América Latina

Perdas e danos

Em dez anos, Lei de Drogas superlotou presídios e foi incapaz de reduzir as redes de tráfico

Há dez anos o Brasil aprovava um novo marco legal para o combate às drogas. A Lei 11.343/2006 nascia com a perspectiva de intensificar penas para o crime de tráfico e reduzir a criminalização dos usuários. Seu efeito, porém, mostrou-se desastroso: cadeias superlotadas, mais mulheres nas prisões e criminalização da população negra e pobre. Por outro lado, não há nenhum indicador de que as redes de tráfico tenham sido coibidas.

De 2005 até dezembro de 2014, segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária teve um salto vertiginoso de 111,4%, ultrapassando a marca de 620 mil presos. Isso colocou o Brasil na vergonhosa posição de quarto país com a maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia.

Em 2005, o porcentual de pessoas incriminadas por tráfico de drogas correspondia a 11% da população carcerária. Em 2014, segundo dados do Infopen, esse número alcançou 27%. Se considerarmos apenas as mulheres, o impacto foi ainda mais cruel: 64% das presas no Brasil respondiam por tráfico de drogas.

O grande responsável por essa desastrosa situação foi o aumento da pena mínima de três para cinco anos, mesmo para pequenos traficantes. Soma-se a isso a relutância dos juízes em aplicar a diminuição de pena para réus primários e a insistência no encarceramento, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido que a equiparação a crime hediondo não impede a aplicação de penas alternativas, como ocorre para outros crimes não violentos como o furto.

O resultado é uma distorção racista e classista, já enraizada na cultura brasileira, mas bastante escancarada no sistema prisional: embora não existam dados sociodemográficos específicos dos presos por tráfico de drogas, o perfil geral da população prisional brasileira é composto majoritariamente por negros (61,6%) e de baixa escolaridade (oito em cada dez estudaram, no máximo, até o ensino fundamental). O foco da atuação policial no combate à venda de drogas no varejo e ao transporte feito por "mulas" faz com que um contínuo fluxo de jovens desempregados sejam levados ao sistema prisional mesmo sem praticar qualquer ato violento, enquanto as grandes organizações têm seu complexo sistema de comércio e corrupção inalterado.

Política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis.

A lógica militar de combate às drogas faz com que 90% das prisões por tráfico sejam em flagrante e por pequenas quantidades. Esta pessoa provavelmente passará todo o processo no regime fechado de prisão por suposto "perigo à ordem pública" - pautado não na violência da pessoa, mas na ideia abstrata do "inimigo traficante" produzida pela mídia. A guerra às drogas é a grande responsável por manter em prisão provisória, ou seja, sem julgamento definitivo, 40% dos atuais presos do Brasil.

Em uma década, o Brasil acumulou conhecimento e dados suficientes para deixar claro que sua política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis e tornado cada vez mais insustentável o sistema prisional. Existe uma demanda crescente dentro e fora do país para a revisão da abordagem proibicionista e tratamento da questão dentro de seu devido lugar, que é a saúde pública.

Nesse sentido, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem em suas mãos uma oportunidade histórica. Ainda nesse semestre deve ser retomado o julgamento sobre o Recurso Extraordinário nº 635.659, da Defensoria Pública de São Paulo, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

Esperamos que os ministros do Supremo assumam para a si a responsabilidade de corrigir essa distorção, deixando de punir usuários e abrindo caminho para uma política de drogas menos violadora, menos encarceradora e menos seletiva.

Jessica Carvalho Morris e Henrique Apolinário, respectivamente diretora-executiva e assessor do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos.


Fonte: El País


Luiz Carlos Azedo: Adeus, presidenta!

O livro Adeus, senhor presidente, de Carlos Matus, um dos teóricos da administração pública mais estudados no Brasil, por causa do seu método de “planejamento estratégico situacional”, é um ensaio romanceado sobre o exercício do poder na América Latina. Ex-ministro de Salvador Allende, Matus não se limitou a denunciar e repudiar o golpe militar de Pinochet, ocorrido em 1973, que transformou o Chile num mar de sangue, procurou também entender o que aconteceu e buscar caminhos para que os erros cometidos pela esquerda chilena não se repetissem.

Não passa pela cabeça de ninguém comparar o impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, ao golpe fascista chileno, mesmo entre aqueles que acusam o presidente interino, Michel Temer, de golpista, mas o contexto justifica, ao menos para quem foi apeado do poder, conhecer ou revisitar a obra de Matus. Ele constrói um cenário fictício, que começa com a posse de um presidente que criou grandes expectativas e prometeu muitas mudanças e termina com suas reflexões, depois de afastado do poder, sobre o desapontamento dos eleitores e as razões pelas quais não cumpriu o que prometeu. Detalhe: seu sucessor também é malsucedido e desaponta o povo.

Matus trabalha com o cotidiano do governo, a perda de tempo com coisas banais, os erros estratégicos, as intrigas políticas e lutas intestinas, num palácio onde pululam sindicalistas, dirigentes partidários, empresários, tecnocratas, intelectuais, jornalistas, parentes e corruptos de todas as categorias. É muito semelhante à situação de Dilma, que pode até ter lido a obra de Matus, mas parece que não adiantou muito. São favas contadas a sua cassação, depois da votação da madrugada de ontem no Senado, quando se decidiu, por 59 votos a favor e 21 contrários, dar inicio ao julgamento final do seu impeachment.

O líder comunista Enrico Berlinguer, falecido em 1984, profundamente marcado pelo fracasso da experiência chilena, nela se inspirou para propor o famoso “compromisso histórico” entre os comunistas e democratas-cristãos na Itália, que se digladiavam desde o fim da II Guerra Mundial. À época, o líder democrata-cristão Aldo Moro, que viria a ser assassinado em 1978, depois de 55 dias de cativeiro, pelas Brigadas Vermelhas, uma organização terrorista de extrema-esquerda, sinalizava a possibilidade de concretização da aliança, com sua “abertura à esquerda”. Esta estratégia produziu bons resultados eleitorais para o PCI nas eleições de 1976, nas quais obteve 35,9% dos sufrágios, levando-o a apoiar o governo do democrata-cristão Giulio Andreotti. Mas a DCI estava em crise por causa do referendo do divórcio e o assassinato de Aldo Moro destruiu as boas perspectivas então desencadeadas para um governo de coalizão dos dois maiores partidos da Itália.

Foi uma grande oportunidade perdida por todos os partidos italianos, que prosseguiram numa trajetória meio suicida ao deixar que a corrupção contaminasse suas entranhas e levasse a Itália a uma sucessão de crises políticas, que acabou com a derrocada de todos, que praticamente desapareceram após a Operação Mãos Limpas, inclusive o poderoso PCI. Depois de uma sucessão de fusões, o PCI se tornou o Partido Democrático, hoje no poder. Esses parênteses faz sentido porque aqui no Brasil vivemos um fenômeno político semelhante, que está sendo desnudado pela Operação Lava-Jato, cujo impacto no sistema eleitoral e partidário pode ser muito maior do que imaginam os grandes caciques da política brasileira.

Não errar

O placar de ontem no Senado mostra que o impeachment é mesmo inexorável e que o presidente interino, Michel Temer, tem capacidade de articulação e força política para garantir a governabilidade. Há expectativa de que a cassação da presidente Dilma se dê em 25 de agosto, ironicamente, o Dia do Soldado. Vale destacar que a presidente afastada, no auge das manifestações de protesto contra seu governo, chegou a cogitar da decretação de “estado de defesa” (que lhe conferiria poderes especiais para suspender algumas garantias individuais asseguradas pela Constituição, a pretexto de restabelecer a ordem em situações de crise institucional), mas não obteve apoio dos comandantes militares, nem do então ministro da Defesa, Aldo Rebelo (PCdoB), que a demoveu dessa ideia. Esse fato é o melhor exemplo de que o Brasil atravessa uma crise política, econômica e ética sem precedentes, mas não vive uma crise institucional, graças ao comportamento profissional das Forças Armadas.

Mas voltemos ao impeachment. O presidente Michel Temer, apesar do grande apoio político e parlamentar, se defrontará com os mesmos problemas que levaram à breca o governo Dilma: recessão, desemprego, inflação, deficit fiscal, fisiologismo político e envolvimento dos partidos de sua base no escândalo da Petrobras. Seu estoque de problemas não pode aumentar, pelo contrário, precisa ser reduzido. Certamente, não cometerá os erros de Dilma Rousseff, mas está sujeito a outros e precisará evitá-los. Para encerrar, a ministra Cármem Lúcia foi eleita ontem para a Presidência do Supremo Tribunal Federal. Data vênia, quer ser chamada de presidente e não de presidenta.


Fonte: pps.org.br


Resgatar o Mercosul

Bloco perdeu o rumo no começo do século 21 com a ascensão do populismo

Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, fundadores originais do Mercosul, têm hoje uma chance preciosa de salvá-lo do atoleiro, revigorá-lo e conduzi-lo de volta à sua missão original – integrar os quatro países do Cone Sul, torná-los mais produtivos e inseri-los de forma competitiva, em conjunto, na economia global. Criado há 25 anos, o Mercosul perdeu o rumo no começo do século 21 com a ascensão do populismo em seus dois integrantes de maior peso. A longa série de erros e desmandos conduziu à crise atual, com o governo venezuelano tentando exercer uma presidência contestada pela maioria dos pares. Há razões muito sólidas para a contestação e até para a suspensão da Venezuela, por evidentes violações da cláusula democrática. Mas a solução formal desse problema será insuficiente, se o Mercosul continuar sujeito aos entraves criados pela associação desastrosa do petismo com o kirchnerismo.

Os novos governos do Brasil e da Argentina têm mostrado interesse em objetivos muito mais ambiciosos para o bloco. A tarefa mais urgente seria concluir a negociação de um acordo de cooperação e de livre-comércio com a União Europeia, iniciada nos anos 90 e emperrada há muito tempo.

Depois de tanto tempo, e com novos desafios internos e externos, o bloco europeu pode ter mudado sua lista de prioridades, mas para os sul-americanos o esforço é mais importante do que nunca. Fundado em 1991 e com sua estrutura básica definida em 1994, o Mercosul só concluiu cinco acordos extrarregionais, quase todos com mercados de limitada relevância para o bloco.

Foram fechados acordos de livre-comércio com Israel, Palestina e Egito. O primeiro está vigente, os outros dependem de ratificação. Foram negociados acordos de preferências tarifárias com Índia (vigente) e com a União Aduaneira da África Austral (Sacu). Além disso, foram estabelecidos diálogos econômico-comerciais com Austrália e Nova Zelândia, Canadá, China, Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) e Japão. Foram também firmados entendimentos de complementação econômica com países sul-americanos e com o México. Enquanto isso, multiplicaram-se em todo o mundo os acordos bilaterais e inter-regionais, com o Mercosul sempre distante.

A maior parte das negociações do bloco foi subordinada a políticas de integração Sul-Sul, com pouquíssimo pragmatismo. Os maiores parceiros ditos emergentes – como Rússia, China e África do Sul – sempre estiveram mais empenhados em ampliar o comércio com os mercados mais desenvolvidos.

A China tornou-se o maior mercado para exportações brasileiras, mas numa relação semicolonial. Mais de 80% das vendas do Brasil para a China são de matérias-primas. O resto é formado principalmente por semimanufaturados e por uma parcela minúscula de manufaturados.

A Rússia, durante anos, concedeu cotas para carnes provenientes da Europa e dos Estados Unidos, negando seguidamente esse benefício ao Brasil. Mesmo com vendas extracotas, os brasileiros têm sido grandes fornecedores do mercado russo, mas só conseguem esse resultado porque a pecuária nacional é competitiva. O governo petista, guiado por uma notória incompetência na diplomacia comercial, sempre tratou russos e chineses como parceiros estratégicos, mas sempre sem reciprocidade.

As economias mais dinâmicas da América Latina têm acordos de livre-comércio com os Estados Unidos. O Mercosul continua fora desse clube, porque os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner torpedearam em 2003 e 2004 a negociação da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). México e Canadá já formavam uma associação comercial com seu maior vizinho. Os demais entraram no jogo por meio de negociações separadas, com os governos do Brasil e da Argentina recusando-se, tolamente, a intervir no processo.

Não se recupera o tempo perdido. Mas pode-se evitar novo desperdício de oportunidades. Esta é uma excelente oportunidade para isso.


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Os Jogos Olímpicos do Rio serão lembrados como os Jogos da exclusão?

As instituições democráticas poderiam ter protegido e amparado brasileiros na preparação para os Jogos. Mas isso não aconteceu

Em agosto, a cidade do Rio de Janeiro vai sediar pela primeira vez os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em meio a um dos momentos políticos mais turbulentos que o país já viveu. A crise política e social no Brasil tem mostrado que muitas de nossas instituições democráticas ainda carecem de consolidação. Estas são as mesmas instituições que poderiam ter protegido e amparado brasileiros na preparação para os Jogos, assegurando um legado positivo. Isso não aconteceu.

No início deste ano, conheci e entrevistei lideranças comunitárias e moradores da Vila Autódromo, bairro do Rio localizado ao lado do Parque Olímpico. Acompanhada da Justiça Global, reconhecida organização de direitos humanos, presenciamos um protesto de moradores, com apoio de pessoas e organizações que lutam em favor da comunidade. O protesto era contra o fato de que moradores cujas casas estavam dentro da construção do Parque Olímpico estarem sendo impedidos pelas autoridades locais de entrar e sair livremente de suas casas.

Mulheres líderes, corajosas e fortes, deram seus testemunhos sobre as violações dos direitos humanos a que estavam sendo constantemente submetidas, devido às obras para sediar os Jogos. Famílias foram despejadas e removidas sem consulta ou acesso à informação. Foram deixadas sem voz para denunciar os problemas de sua comunidade, que costumava ser uma área tranquila e segura, cercada de natureza. Para algumas dessas famílias foram prometidas novas casas, e as chaves deveriam ter sido entregues na semana passada. Durante anos de construção para receber os Jogos, havia relatos frequentes de cortes de água e luz bem como de violência perpetrada pelas forças de segurança. A moradora Heloisa Helena, conhecida como Luizinha de Nanã, disse que por mais de dois anos teve o acesso restrito a sua casa e centro religioso. A casa mais tarde foi demolida.

Como afirmamos em outra ocasião, esses mesmos moradores já haviam denunciado que a prefeitura do Rio teria negociado com empresas privadas a construção de prédios a classe média no bairro onde vivem, causando com isso a remoção de ao menos mil famílias pobres. Segundo os moradores, as obras planejadas excluíam os pobres do que a prefeitura e empresas privadas têm chamado de “progresso”.

Além disso, muitas famílias perderam suas casas para a especulação imobiliária ou para reformas e construções classificadas pelo governo local como necessárias ao desenvolvimento da cidade e recebimento dos Jogos. Os atingidos pelas "remoções desnecessárias e injustas" nunca foram adequadamente consultados, tampouco participaram de tomadas de decisão, como afirmam Raquel Rolnik, ex-Relatora da ONU por Moradia Digna,RioonWatch e Lena Azevedo e Luiz Baltar em seu estudo sobre as remoções no Rio. Sem dúvida, os atingidos não estarão no público assistindo os Jogos; as construções transformaram suas vidas para sempre, não apenas no período das Olimpíadas. Acrescente-se a este legado sombrio, os trabalhadores que morreram durante as obras de construção para as Olimpíadas e para a Copa do Mundo.

Aqueles que têm resistido bravamente em protestos nas ruas em oposição aos abusos relacionados aos Jogos têm muitas vezes sofrido com violência policial e das forças de segurança. Infelizmente isso provavelmente ocorrerá novamente com grupos e também membros do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadasque estão organizando mais uma vez importantes debates e protestos, dias antes dos Jogos começarem, para mostrar o quanto tais jogos excluíram pessoas e direitos. Neste contexto cabe lembrar que a lei de antiterrorismo, recentemente aprovada, já tem sido usada infelizmente para deter manifestantes e continuará a colocar em riscos direitos humanos muito tempo depois de terem terminado as Olimpíadas.

A promessa de proteger o meio ambiente durante a preparação para os Jogos também não foi cumprida. Muitas árvores foram derrubadas, piorando a já comprometida qualidade do ar, afetando diretamente as comunidades do entorno. Exemplos tristes e perturbadores do descaso com o meio ambiente sãoa Baía de Guanabara contaminada e rios poluídos, os quais o governo havia prometido limpar. E chama a atenção a construção controversa de um campo de golfe em área de proteção ambiental, o que revela planejamento e políticas equivocadas, para dizer o mínimo.

Os Jogos receberam altos investimentos públicos mas que prioritariamente favorecem interesses privados. Para muitos brasileiros, isto maculou o que poderia ter sido um momento de orgulho para o país. É lamentável que uma vez mais a oportunidade de deixar um legado duradouro e positivo tenha sido totalmente perdida. Recentemente até o prefeito do Rio assumiu ser esta uma oportunidade perdida, embora pouco tenha feito para impedir que isso acontecesse. Ainda está por saber se haverá algum legado positivo decorrente dos dois grandes eventos esportivos que o Brasil sediou a Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016. No momento, identificamos algumas instalações esportivas novinhas em folha e algumas melhorias de transporte, resta saber porém se esses novos estádios e outras construções terão de utilidade pública após os eventos.

Tanto o governo como as empresas deveriam ter feito muito mais e tragédias não teriam ocorrido. Más condições de trabalho e mortes teriam sido evitadas se os direitos humanos e os princípios e as boas leis trabalhistas que o país tem tivessem sido respeitados. O mesmo pode ser dito sobre as remoções e outras violações já mencionadas. Infelizmente, porém, parece que os Jogos Olímpicos Rio 2016 serão lembrados como os "Jogos da exclusão".


Por: JÚLIA MELLO NEIVA, pesquisadora sênior e representante para o Brasil, Portugal e países Africanos de língua portuguesa no Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos.

Fonte: brasil.elpais.com


José Ruy Lozano: O que seria da literatura numa “escola sem partido”?

Dom Casmurro, de Machado de Assis, continuaria a ser um romance de adultério

Aconteceu em meados de 1990. O aluno, de família religiosa, dirige-se ao professor e afirma, em alto e bom som: “Não vou ler esse livro aí, é obra de Satanás”. A obra em questão era Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, o romântico brasileiro discípulo de Byron e Musset, que temperou os enredos de seus contos com cemitérios, crânios humanos e orgias à meia-noite.

À época, não havia sombra do debate sobre a “escola sem partido”, frequente no ambiente de extrema polarização política que hoje toma conta do Brasil. Mas o fato – verídico – revela a impossibilidade de trabalhar com a literatura numa escola pretensamente neutralizada de qualquer questionamento histórico, político, social ou comportamental.

Para os defensores da ideia de uma “escola sem partido”, que ameaça a educação nacional, Dom Casmurro, obra-prima de Machado de Assis, continuaria a ser um romance de adultério. E Capitu, a Madame Bovary dos trópicos, a Anna Kariênina que pudemos ter. A interpretação hoje consagrada do narrador ambíguo e não confiável, representante da elite patriarcal brasileira, que suprime sua insegurança impondo cruel desterro à esposa, seria considerada esquerdismo militante, influência feminazitalvez. Para eles Capitu é culpada, não há dúvida.

Seria possível ignorar que romances como Vidas secas, de Graciliano Ramos, e Capitães da areia, de Jorge Amado, não sejam obras engajadas no debate político e social brasileiro do período – anos 30 do século passado – e ainda atuais nos dias que correm? Para os patronos da “escola sem partido”, todo o teor de denúncia social de obras como essas deveria ser ignorado, bem como qualquer diálogo com a realidade do jovem que ainda se depara com carências similares e injustiças idênticas.

Num exercício de reductio ad absurdum, imaginemos o professor de literatura brasileira apresentando aos alunos do Ensino Médio o poema narrativo O navio negreiro, de Castro Alves. Se o poeta toma partido dos escravos e critica a economia que engendrou o trabalho servil, logo teríamos os “apartidários” defendendo a discussão do outro lado: “Seria preciso ouvir a voz dos senhores, senão estaremos tomando partido em nossas aulas! ”

Podemos recuar mais e mais na discussão e perguntar o que foram os primeiros escritores do Brasil independente senão ideólogos de um projeto político de constituição da nacionalidade, para além de seus inquestionáveis méritos artísticos. Os índios de Gonçalves Dias e José de Alencar existiriam fora do processo de construção social a que se devotaram os dois autores? Certamente não.

Até nas mais remotas obras da literatura portuguesa encontramos dificuldades semelhantes. Quando Gil Vicente apresenta em suas peças de teatro o padre lascivo e o comerciante ladrão, o professor se verá na contingência de fazer o contraponto. Para amenizar a crítica religiosa, ler, talvez, trechos da vida dos santos? Tecer elogios às virtudes do livre-mercado a fim de dirimir a acusação ao capitalismo predatório?

Sombrios os tempos em que somos obrigados a reafirmar a literatura não só como experiência de linguagem e veículo de sensibilidade mas também de conhecimento, de tomada de consciência do mundo. Os abnegados sem partido recitariam os versos de Ferreira Gullar sem perceber a acidez irônica que o poeta militante lhes dá: “O preço do feijão/não cabe no poema. O preço/do arroz/não cabe no poema (...)/Como não cabe no poema/o operário/que esmerila seu dia de aço/e carvão/nas oficinas escuras/(...) Só cabe no poema/o homem sem estômago/a mulher de nuvens/a fruta sem preço”. Ou, então, caberia ao professor explicar a política econômica da atual gestão e das que a antecederam. Sem tomar partido, é óbvio.


José Ruy Lozano é professor do Instituto Sidarta e autor de livros didáticos.

Fonte: El País


Luiz Ruffato: A Igreja Universal avança

Se julgarmos pelas pesquisas para prefeito em São Paulo e no Rio, o quadro é desolador.

No próximo dia 2 de outubro, iremos às urnas para eleger prefeitos e vereadores. Deveria ser um momento em que efetivamente desempenhamos um papel fundamental na transformação da sociedade, um momento único de exercício de cidadania. Mas a pergunta que fica é: estamos nos preparando para isso? O que temos feito para melhorar o espaço em que vivemos? A mudança coletiva processa-se por meio de ações individuais: é como nos relacionamos com o outro e com o entorno que ressignificamos a existência. É a ação no presente que qualifica o futuro – nosso, dos outros, do planeta.

Se julgarmos pelas pesquisas de intenção de voto para prefeito nas duas maiores cidades do Brasil – São Paulo e Rio de Janeiro – o quadro é desolador. Na rica São Paulo, em resposta espontânea, 54% dos eleitores afirmam não saber em quem votar e 26% declaram que vão votar nulo ou em branco segundo pesquisa do Ibope. Quando apresentados aos nomes dos pré-candidatos, o deputado federal Celso Russomanno aparece em primeiro lugar com 26%, bastante distante do segundo colocado, a senadora Marta Suplicy (PMDB), com 10%. Interessante perceber ainda que o pastor Marco Feliciano (PSC), ligado à Assembleia de Deus, e que já deu claras demonstrações de homofobia e intolerância, embora surja com apenas 4% das intenções de votos, tem o maior número de seguidores no Facebook: 3,77 milhões, quase cinco vezes mais que o segundo colocado, Celso Russomanno, com 670.000.

Russomanno é réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por prática de peculato (desvio de dinheiro público). Ele já foi condenado em primeira instância a dois anos e dois meses de prisão em regime aberto, mas como possui foro privilegiado a ação foi transferida para o STF. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu urgência no julgamento de Russomanno, para que, caso seja confirmada a sentença, ele fique impedido de disputar as eleições, de acordo com a Lei da Ficha Limpa. Russomanno é filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB), partido que tem vínculos com Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus.

Pertence ao mesmo PRB e à mesma Igreja Universal o sobrinho de Edir Macedo, ex-ministro da Pesca e da Aquicultura no governo Dilma Rousseff, senador Marcelo Crivella, que lidera as intenções de voto para prefeito da cidade dita mais liberal do Brasil, o Rio de Janeiro. Contra o aborto e defensor do criacionismo, o pastor e cantor gospel Marcelo Crivella tem 35% das preferências – mais que todos os outros candidatos juntos, segundo pesquisa do Instituto Gerp. Além disso, 26% dos entrevistados afirmam que não votarão em ninguém e 15% permanecem indecisos.

Sozinho, o PRB elegeu, no último pleito, uma bancada composta por sete deputados federais e um senador (Marcelo Crivella), além de ter conseguido emplacar o presidente do partido, Marcos Pereira, como titular do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo do presidente interino, Michel Temer. Pereira foi diretor administrativo e financeiro da TV Record do Rio de Janeiro entre 1995 e 1999, e vice-presidente da Rede Record de Televisão, entre 2003 e 2009. Fundada em 1977, a Igreja Universal conta hoje com cerca de 12.000 pastores, sete mil templos e quase sete milhões de seguidores no Brasil, e outros quase dois milhões de fiéis espalhados por mais de uma centena de países, segundo estimativas da própria entidade. Sua receita é estimada em cerca de R$ 1,4 bilhão de reais por ano – mas não há qualquer controle sobre esse valor, já que por lei as instituições religiosas estão isentas de impostos.

Além dos fiéis, a Igreja Universal controla hoje a Rede Record, que cobre 93% do território nacional e está presente em 150 países, a TV Universal, com mais de 20 retransmissoras, e a Rede Aleluia, que possui quase oitenta emissoras de rádio AM e FM, presente em 75% do território nacional. Faz parte ainda do grupo o portal universal.org., o jornal Folha Universal, as revistas Plenitude, Obreiro de Fé e Mão Amiga, a editora Unipro, que registra milhões de exemplares vendidos de livros de Edir Macedo e de outros pastores, e a gravadora Line Records, especializada em música religiosa.


Fonte: El País


Pacificar para quem?

Nós, Tupinambá, nos dirigimos ao Governo brasileiro e pedimos: ou devolvam as nossas terras ou mandem nos matar e coloquem o branco em nosso lugar. Mas tomem uma decisão já. Nem os adultos, nem as crianças podem viver neste inferno.

No dia 5 de abril, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Superior Tribunal de Justiça, proferiu uma decisão suspendendo a demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Dada a gravidade desse acontecimento, nós, os Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, uma das comunidades que vive nesse território, apresentamos esta denúncia e solicitamos ao Governo brasileiro e aos organismos internacionais que tomem as medidas necessárias para impedir que nossos direitos continuem sendo violados. Apenas nos últimos anos, mais de 30 Tupinambá foram mortos. Há violência maior que vermos nossos parentes assassinados, ninguém responsabilizado, e ainda nos negarem o direito a nossa terra?

Em resposta à decisão do ministro, apresentamos um relato histórico sobre o que nosso povo vem enfrentado nestes 500 anos. Ao contrário do que disseram os fazendeiros e empresários na ação acolhida pelo ministro, apesar de toda a violência, nunca saímos de nossa terra. Em 1500, quando aqui os europeus chegaram, logo declararam que os Tupinambá eram inimigos da Coroa portuguesa e tinham que ser exterminados e expulsos de seus territórios.

Na Capitania de São Jorge dos Ilhéus, fomos escravizados nos engenhos de cana-de-açúcar, reagimos e sofremos a retaliação da Coroa portuguesa, no massacre comandado por Mem de Sá, em 1559. Então, nosso povo teve que lutar contra os franceses, na Confederação dos Tamoios. Depois, tivemos que lutar contra os holandeses, para expulsá-los da Bahia. E sempre nos eram negados os nossos direitos.

Em 1680, criaram o aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, para aprisionar os Tupinambá. No aldeamento, eles se esforçaram para tirar a nossa língua, a nossa crença, a nossa religião - para nos tirar tudo. Mas os Tupinambá sempre tiveram a rebeldia de lutar para não deixar que os outros ocupassem completamente o nosso território. Quando o Governo percebeu que, apesar do aldeamento, continuávamos crescendo, decidiu que ele teria que ser extinto e elevado à situação de vila, o que aconteceu em 1758. Nesse período, os Tupinambá passaram a ter alguns direitos, como o de eleger vereadores para a Câmara de Olivença, que chegou a ser presidida por um indígena, Nonato do Amaral. Porém, os brancos mandaram destituí-lo. Os índios resistiram e mataram os homens enviados para assumir a Câmara.

Pinheiro Costa [juiz federal] diz que precisamos entrar em acordo e ceder parte de nossa terra. Ele diz que nossa terra tem que ser demarcada em "ilhas", deixando a praia do lado de fora. Como é que os Tupinambá da praia ficarão sem praia? O juiz afirma que é preciso "pacificar" a região.

Nós perguntamos: pacificar para quem? Porque quem está morrendo somos nós, quem está sendo enterrado ao longo da história somos nós.

Assim, nos dirigimos ao governo brasileiro, em suas diversas instâncias, e pedimos: ou devolvam as nossas terras ou, simplesmente, parem de dizer que nós não somos Tupinambá: mandem nos matar, em menos de um ano, e coloquem o branco em nosso lugar. Mas tomem uma decisão já. Nem os adultos, nem as crianças podem viver neste inferno. Estamos em nossa terra, trabalhando, e, quando menos esperamos, a polícia chega para nos expulsar. Nos últimos anos, a polícia tentou nos matar dezenas de vezes. Vejam a gravidade do que dizemos: nós não estamos nos referindo a ações de fazendeiros ou empresários; é o governo brasileiro, através de sua polícia, que vem tentando acabar com a comunidade a qualquer preço. Como vamos enfrentar uma luta desta? Qual é a chance que nós temos de vencer?

Vocês não têm para onde nos levar, porque nós nunca fomos de outro lugar. Os fazendeiros e os empresários dizem que nós não somos os ocupantes tradicionais desta terra. Não são eles que têm que dizer, somos nós, que habitamos aqui, são os velhos que ainda vivem na terra em têm histórias, muitas histórias, com o branco sempre infernizando a vida deles. O ministro que mandou suspender a demarcação da nossa terra nunca veio aqui, nós não sabemos quem ele é. O que sabemos é que o Judiciário brasileiro tem sempre uma desculpa para manter tudo na mão dos invasores. Sempre. Que vocês fiquem sabendo: ninguém nunca governou e nem vai governar os Tupinambá da Serra do Padeiro.

Queremos que este governo decida logo. E pedimos também que a comunidade internacional e a Igreja Católica se posicionem. Ninguém pode viver mil anos nestas circunstâncias, nas circunstâncias em que já vivemos mais de 500 anos.

Rosivaldo Ferreira da Silva é o cacique Babau, que representa a organização política dos Tupinambá da Serra do Padeiro (BA) e Rosemiro Ferreira da Silva é pajé, que representa a organização religiosa dos Tupinambá da Serra do Padeiro.


Rosivaldo Ferreira da Silva é o cacique Babau, que representa a organização política dos Tupinambá da Serra do Padeiro (BA) e Rosemiro Ferreira da Silva é pajé, que representa a organização religiosa dos Tupinambá da Serra do Padeiro.

ENTENDA O PROBLEMA

O povo Tupinambá aguarda desde 2004 a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Localizada no sul da Bahia, Brasil, ela tem cerca de 47 mil hectares e é habitada por aproximadamente cinco mil índios. No último 5 de abril, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu medida liminar determinando a suspensão do processo de demarcação, acatando mandado de segurança impetrado em 2013 pela Associação dos Pequenos Agricultores, Empresários e Residentes na Pretensa Área Atingida pela Demarcação de Terra Indígena de Ilhéus, Una e Buerarema. A demora na demarcação tem agravado ainda mais a situação de conflito da região, com a morte de indígenas, como acontece em outras áreas do país, como Mato Grosso do Sul.

Fonte: El País


BRICS ainda é prioridade estratégica para o Brasil

Serra faria bem em enviar um sinal inequívoco de que país está disposto a fortalecer a cooperação.

Há quase dez anos, em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva era um dos palestrantes mais esperados no Fórum Econômico Mundial de Davos. Um enorme fluxo de investimentos transbordava um dos mercados emergentes mais empolgantes do mundo, e o chanceler Celso Amorim — que mais tarde seria considerado “o melhor ministro das relações exteriores do mundo” pela revista norte-americana Foreign Policy — estava começando a expandir a presença econômica e diplomática do Brasil ao redor do mundo.

Era a primeira vez que um país da América do Sul estabelecia uma rede tão ampla de embaixadas, a ponto de rivalizar com as de grandes potências. Um ano mais cedo, Amorim começara a se encontrar regularmente com seus pares na Rússia, Índia e China para discutir como os países BRIC poderiam fortalecer seus laços de cooperação e articular posições para lidar com desafios globais de forma conjunta. O grupo BRICS (que desde 2010 passou a incluir a África do Sul) se tornou rapidamente uma das inovações mais importantes da política mundial desde a virada do século, e foi capaz de chamar a atenção de potências tradicionais para a necessidade de adaptar estruturas globais a novas realidades.

De volta a 2016, o desempenho da economia brasileira é um dos piores do mundo, o país é comandado por um Governo interino envolto em escândalos e abalado por protestos, medidas de austeridade e uma espantosa investigação de esquemas de corrupção que ameaça as carreiras de grande parte da elite política do Brasil. Observadores internacionais consideram os BRICS como algo do passado, e alguns analistas brasileiros acreditam que o grupo já não deve ser prioridade para a política externa brasileira.

Eles não poderiam estar mais errados.

A sugestão de negligenciar o BRICS não leva em consideração as amplas vantagens estratégicas que a participação no grupo traz ao Brasil. Não tratá-lo como uma prioridade (por exemplo, se esquivando de ir à Cúpula anual) seria um erro cabal. Há três razões pelas quais o grupo é essencial para os interesses estratégicos do Brasil.

A primeira e mais importante é que a adesão aos BRICS providencia ao Brasil acesso direto e institucionalizado às lideranças políticas em Nova Déli e Pequim — um privilégio que o país não necessariamente teria de forma automática a cada ano. Apesar da desaceleração do crescimento econômico, espera-se que a China cresça em torno (ou até mais) de 6% em 2016 e 2017. O desempenho da Índia tem sido ainda melhor e espera-se que o país crescerá mais rápido do que a China. O FMI prevê que a China e a Índia contribuirão com mais de 40% da expansão da economia global até 2020 – em comparação, os Estados Unidoscontribuirão com apenas 10%. Atualmente, já se contabiliza mais riqueza privada na Ásia do que na Europa, e espera-se que a China, independentemente da atual desaceleração, supere os Estados Unidos como a maior economia do mundo.

O Brasil deve fazer muito mais para se adaptar a essa nova realidade, e não há dúvidas de que o futuro do país dependerá em grande parte da Ásia. O grupo BRICS importa neste contexto porque representa muito mais do que cúpulas presidenciais anuais. Na realidade, o grupo inclui mais de 15 reuniões a nível ministerial por ano, que auxiliam na promoção de cooperação intra-BRICS em áreas tão diversas como agricultura, educação, economia, ciência e tecnologia — sem mencionar o Novo Banco de Desenvolvimento, criado no âmbito do BRICS.

Como a influência crescente da China na Venezuela afeta os interesses nacionais brasileiros? Como a região como um todo deveria responder ao papel da China? Nenhuma dessas questões tem sido abordada a sério.

Em segundo lugar, a próxima reunião de Cúpula do BRICS na Índia em outubro é uma chance única para o presidente interino Michel Temer apresentar como ele está tentando superar as atuais adversidades do Brasil. Com a reputação do país em frangalhos, investidores asiáticos precisam ser reassegurados de que a investigação sobre corrupção em andamento é um passo na direção certa, que em última instância levará o Brasil a ser um país mais amigável para investidores. Temer, portanto, deveria ser acompanhado dos principais líderes da sua equipe econômica, os quais deveriam visitar investidores em vários centros financeiros asiáticos após o encontro da cúpula.

Finalmente, a adesão do Brasil ao grupo BRICS, junto com seu status de membro fundador no Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, são sinais importantes de que a presença global estratégica do país estabelecida na primeira década do século 21 é permanente e não será afetada substancialmente pela crise atual. As instituições citadas acima são símbolos de um maior deslocamento em direção à Ásia, que impactará o Brasil mais do que muitos estão cientes.

Enquanto a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil em 2009, a elite brasileira na política, nos negócios, na mídia e na academia estão ainda lamentavelmente ignorantes em relação à China e à Ásia como um todo. Pouquíssimos diplomatas brasileiros falam chinês e jovens estudantes nas melhores universidades brasileiras ainda preferem passar seus semestres de intercâmbio em Barcelona ou Paris em vez de Pequim ou Xangai. Não há um único programa de dupla diplomação entre universidades brasileiras chinesas e, no lugar de enviar correspondentes para a China, muitos jornais brasileiros compram conteúdo relacionado à China de jornais estrangeiros.

Isso mostra que o Brasil está entre os grandes países menos preparados para o surgimento de uma ordem mundial centrada na Ásia. Considerando a crescente influência da China na América do Sul, esta falta de preparo cria sérios riscos estratégicos. Como a influência crescente da China na Venezuela afeta os interesses nacionais brasileiros? Como a região como um todo deveria responder ao papel da China? Nenhuma dessas questões tem sido abordada a sério. O fato de que alguns pensadores (particularmente entre a esquerda da América Latina) ainda veem o crescimento da influência chinesa na região como positiva simplesmente porque Pequim é tido como adversário de Washington mostra quão incipiente é o debate na região — como o exemplo africano mostra, as coisas são bem mais complexas do que isso.

Independentemente da orientação ideológica de seu Governo, qualquer país no mundo hoje deve construir o conhecimento necessário para se envolver significativamente com a Ásia (e especialmente a China), que será em breve o centro econômico do mundo. Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a sorte de ser parte de um fórum institucionalizado que facilita esse processo.

É pouco provável que o Brasil se afastará do grupo de maneira abrupta. O chanceler sabe da importância do BRICS. No entanto, considerando que há algumas dúvidas em Pequim e Déli em relação ao compromisso do novo Governo com o grupo, José Serra faria bem em enviar um sinal inequívoco de que o Brasil está disposto a não só manter, mas a fortalecer a cooperação intra-BRICS.


Oliver Stuenkel é Professor Adjunto de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo

Fonte: El País