também enfrentado uma enorme mudança, e não será diferente pelos próximos anos, dadas as alterações no comportamento do consumidor bancário e as perspectivas econômicas à frente. Crédito e PIB andam juntos. Mais do que isso, mercados de crédito ativos e profundos geram crescimento econômico. Por outro lado, seu enfraquecimento significa um fator negativo adicional, podendo agir como um reforço à recessão econômica que começa a se desenhar.

A economia brasileira já está fortemente impactada pela pandemia. Parte desse impacto, mais severo do que em outros países, se explica pela situação de fragilidade que já nos encontrávamos antes mesmo do primeiro caso oficial ser reportado na China. Afinal, não é de hoje que os problemas fiscais, a dificuldade de retomada consistente do crescimento e as crises políticas deflagradas pelo presidente da República e seu entorno nos assombram. Não é de se surpreender que tenhamos caído nesse abismo. Mas é certamente de se lamentar.

As ações das empresas brasileiras sofreram com quedas médias na B3 superiores às observadas em nossos pares e a desvalorização do real superou a das moedas de países similares. A economia real sente o impacto da interrupção da atividade e marcha a passos largos a caminho da recessão que, sabemos, se traduz em quebra de empresas, mais desemprego, em destruição de riqueza e renda e em aumento da desigualdade. Há que se agir para evitar, ou ao menos minimizar essas perdas.

Pelo lado do mercado de crédito o impacto já está sendo sentido. Inicialmente, a busca por liquidez pressionou as concessões. Na sequência, os programas de recomposição de renda e de linhas de crédito para o pagamento dos salários de pequenas empresas visaram à provisão de liquidez emergencial. Há ainda os programas de recompra de títulos privados de crédito e de liberação de compulsórios, também mirando liquidez e alívio neste momento agudo da crise.

Mas há um futuro pela frente. E ele não parece nada róseo pois não há como ignorar que a renda que se perdeu nestes quase dois meses de isolamento social dificilmente será recuperada. Além disso, a manutenção do controle da pandemia só virá com uma volta gradual da atividade, respeitando protocolos que também imporão a recomposição da renda e das receitas de forma igualmente gradual e em patamares inferiores aos números observados pré-crise. Ou seja, o ano de 2020 (e possivelmente o de 2021) será marcado pela frustração de receita e, consequentemente, pelo aumento do risco e da inadimplência. Se crédito anda junto com PIB, inadimplência responde a desemprego e custo de crédito ao nível de risco. Na nossa última crise, em 2015, a elevação do risco veio acompanhada, como esperado, pela contração do crédito. Não deverá ser diferente nesta crise e precisamos de ações estruturadas, coordenadas e corretas para tentar atenuar esses efeitos sobre a economia.

O ponto de partida é lembrar que ações populistas e midiáticas, como as interferências diretas no funcionamento do mercado de crédito, não trazem solução. Ao contrário, o mercado de crédito no Brasil voltou a crescer e ganhou eficiência graças à reversão das ações atrapalhadas dos finados anos do governo Dilma Rousseff, quando bancos públicos atuaram artificialmente para forçar queda de juros e o BNDES financiou largamente quem não precisava a juros subsidiados. A consequência foi a atrofia do mercado e a transferência de uma enorme conta para o Tesouro Nacional. Ambos extremamente danosos para a economia. Por isso, há que se focar em ações estruturadas, como as que o Banco Central vem anunciando até aqui. Mas é necessário, acima de tudo, fugir das ações fáceis – e invariavelmente danosas – que rompem contratos e criam cunhas. Projetos de lei oportunistas ou as decisões judiciais desprovidas de fundamento encabeçam essa lista.

Não é assim que se mitigam os efeitos da crise sobre o mercado de crédito, mas sim com coordenação, com ações que permitam responder às emergências de curto prazo e construir soluções de médio e longo prazo que preservem os contratos, as regras vigentes e, portanto, a solvência de longo prazo. Do contrário ficará muito mais difícil a volta do crédito e a reconstrução das bases para a retomada do crescimento.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA


Ana Carla Abrão: Inconfidência

Não é justo o setor público aumentar gastos com pessoal enquanto o privado corta salários e demite

Embora para muitos passe quase desapercebido, hoje é feriado nacional. Dia que se celebra a Inconfidência Mineira e que marca a data em que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi executado. Mas estamos numa época em que feriados e dias de semana se confundem numa rotina em que horas, dias e semanas se arrastam num mesmo ritmo, sempre à espera do fim dessa pandemia, quando poderemos voltar às ruas e à normalidade.

A boa notícia é que, ao menos no Brasil e graças às medidas de contenção adotadas tempestivamente, a situação parece estar sob controle. Isso não minimiza a dor dos que perderam amigos e familiares nem tampouco alivia a pressão diária sobre os profissionais de saúde e os agentes públicos. A má notícia é que, apesar dos números controlados até aqui, nós não nos livraremos da pandemia tão cedo e ainda não estamos totalmente preparados para lidar com isso.

Embora seja imprescindível que se discutam e se planejem ações de flexibilização do isolamento, há que se entender que a transição para um novo normal precisa de bases que estão por serem construídas. Dentre elas, as medidas econômicas de médio e longo prazos, que vão além das medidas emergenciais ainda em fase de implantação, mas que podem ser estruturalmente comprometidas se não obedecermos alguns princípios. E eles passam, necessariamente pelas questões fiscais, nosso grande e maior gargalo muito antes da pandemia pousar por aqui.

Não completamente internalizada pela classe política, pelos gestores públicos, pelo setor privado e pela população, a verdade é que teremos de conviver com a pandemia ao longo dos próximos 12-18 meses. Isso significa, em linguagem política, que os pouco menos de três anos restantes dos mandatos de governadores e do presidente da República se desenham agora completamente distintos do que era previsto até dois meses atrás.

Em finanças públicas, essa distância entre o que era e o que será se traduz nos orçamentos públicos, que desde já perderam qualquer aderência com os orçamentos aprovados e, consequentemente, com os resultados e metas fiscais previamente definidos não só para 2020, mas para os próximos anos.

Linhas de despesa se inverteram, fontes de arrecadação sumiram e prioridades de política pública mudaram, adicionando complexidade aos esforços de ajuste fiscal e de retomada econômica que existiam até pouco tempo.

Em particular nos Estados, que são a linha de frente do combate à pandemia, os desafios fiscais – que já não eram pequenos – se tornaram um pesadelo que nos aguarda ali adiante. A queda no ICMS já se aproxima dos 20% nos Estados mais afetados e não vai se reverter ao longo dos próximos meses dada a elevação da inadimplência que se soma à fraqueza da atividade econômica. Nas despesas, os gastos de saúde – cuja vinculação constitucional estipula um piso de 12,5% da receita corrente líquida – já superam os 20% e não deverão ceder de forma significativa nos próximos meses. Logo, não há como não defender um socorro a Estados, que estão tendo suas contas implodidas e, ao contrário da União, têm (felizmente) severas limitações para se endividar.

Mas a premissa de salvamento tem de levar em conta dois princípios fundamentais: já havia um profundo desequilíbrio estrutural previamente à crise da covid-19 e ele se agravará caso as medidas não sejam temporárias e focalizadas no combate à pandemia. O segundo deles se refere à composição das despesas nos Estados e à dinâmica que canaliza para despesas de pessoal boa parte dos recursos livres que entram nos Tesouros locais.

Repisando os números: cerca de 70% das receitas dos Estados são consumidas por despesas de pessoal. Além disso, dada a estrutura de carreiras presente na totalidade desses entes, essas despesas crescem entre 5% e 7% ao ano, independentemente de reajustes salariais. Os motores desses aumentos são as promoções e progressões automáticas, além de incorporações de gratificações por tempo de serviço aos salários e a constante necessidade de novos concursos públicos para suprir a falta de mobilidade e os efeitos do fator T (em que a aceleração das carreiras leva todos ao topo muito rápido e desassiste o atendimento na ponta). Compensar as perdas de arrecadação dos Estados sem que haja como contrapartida a interrupção dessa dinâmica significa agravar a situação de desigualdade no Brasil e aprofundar os desequilíbrios estruturais da máquina pública. Enquanto o setor privado corta salários e demite, não é justo que o setor público continue aumentando seus gastos com pessoal e canalizando recursos para se retroalimentar.

Que este feriado atípico seja usado como uma oportunidade de resgate desses princípios por parte dos nossos parlamentares. Afinal, a inconfidência aqui não está no socorro e, sim, na falta de visão de futuro.

* ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN.


Ana Carla Abrão: Primeiro dia do resto das nossas vidas

Após os longos dias de recesso, o que se espera é a retomada das reformas

O ano legislativo começou ontem (mas de fato hoje). Após os longos dias de recesso, o que se espera é a retomada da agenda de reformas, numa ansiedade que se divide entre o ritmo e a ordem de prioridade que será dada às reformas que já estão no Congresso Nacional e às outras que o governo promete apresentar nos próximos dias.

As três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que chegaram ao Senado Federal no final do ano passado precisam ser apreciadas e urgentemente discutidas e votadas. Uma delas até atende pelo nome de “emergencial”, tamanha a necessidade que se tem de que seus dispositivos sejam discutidos e aprovados rapidamente. Afinal, será essa PEC a responsável por definir um outro padrão fiscal, exigindo mais responsabilidade e zelo com os gastos públicos no âmbito do governo federal, mas principalmente por Estados e municípios em casos de emergência fiscal – situação em que se encontra boa parte dos entes subnacionais brasileiros.

No mesmo pacote estão a PEC dos Fundos e a PEC do Pacto Federativo. A primeira traz alguma flexibilidade (e racionalidade) ao já conhecido excesso de vinculações dos recursos públicos. São tantos fundos com tantos recursos carimbados, que ao final sobra dinheiro em alguns potes enquanto falta em outros. Como resultado, tem-se um descolamento entre as necessidades da população e a disponibilidade de recursos que gera, ao final, um grande desperdício de recursos em detrimento do atendimento de necessidades básicas lá na ponta, onde as demandas da população estão.

Finalmente, a PEC do Pacto Federativo deverá iniciar sua tramitação ajustando expectativas. Ao longo de mais de uma década, revisar o Pacto Federativo era sinônimo de uma única coisa: distribuir mais recursos para Estados e municípios – obviamente sem nenhuma contrapartida. A PEC apresentada pelo governo parte de outro conceito – até porque, a distribuição de recursos já se deu, com a cessão onerosa garantindo um fôlego aos subnacionais no apagar das luzes de 2019 – e sem contrapartidas. Embora também acene com alguma descentralização de recursos (repartição das rendas do petróleo), a maior parte dos dispositivos dessa corajosa PEC, trata da maior independência – mas também de muito mais responsabilidade, por parte de Estados e municípios. Se aprovada conforme foi proposta, mesmo que não na sua totalidade, esse novo pacto federativo corrige boa parte das distorções e liberalidades que levaram ao colapso a grande maioria dos entes subnacionais brasileiros.

Mas há bem mais do que isso na fila do Congresso Nacional de 2020. Conforme promessa do governo, estão batendo à porta do Parlamento as propostas de Reforma Administrativa e de Reforma Tributária. A primeira finalmente coloca em pauta o debate fundamental da melhora dos serviços públicos e da eficiência da máquina. Antes tarde do que nunca! A segunda, agora mais tímida (e realista), deve focar na unificação dos impostos federais. Mas há também projetos de lei de extrema relevância em outras áreas, quicando ali na área e só esperando sua vez chegar: ainda no fiscal, o Plano Mansueto anda meio empacado e precisa ressuscitar pois as mazelas de Estados quebrados continuam aí.

Já se fala também em revisão do Regime de Recuperação Fiscal, mais um projeto de lei a atravessar, caso venha. No campo da política monetária e sistema financeiro, a independência do Banco Central parece um debate já maduro. Adicionalmente, a revisão da Lei de Recuperação de Empresas, a nova Lei de Resoluções Bancárias e a nova legislação cambial são avanços institucionais muito importantes que precisam andar. No campo da educação, há o novo Fundeb, que travou com uma proposta inicial inviável e que agora deverá ganhar novos contornos. Finalmente, e não menos importante, há o novo marco do saneamento, urgente para um país que não consegue prover o mais básico dos serviços à grande parte da sua população.

Uma agenda cheia, sem dúvida. Para um Congresso reformista, acreditamos. Como no filme que inspira o título desta coluna – do qual apenas alguns leitores mais velhos se lembrarão, findada a adolescência, quiçá estejamos vivendo hoje o primeiro dia da nossa transição para um pais institucionalmente mais adulto. Se é realidade ou excesso de otimismo desta colunista, somente o andar das propostas do governo e o avanço da agenda legislativa de 2020 poderão dizer.

* Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.


Ana Carla Abrão: Terra de Cora

O Goiás rico e próspero se perdeu com os empréstimos generosos e gastos crescentes

Quem vai a Goiás pela primeira vez ainda hoje se surpreende com a terra vermelha, o clima quente e seco e a luminosidade de um céu azul claro e um sol que não descansa. Além disso, logo percebe que muito além da pamonha, do pequi e das fazendas onde se cria gado, há ali uma economia diversificada, com uma indústria que se instalou em torno do agronegócio e juntos garantem um nível de riqueza que não se imaginaria possível duas ou três décadas atrás.

Esse é um Goiás rico, próspero, que cresceu acima da média nacional por mais de dez anos e cuja pujança é de causar inveja a vários Estados periféricos que, por estarem também longe dos grandes centros consumidores ou por terem menor potencial econômico, ficam à mercê dos repasses federais e a duras penas enfrentam as dificuldades de um país tão diverso e desigual como o Brasil.

Mas a partir de 2010, compensando um arrefecimento na taxa de crescimento da arrecadação própria, Goiás começou a receber empréstimos generosos dos bancos públicos, amparados por um governo federal cada vez mais camarada. E Goiás se perdeu, assim como tantos outros Estados. Limites foram ignorados e o que antes era receita extraordinária se transformou em despesa ordinária, obrigatória e crescente. Já em 2014 o desequilíbrio era grave, numa combinação de crise econômica com excessos nas isenções fiscais e gastos sempre crescentes.

Foi no apagar das luzes de 2014 que fui convidada para ser Secretaria de Fazenda de Goiás. Neófita em contas públicas, me fiz então uma única pergunta: Goiás atende os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal? Para meu alívio, internamente convencida de que aceitaria o convite, vi que sim. Ignorei os sinais no convite feito pelo então governador Marconi Perillo, que foi claro no seu objetivo de promover um forte ajuste fiscal no Estado, e desembarquei em Goiás cheia de planos.

Não foram necessárias nem 24 horas no cargo para entender que a realidade do Estado diferia em muito da normalidade dos relatórios de gestão fiscal exigidos pela LRF. O caixa do tesouro estadual mal dava para o pagamento da folha e dos serviços da dívida, num desafio diário de se buscar recursos para minimizar atrasos com fornecedores e repasses constitucionais. O descolamento entre caixa e contabilidade vinha validado por dois caminhos: por uma determinação do Tribunal de Contas do Estado de retirar os gastos com pensionistas e com o imposto de renda sobre a folha dos cálculos das despesas com pessoal; e por Leis Orçamentárias completamente desconectadas da realidade. O primeiro, ao subestimar os gastos com pessoal, evitava as sanções pelo descumprimento da LRF. O segundo validava receitas infladas que acomodavam despesas sem limites num jogo de faz de conta.

Ao longo de dois anos o ajuste permitiu a redução de custos de mais de R$ 6 bilhões, equivalentes a quase 30% de um orçamento de pouco mais de R$ 20 bilhões. Gastos com pessoal e custeio foram contidos, investiu-se no combate à sonegação e privatizou-se a companhia de distribuição de energia. Isso trouxe algum fôlego para novos investimentos, sacrificados pelo excesso de gastos correntes e uma acertada restrição a novos empréstimos a partir de 2015. Além disso, um programa de consolidação do ajuste foi apresentado por meio de uma PEC, com várias ações adicionais que deveriam ser adotadas nos próximos anos para garantir a perenidade do ajuste.

Mas nada disso foi suficiente para evitar o colapso fiscal de Goiás. A partir de 2017 as despesas de pessoal voltaram a crescer de forma descontrolada, os recursos da privatização da Celg se transformaram em asfalto que não resistirá a este período de chuvas e os fornecedores estão ao relento, apesar das promessas de que tudo se resolveria após as eleições. A PEC virou o instrumento que oficializou a maquiagem no cálculo das despesas com pessoal. Tanto se fez, que a verdade do caixa, de tão grave, dessa vez prevaleceu sobre os relatórios fiscais, mostrando que o faz de conta um dia acaba.

Como bem disse Cora Coralina, nossa melhor síntese: “Goiás é água e pão. Água para toda sede e pão para toda fome”. Mas para que o potencial e a riqueza de Goiás se distribuam por todos os goianos, o interesse público precisa estar no centro das decisões políticas. Sempre.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman


Ana Carla Abrão: Um Congresso contra o Brasil

Não precisamos de representantes que trabalhem pela bancarrota do Brasil

O Brasil hoje flerta com o caos. A relação dívida/PIB supera os 70%, sem perspectivas de reversão nos próximos anos caso não se aprofundem os cortes de gastos. Precisamos de um forte ajuste fiscal para finalmente equilibrar as contas. E não se trata aqui de cumprir ou não o teto de gastos, a regra de ouro ou a LRF e a Constituição. Trata-se de evitar o pior com a volta dos juros altos, a impossibilidade do crescimento, a manutenção do desemprego.

Mas essa perspectiva, cada vez mais provável, parece não sensibilizar um Congresso Nacional que aprofunda a crise, atuando de forma irresponsável e descolada da realidade.

Estamos tratando de dois lados da mesma moeda. Irresponsabilidade fiscal significa sacrificar a população, em particular os mais pobres. Isenções fiscais concedidas por pressão de empresas financiadoras de campanha representam falta de recursos para investimentos. A consequência é um setor público que investe menos de 2% do seu Orçamento, comprometendo nossa produtividade e garantindo que um dos nossos grandes gargalos para o crescimento se mantenha presente. Projetos de leis ou jabutis incluídos às pressas por pressões corporativistas e que garantam benefícios tributários, blindagens e privilégios a categorias ou a setores específicos, vedando cortes de gastos determinam, por outro lado, a piora adicional no atendimento público de saúde já precário e condenam nosso ensino público a manter a qualidade sofrível de hoje.

Ao proteger os recursos de alguns, nossos congressistas estão colaborando para que faltem recursos para todos. Ao garantir que alguns poucos mantenham privilégios, estão contribuindo para que a crise econômica se aprofunde, para que a confiança piore, para que a criminalidade aumente, para que a desigualdade social se perpetue. A irresponsabilidade fiscal de um Congresso que teima em não fazer os ajustes necessários condena o nosso País a não crescer e deixa à mercê do azar os mais de 12 milhões de brasileiros que lutam contra o desemprego.

A crise atual está em todos os níveis federativos. Na União, ela se reflete na rigidez dos gastos obrigatórios, que consomem quase todo o Orçamento e dificultam um ajuste mais profundo, colocando em risco conquistas recentes como a redução dos juros; nos Estados, é o colapso dos serviços públicos básicos, fruto de um comprometimento das receitas com despesas de pessoal que há muito deixou os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal para trás, comprimindo investimentos e agora também custeio; nos municípios, cada vez mais dependentes de transferências de Estados quebrados e de uma União depauperada, prefeitos tentam prover com poucos recursos próprios os muitos serviços que lhes caíram no colo com a Constituição de 88. Ou seja, a situação é grave e mereceria atuação direta do Congresso na direção de buscar soluções para a crise – e não de aprofundá-la ainda mais.

Se por um lado são grandes as dificuldades em aprovar medidas de ajuste, como a redução de subsídios injustificáveis e as restrições a gastos da Lei de Diretrizes Orçamentárias, há clara tendência em aprovar aumentos de gastos, ignorando a situação fiscal e seus impactos sobre a sociedade como um todo. Vide os projetos de criação de novos municípios, de aumentos dos tetos salariais, do marco regulatório para o transporte de cargas e de revisão das compensações por perdas por exportações, cujo principal objetivo é o de salvar governadores com a corda da LRF no pescoço.

Não precisamos de um Congresso assim, não precisamos de representantes que atentem contra 200 milhões de brasileiros e trabalhem pela bancarrota do Brasil. Suas decisões têm significado menos emprego e menos renda para a população, elas têm colaborado diretamente para que mais brasileiros morram nas filas dos hospitais, mais crianças estejam fora da creche ou em escolas que nada ensinam e mais jovens se percam para o crime. Decisões como as que estamos assistindo significam um País sem futuro, uma população sem perspectivas, uma sociedade sem esperança. É isso que senadores e deputados estão nos legando, esquecendo que foram eleitos para lutar por nós, e não contra nós.

Ana Carla Abrão é economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman