Amazônia

O Globo: Projeto de Flávio Bolsonaro quer acabar com reserva legal em propriedades rurais

Texto revogaria obrigação de preservar 80% do ecossistema nos imóveis da Amazônia

Por Amanda Almeida, Daniel Gullino e Natália Portinari

BRASÍLIA — O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) apresentou projeto de lei que retira do Código Florestal o capítulo que trata da reserva legal obrigatória em propriedades rurais. A título de acabar com o que chama de "entrave" e "expandir a produção agropecuária, gerar empregos e contribuir para o crescimento do país", o texto suprime a obrigatoriedade de ruralistas preservarem parte da vegetação nativa de suas áreas.

O projeto, assinado também pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), revoga o quarto capítulo do Código Florestal, chamado de "Da área de reserva legal". Nesse trecho, está previsto que "todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente". Hoje, propriedades rurais na Amazônia Legal têm de reserva legal de 80%; no Cerrado, 35%; e em campos gerais e outras regiões do país, 20%. Caso o texto de Bolsonaro e Bittar seja aprovado, esses percentuais de preservação obrigatórios serão extintos. O capítulo ainda trata de outros casos específicos.

Na justificativa, os senadores alegam que "o país é um dos que mais preserva sua vegetação no mundo". "Não há pertinência no clamor ecológico fabricado artificialmente por europeus, norte-americanos e canadenses e imposto ao país e a seus produtores rurais, chegando a determinar, segundo interesses políticos e comerciais estrangeiros, o rumo de nossa produção, desenvolvimento e legislação ambiental."
"A despeito dessa realidade cristalina, burocratas ecológicos continuam a propagar desinformações que permitem a desavisados difamar, caluniar e cercear àqueles que mais preservam a vegetação nativa: os produtores agropecuários. ONGs e organismos internacionais deveriam nos premiar e render homenagens pelo feito", alegam Bolsonaro e Bittar, na justificativo do projeto.

Os dois senadores dizem que estudos e prospecções revelam que a Amazônia "possuiu em valores de recursos naturais o montante de 23 trilhões de dólares a ser explorado, sendo 15 trilhões em recursos minerais metálicos, não metálicos e energéticos e oito trilhões na superfície, com a biodiversidade". Por isso, para eles, "é urgente a conciliação profunda e permanente entre proteção do meio ambiente, crescimento econômico e geração de oportunidades para os brasileiros".

Ambos encontraram-se esta semana com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. De acordo com Bittar, também se discutiu na reunião a ida de Salles para o Acre, prevista para os dias 23 e 24.

'Grande equívoco'
A pesquisadora Malu Ribeiro, da Fundação SOS Mata Atlântica, critica o projeto.

— Infelizmente, é mais um grande equívoco. E essa foi, durante a votação do novo Código Florestal, uma das maiores pressões da bancada ruralista e do chamado Centrão, durante aquela votação — diz.

O novo Código Florestal foi sancionado em 2012, substituindo uma versão anterior de 1965. Ele regulamenta a exploração de terras e estabelece onde a vegetação nativa deve ser mantida. O texto dividiu ambientalistas, que apontaram retrocessos em relação à legislação anterior, e ruralistas, que defendem a lei. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve um dos trechos mais polêmicos: a anistia a produtores rurais que desmataram ilegalmente antes de julho de 2008. A Corte também manteve o artigo que autoriza a redução de reserva legal de 80% para 50% em determinadas situações.

— A Reserva Legal hoje tem uma estratégica finalidade de banco genético, de estoque das chamadas madeiras de lei, estoque da biodiversidade. É um grande equívoco essa guerra declarada de um setor conservador do ruralismo brasileiro contra a Reserva Legal. É um absurdo para o país. Só as áreas de preservação permanente, que já foram reduzidas pelo Código Florestal, são insuficientes — completa Ribeiro.

Ao GLOBO, Flávio disse que "a intenção é devolver ao proprietário rural o direito à sua terra, que hoje é inviabilizada e improdutiva por entraves ambientais desnecessários":

- A proposta não abrange áreas de preservação permanente, como encostas de morros e nascentes de água, e, mesmo após sua aprovação, o Brasil ainda será o país que mais protege sua vegetação nativa no mundo. É possível transformar as riquezas naturais que Deus nos deu em desenvolvimento para a população e, ao mesmo, preservar o meio ambiente.


Luiz Carlos Azedo: Mais um ano no vermelho

“Bolsonaro emite sinais de que não está muito empenhado em aprovar a reforma da Previdência nem acredita nos fundamentos liberais de sua política econômica”

O governo Bolsonaro prefere rosa e azul, principalmente na roupa das crianças, mas é vermelho o seu projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) apresentado ontem: a estimativa do deficit das contas públicas no próximo ano é de R$ 124 bilhões, R$ 14 bilhões a mais do que a anterior. Ou seja, o governo está enxugando gelo em termos de ajuste fiscal, mesmo considerando a reforma da Previdência.

O outro lado da moeda é o valor do salário mínimo em 2020, que será de R$ 1.040, um aumento de R$ 42 em relação aos atuais R$ 998. Não haverá aumento real do salário mínimo no ano que vem, que será corrigido apenas pela inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). Os números da LDO são um banho de realidade na retórica da “nova política”, que coleciona polêmicas no varejo. No atacado, a opção é quase o “mais do mesmo”: meta de inflação e câmbio flutuante; o superavit fiscal, premissa para a retomada do crescimento, está além do horizonte.

A economia do país está em desaceleração. Em fevereiro, registrou a maior retração desde maio de 2018, quando ocorreu a greve dos caminhoneiros, segundo os números divulgados, ontem, pelo Banco Central. Considerado uma prévia do PIB, o Índice de Atividade Econômica do BC (IBC-Br) registrou, em fevereiro, um recuo de 0,73%, na comparação com janeiro deste ano. O resultado foi calculado após ajuste sazonal (uma espécie de “compensação” para comparar períodos diferentes). Maio de 2018 foi marcado pelos efeitos da greve dos caminhoneiros, que resultou em um tombo de 3,11% na prévia do PIB.

A economia está travada. O cenário macroeconômico não mudou, em grande parte, porque o presidente Jair Bolsonaro emite sinais de que não está muito empenhado em aprovar a reforma da Previdência nem acredita nos fundamentos liberais de sua política econômica. No varejo, há sinais preocupantes de que o presidente Bolsonaro governa na contramão do projeto do atacado. O caso da política de preços da Petrobras é bastante emblemático quanto a isso.

Ao intervir numa decisão da petroleira, sustando o aumento do diesel, para atender reclamações de lideranças dos caminhoneiros, o governo meteu-se numa enrascada, porque sinalizou fraqueza e desorientação. Recuou diante de uma ameaça de greve dos caminhoneiros, que foram um esteio de sua campanha eleitoral; agiu de forma extremamente inábil, ao vetar publicamente o aumento, o que desmoralizou a diretoria da empresa e sua política de preços perante os seus investidores.

Ontem, ministros e técnicos do governo passaram o dia discutindo como consertar o estrago, enquanto o mercado aguarda uma decisão sobre o preço do diesel, que deve ser anunciada, hoje, em reunião com o próprio presidente Jair Bolsonaro. A política de concessões do governo Bolsonaro é seu ponto mais forte, administrativamente, mas está batendo no teto, enquanto o programa de concessões e os leilões de petróleo vão muito bem, obrigado. O problema são as privatizações, que estão estagnadas. Os militares ocuparam as empresas estatais e consideram muitas delas estratégicas para o desenvolvimento nacional.

Filho feio

Bolsonaro é um cristão novo do liberalismo, ao qual se converteu mais por conveniência política do que por convicção decorrente do conhecimento: já disse que não entende nada de economia. Entretanto, a política é a economia concentrada, e Bolsonaro não hesita na hora de tomar decisões com base no senso comum de suas bases eleitorais, sem medir muito as consequências, como no caso do diesel.

Enquanto administra no varejo, a inércia começa a mostrar sua cara no atacado. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados decidiu discutir a proposta que aumenta os gastos obrigatórios do governo, a chamada PEC do Orçamento, antes de debater a reforma da Previdência. A reunião havia sido convocada para discutir a reforma da Previdência. Foi uma derrota anunciada do governo, pois, desde a semana passada, os partidos do Centrão passaram a articular o adiamento do debate, enquanto Bolsonaro estava mais preocupado com as máquinas e os equipamentos dos ladrões de madeira da Amazônia apreendidos pelo Ibama.

Bolsonaro precisa reavaliar a forma como está conduzindo sua relação com o Congresso. Os partidos do Centrão, como PP, PR e DEM, apoiaram um requerimento do PT para a CCJ analisar, primeiro, a proposta sobre o Orçamento. PSDB, Novo e Patriota votaram contra a inversão da pauta. Até mesmo o PSL, partido de Bolsonaro, votou a favor da mudança. As conversas com Bolsonaro levaram os líderes desses partidos a concluírem que o presidente da República não quer colar seu nome à reforma da Previdência; no jargão parlamentar, “filho feio não tem pai”.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mais-um-ano-no-vermelho/


Míriam Leitão: Erros do governo na Amazônia

Generais se preocupam com o Sínodo católico sobre Amazônia, e ministro do meio ambiente ataca Chico Mendes. Os problemas da região são outros

Em termos de Amazônia, o atual governo está se especializando em criar falsas polêmicas, como se já não fossem suficientes os problemas que a região realmente enfrenta. O Planalto considera que é preciso monitorar uma reunião da Igreja Católica sobre Amazônia, porque entende que será um atentado à soberania brasileira na região se líderes católicos criticarem o governo. “Nós não damos palpite sobre o deserto do Saara, ou o Alasca”, disse ontem o general Augusto Heleno. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atacou um morto. Fez acusações irresponsáveis contra Chico Mendes, assassinado há 30 anos.

A vitória de Jair Bolsonaro se deveu em parte à forte militância dos líderes das igrejas evangélicas. O ideal é que nenhuma religião fizesse militância partidária e eleitoral, porque essa mistura de púlpito e palanque interfere no direito de escolha do eleitor. Contudo, qualquer denominação religiosa é livre para defender temas que achar mais coerente com seus valores. O mesmo grupo político que não se preocupou com o uso das igrejas evangélicas na caminhada eleitoral de Jair Bolsonaro agora acha perigoso o que a Igreja Católica discutirá no Sínodo sobre Amazônia a ser realizado em outubro, em Roma.

O Estado é laico. Isso todos sabem, mas é sempre bom lembrar nestes tempos em que ministros acham que podem fazer proselitismo religioso nas decisões de políticas públicas. As igrejas também são livres para terem as suas visões dos fatos. É delirante a ideia de que se houver críticas ao governo Bolsonaro a soberania do Brasil estará ameaçada. Primeiro, crítica ao governo não é atentado à pátria. Segundo, a Amazônia não é apenas brasileira, é um bioma que se espalha por nove países. Terceiro, a Igreja Católica vem alertando sobre a urgência de proteção do meio ambiente muito antes de haver o governo Bolsonaro. É de 2015 a Encíclica Laudato Si do Papa Francisco.

Em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do “Estado de S. Paulo”, o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), admitiu que há uma preocupação do Planalto com as reuniões preparatórias do Sínodo. Disse que o assunto “vai ser objeto de estudo cuidadoso pelo GSI”. E promete: “Vamos entrar fundo nisso.”

Melhor faria o GSI se aproveitasse a experiência que o general Heleno e outros integrantes da cúpula do governo acumularam quando serviram na Amazônia para entrar fundo nos problemas reais da região: a invasão de grileiros em florestas e parques nacionais, o desmatamento ilegal e predatório, a ameaça aos indígenas, a destruição da biodiversidade, os documentos falsos de propriedade de terra, o uso da região como rota do crime organizado.

As divergências que os especialistas de diversas áreas, as entidades do terceiro setor e eventualmente integrantes do clero tenham em relação às posições do governo Bolsonaro sobre questões ambientais e climáticas são apenas isso: divergências. Uma sociedade democrática é, por natureza, plural. As pessoas divergem, discutem, se manifestam, são convencidas, convencem, mudam de ideia. Hoje os partidos que se opõem à atual administração estão enfraquecidos em grande parte por seus próprios equívocos políticos. Mas isso não significa que o governo não enfrentará, na sociedade, vozes discordantes às decisões que tomar em qualquer área, principalmente nos temas mais sensíveis.

Os militares que comandaram o Exército brasileiro na Amazônia, e que hoje estão no governo, são pessoas inteligentes, preparadas e conhecem o terreno de andar nele. Quem não demonstra entendimento mínimo é o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A acusação que fez a Chico Mendes desqualifica o próprio ministro e não o líder seringueiro. Salles fez no Roda Viva acusação sem prova, e sem fonte, contra quem não pode se defender. Disse que “as pessoas do agro da região disseram”. E o que disseram? “Que Chico Mendes usava os seringueiros para se beneficiar e fazia manipulação de opinião.” Sem fontes, sem fatos, a aleivosia do ministro do Meio Ambiente revela muito sobre o próprio ministro e o seu caráter.

Há adversários a enfrentar na Amazônia, os militares brasileiros os conhecem porque sempre estiveram presentes na região. Não é o Vaticano. Não é Chico Mendes.


O Estado de S. Paulo: Sínodo vira pauta de governo pela primeira vez nos últimos anos

Edição de 2019 que terá como tema principal a Amazônia começou a ser acompanhada pela Abin; entenda os conflitos de interesses do governo federal e da Igreja

Carla Bridi, de O Estado de S.Paulo

Agendado para outubro deste ano, o Sínodo da Amazônia virou pauta nos últimos dias após reportagem do Estado ter identificado documentos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) relacionados a encontros de cardeais brasileiros com o papa Francisco sobre o evento. Para o governo brasileiro, as pautas discutidas pertencem a uma "agenda de esquerda", e servirão como base para críticas ao governo de Jair Bolsonaro durante o evento, que acontecerá no Vaticano.

Sínodo dos Bispos
Prelados rezam antes da abertura da sessão da manhã, no Vaticano. Foto: Alessandra Tarantino/AP
O Sínodo trata-se de um encontro de bispos de todo o mundo, convocado pelo papa, para discutir temas ou problemas relacionados à Igreja. Nos últimos anos, as Assembleias Especiais, categoria no qual está enquadrado o Sínodo da Amazônia, trataram de temas como África e Oriente Médio, realizadas respectivamente em 2009 e 2010.

Os eventos mais recentes foram classificados como Assembleias Gerais, podendo ser ordinárias ou extraordinárias. Em 2018, o tema discutido pelos cardeais foi "Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”. Em 2014 e 2015, a pauta era “Os desafios Pastorais da Família no contexto da evangelização”. Não há uma peridiocidade fixa para a realização dos sínodos.

O objetivo principal que cerceia as discussões dos eventos, além de definir como a Igreja Católica pode intervir em conflitos, também tem como base sólida novas maneiras de catequese de grupos em regiões onde há empecilhos para a disseminação dos ideais católicos. Participam 250 bispos, em evento de 23 dias de duração no Vaticano. Dois pré-eventos também fazem parte da agenda, um já ocorrido no Peru em janeiro e um seminário agendado para março na Arquidiocese de Manaus.

Como aponta o texto, redigido pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), juntamente com a Comissão Episcopal para a Amazônia, “o objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta".

Dividido em três subtítulos, "Ver", "Discernir" e "Agir", o material serve como uma orientação de análise dos povos amazônicos para depois definir o método de ação da Igreja Católica na região. Dos 13 autores do documento, três são brasileiros e membros da REPAM-Brasil.

"Agenda de esquerda". A preocupação expressa pelo general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que classificou pautas a serem discutidas no evento da Igreja como de "interesse da segurança nacional", reflete no alinhamento histórico do chamado "clero progressista" ao Partido dos Trabalhadores (PT).

O cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, d. Cláudio Hummes, era próximo ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Hummes também tem proximidade com o papa Francisco. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também apresentava alinhamento histórico a vertentes democráticas, na época da ditadura, e posteriormente ao PT, tendo apresentado afastamento no governo de Dilma Rousseff. Então candidata defensora da descriminalização do aborto, apresentou ideologia contrária a CNBB.

O secretário-geral da instituição, dom Leonardo Steiner, criticou a intenção de interferência governamental no evento, afirmando que é "da Igreja para a Igreja". Heleno, representando o governo federal, apontou preocupação com intervenção externa em assuntos domésticos, como é o caso da Amazônia brasileira. Dom Steiner ressaltou que oito países compõem a Floresta Amazônica, assim sendo difícil incluir a presença de representantes de diversas nações, como foi solicitado à CNBB pelo governo federal.

Em artigo publicado no site da CNBB sob a autoria de Dom Demétrio Valentini, Bispo emérito de Jales, consta que "alguns logo propuseram que, desta vez, o Sínodo fosse realizado em algum lugar da própria Amazônia. Mas logo se chegou à conclusão que, ao contrário, mais ainda o Sínodo sobre a Amazônia deveria ser realizado em Roma para mostrar que a Amazônia interessa ao mundo todo." Não há registros de representantes governamentais em nenhum dos últimos eventos.

O presidente Jair Bolsonaro tem histórico polêmico com representantes indígenas e questões relacionadas ao meio ambiente. A Fundação Nacional do Índio (Funai) passou a ser vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento em seu governo, gerando protestos de entidades indígenas. O Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) também foi deslocado para a pasta, gerando dúvidas sobre a demarcação de terras. A pretensão de saída do Brasil do Acordo de Paris também era um dos pontos do início do governo, revogado posteriormente pelo Ministério do Meio Ambiente, que inicialmente deixaria de ter o status de ministério.


José Casado: O inimigo do governo veste batina

Augusto Heleno Ribeiro Pereira tem precedência hierárquica na curadoria militar do governo Jair Bolsonaro. É da tradição dos quartéis, onde viveu 45 dos seus 71 anos de idade — a última dúzia como general.

A ascendência sobre Bolsonaro tem origem na dedicação do treinador da Academiadas Agulhas Negras, que ajudou o cadete Cavalão ase destacarem pentatlo moderno. A gratidão veio coma chefiado Gabinete de Segurança Institucional.

Desde que experimentou um biênio no Comando Militar da Amazônia (2007-2009), com 17 mil soldados em quatro brigadas de infantaria de selva, Ribeiro Pereira—mais conhecido como Augusto Heleno—enxerga um potencial de “teatro de operações” em metade do mapa do Brasil, por ausência do Estado.

Na últimas décadas, recitou em auditórios os clássicos da catequese sobre a “cobiça internacional” pela Amazônia, além de listar equações diplomáticas nos 11 mil kms da fronteira Norte com chance de “descambar para uma situação bélica”.

Agora, como disse à repórter Tânia Monteiro, mobiliza o governo para “neutralizar” o Vaticano, que programou para outubro o Sínodo da Amazônia, com batinas de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Perue Antilhas. Faltou o chefe do GSI definir “neutralizar”.

Argumenta com possíveis críticas do Vaticano à política para a Amazônia. Seria impossível, porque, se existe, até hoje ninguém viu — como o projeto de reforma da Previdência.

Ele se queixa de que “há muito tempo existe influência da Igreja e ONGs na floresta”. Tem razão. Entidades civis proliferam no vácuo estatal. A história da Igreja Católica é mais antiga.

Ribeiro Pereira talvez tenha esquecido, mas Brasil é assunto em Roma desde meio século antes do “Descobrimento”. Caminha registrou o “achamento”, a missa e a ordem do capitão Cabral para deixar na praia de Santa Cruz (BA) um par de colonos. Um deles se chamava Ribeiro.

*
Quem, algum dia, desfrutou do prazer de conviver com Ricardo Boechat aprendeu algo sobre o significado da palavra “liberdade”.


O Estado de S. Paulo: Governo prepara pacote de obras para Amazônia

Projetos incluem ponte sobre o Rio Amazonas, hidrelétrica e extensão da BR-163 até o Suriname; militares querem marcar posição contra ‘pressões globalistas’

Tânia Monteiro e André Borges, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O governo vai começar o seu plano de desenvolvimento pela região amazônica e enviará três ministros ao oeste do Pará para avaliar investimentos de infraestrutura e definir grandes obras na região. A escolha não é casual. O avanço nessas áreas isoladas da floresta e na fronteira atende também a um compromisso de campanha do presidente Jair Bolsonaro de aumentar a presença do Estado no chamado Triplo A. Trata-se de uma área que se estende dos Andes ao Atlântico, onde organismos internacionais supostamente pretendem criar uma faixa independente para preservação ambiental.

A região é estratégica para os militares, que querem marcar posição contra o que chamam de “pressões globalistas”. Como parte dessa estratégia, os ministros Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) desembarcam nesta quarta-feira, 13, em Tiriós (PA) para discutir com líderes locais a construção de uma ponte sobre o Rio Amazonas na cidade de Óbidos, uma hidrelétrica em Oriximiná e a extensão da BR-163 até a fronteira do Suriname.

A hidrelétrica teria, na avaliação do governo, o propósito de abastecer a Zona Franca de Manaus e região, reduzindo apagões. A ampliação da BR-163 – construída nos anos 1970, ainda inacabada e notícia por causa de seus atoleiros – cumpriria uma meta de integração da Região Norte. Já a ponte ligaria as duas margens do Amazonas por via terrestre, ainda feita por travessia de barcos e balsas. O projeto serviria como mais um caminho para o escoamento da produção de grãos do Centro-Oeste.

Bebianno comparou as iniciativas à retomada do Calha Norte, projeto do governo José Sarney para fixação da presença militar na Amazônia. “A retomada do Calha Norte é fundamental para o Brasil como um todo. Estamos fazendo um mapeamento da região e vamos lá olhar pessoalmente”, afirmou o ministro ao Estado.

O movimento coincide com ação do governo para combater a influência do chamado “clero progressista” da Igreja Católica naregião. O pano de fundo é a realização do Sínodo sobre Amazônia, que será organizado em outubro, em Roma, pelo Vaticano. Entre os temas que serão discutidos estão a situação dos povos indígenas e de quilombolas e os investimentos na região – considerados “agendas de esquerda” pelo Planalto.

A última série de grandes investimentos na Amazônia ocorreu ainda no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o início das obras das hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará. Nos governos Dilma Rousseff e Michel Temer, os canteiros foram abandonados ou perderam o ritmo.

O Planalto justifica a escolha dos projetos com o argumento de que a população dos municípios da margem norte do Amazonas está abandonada e seu objetivo é implementar um plano de ocupação para estimular o mercado regional e definir um “marco” da política do governo de incentivo econômico.

Resistências. Um auxiliar de Bolsonaro afirmou que a presença dos ministros do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos na comitiva tem por objetivo reduzir eventuais ataques de ativistas e ambientalistas. A área delimitada para o início do plano estratégico é formada por reservas ambientais e territórios de comunidades isoladas, como a dos índios zoés, na região de Santarém.

 

Para tentar quebrar resistências, o governo vai incluir termos de responsabilidade socioambiental em todas as obras e firmar compromisso de diálogo com as comunidades locais. A equipe do presidente já antevê, no entanto, reações especialmente de países da União Europeia, que têm ligações com as entidades mais influentes da área de defesa da preservação da floresta.

Militares com cargo no governo recusam a comparação com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado por Lula com obras em todo o País, especialmente no Norte e no Nordeste. Ainda está prevista a retomada do projeto de revitalização dos afluentes do Rio São Francisco.

A viabilidade dos projetos de infraestrutura na Amazônia desenhados pelo Planalto esbarra numa série de dificuldades. As tentativas de se instalar uma usina no Rio Trombetas já fracassaram em outros governos por obstáculos socioambientais. O mesmo problema já comprometeu a continuidade da BR-163. A região é de mata densa, sem estradas. Seria necessário abrir uma rodovia na floresta, região marcada por áreas protegidas.

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‘Sínodo é encontro da Igreja para a Igreja’, diz secretário-geral da CNBB

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Um dia após o Estado revelar que o governo federal quer neutralizar potenciais críticas de líderes católicos ao presidente Jair Bolsonaro no Sínodo da Amazônia, encontro religioso convocado pelo papa Francisco, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner, afirmou nesta segunda-feira, 11, que o evento é “da Igreja para a Igreja”.

“É um evento, uma celebração da Igreja para a Igreja. É claro, da Igreja para a Igreja, envolve toda a questão da Pan-Amazônia: os povos, o meio ambiente, toda essa realidade certamente será abordada”, disse dom Leonardo, em vídeo divulgado pela CNBB.

Conforme o Estado mostrou, o governo Bolsonaro acionou o Itamaraty para buscar interlocução com o Vaticano. Uma das tentativas era que um representante diplomático do Brasil participasse da reunião de bispos, o que causou reação negativa entre os religiosos brasileiros. Segundo ele, nunca houve políticos no evento. A Santa Sé é a responsável pela organização e qualquer convite passa pelo crivo do papa.

No vídeo, a CNBB reproduziu falas do papa Francisco explicando a importância do Sínodo da Amazônia. A entidade destacou que o encontro estava programado desde 2017 – ou seja, antes da eleição de Bolsonaro. Depois de uma série de reuniões preparatórias nas dioceses pelo Brasil, que despertaram a atenção da inteligência e dos militares, ocorrerá em outubro, em Roma, na Itália.

“Como ouvimos e vimos, o santo padre Francisco convocou um Sínodo para a Pan-Amazônia já em 2017. Neste ano, celebraremos o Sínodo para a Pan-Amazônia. Para isso, nós contamos com a presença e a oração de todas as pessoas do Brasil, mas também dos outros oito países que envolvem a Amazônia”, pede dom Leonardo. “O santo padre deseja que encontremos caminhos para evangelização.”


Oposição quer convocar general Heleno para explicar 'espionagem' de bispos
Deputado Marcio Jerry, do PCdoB, promete protocolar requerimento de convocação do ministro na Câmara; cabe a Maia convocar comissão

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A oposição ao governo Jair Bolsonaro quer convocar o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), para prestar explicações das atividades de inteligência sobre o "clero progressista", reveladas pelo Estado. O Palácio do Planalto recebeu relatórios de inteligência com detalhes das reuniões de preparação do Sínodo da Amazônia, encontro religioso convocado pelo papa Francisco para outubro, em Roma, e tenta neutralizar o que considera uma brecha para críticas internacionais ao governo por parte de bispos brasileiros da Igreja Católica.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O deputado Marcio Jerry (PCdoB-MA) promete protocolar nesta terça-feira, 12, na Câmara, um requerimento de convocação do general Heleno. No entendimento do parlamentar, há "espionagem política das atividades da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por parte da Agência Brasileira de Inteligência (Abin)".

O deputado pede que o plenário da Câmara aprove, por maioria simples, a convocação do ministro, conforme cópia do requerimento obtida pela reportagem. Se isso ocorrer, Heleno será obrigado a ir à tribuna da Casa para se pronunciar e depois responder aos questionamentos dos parlamentares. Cabe ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), convocar a comissão para ouvir o ministro. Uma falta configura crime de responsabilidade.

O deputado Marcio Jerry comparou o monitoramento das reuniões católicas pelo governo a uma retomada de políticas do regime militar, ao justificar o pedido de convocação.

"Esse tipo de procedimento é muito grave e inadmissível num Estado Democrático de Direito, contraria as garantias constantes da Constituição Federal e precisa ser urgentemente explicado pelo governo. Se de fato a Presidência da República, por meio da Abin, estiver espionando e tratando a CNBB como 'inimiga interna', estará diante de um dos maiores escândalos deste começo de ano. É inaceitável a volta da 'doutrina da segurança nacional' utilizada de maneira nefasta pela ditadura banida do nosso País há três décadas", escreveu o deputado.


Forças Armadas consideram Triplo A como uma ‘ameaça’
Para alguns oficiais de Estado-Maior, pode ser uma 'das mais preocupantes' hipóteses de conflito do Brasil

Roberto Godoy, O Estado de S.Paulo

O Corredor Triplo A, ligação gigante entre os Andes, a Amazônia e uma linha larga no litoral do oceano Atlântico, é amplamente considerado, sempre como ameaça, entre os estudos estratégicos das Forças Armadas. Para alguns oficiais de Estado-Maior, pode ser uma “das mais preocupantes” hipóteses de conflito do Brasil. O quadro – que há cinco meses mereceu do ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas vigoroso comentário de alerta no Twitter (“Minha missão como comandante do Exército, preocupado com interesses nacionais, é indicar os riscos dessa proposta para o País”) – é tema de análises militares há cerca de 45 anos.

Nos anos 1970, ainda não era o Triplo A. Um grupo de entidades da Europa defendia a tese da declaração de um território em regime de administração especial para abrigar a etnia ianomâmi. Um dos argumentos da época era a preocupação com a preservação da matriz genética dos índios. A área pretendida era grande e estaria sobreposta a reservas naturais de metais raros. A ideia não pegou.

O modelo mudou até o atual AAA, desenhado pelo antropólogo americano Martin von Hildebrand, envolvendo 135 milhões de hectares, uma faixa que começa nos Andes, pega a parte norte do Rio Maranõn, no Peru, segue pela Amazônia do Equador e da Colômbia, abrange o Estado do Amazonas na Venezuela, entra pela Guiana, o Suriname, a Guiana Francesa, e segue pela calha dos rios Solimões e Amazonas. Nessa imensa passagem, a estimativa é de que haja perto de 1.200 terras indígenas distribuídas por sete países – um bolsão do tamanho de 1,2 milhão de km².


O Estado de S. Paulo: Revista ‘Science’ faz alerta sobre riscos da gestão Bolsonaro para a Amazônia

Pesquisador brasileiro Paulo Artaxo, da USP, foi convidado a escrever o editorial do prestigiado periódico científico com um panorama sobre o impacto que o novo governo pode trazer para a região

Por Giovana Girardi, do O Estado de S. Paulo

A revista científica Science, uma das mais prestigiadas do mundo, publica em sua edição desta sexta-feira, 25, um editorial de alerta sobre os riscos que o governo Bolsonaro pode trazer para a Amazônia. Assina o texto o pesquisador brasileiro Paulo Artaxo, professor da física ambiental da Universidade de São Paulo.

Um dos maiores especialistas em Amazônia e em mudanças climáticas do País, Artaxo recebeu um raro convite feito a cientistas brasileiros para escrever sobre o impacto do novo gestão para a ciência, para o meio ambiente e para a Amazônia.

“A floresta tropical é um tesouro brasileiro que deve ser mantido para esta e as futuras gerações”, alerta editoral da revista Science. Crédito: Ricardo Moraes/Reuters

No texto intitulado “Trabalhando juntos pela Amazônia”, ele destaca a importância da floresta como reguladora do clima e aponta como o combate ao desmatamento no período de 2005 a 2012, que fez a taxa de perda da floresta cair de 27.772 km² para 4.571 km², transformou o País em um líder global na mitigação das mudanças climáticas.

O pesquisador pondera que a região voltou a ficar em risco a partir de 2015, com a instalação da crise política e econômica, que levou a cortes no orçamento de agências científicas como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e com um acirramento da pressão de ruralistas no Congresso. Nos últimos quatro anos, o desmatamento voltou a subir, chegando a 8 mil km² no ano passado.

Para Artaxo, Bolsonaro não traz boas perspectivas de atuar contra essa devastação. “Em vez de abordar as crises do Brasil com renovado compromisso com a ciência e soluções sustentáveis, o governo Bolsonaro está favorecendo os interesses da agroindústria e da mineração que intensificam essas atividades na Amazônia”, escreve.

Ele cita como exemplo a transferência da Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, o que, segundo o pesquisador, “coloca áreas protegidas e as centenas de milhares de povos indígenas da Amazônia em perigo”. Artaxo lembra que cerca de 20% da Amazônia brasileira já está desmatada.

“A nova agenda poderia minar o Código Florestal do Brasil, que exige que os proprietários de terra mantenham uma porcentagem (80% na Amazônia bioma) de suas terras com cobertura florestal”, escreve. O pesquisador também questiona o desaparecimento da área de clima tanto do Ministério do Meio Ambiente quanto do Itamaraty e as ameaças de Bolsonaro de deixar o Acordo de Paris.

Artaxo escreveu o artigo antes da manifestação recente do presidente no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), em que Bolsonaro disse que, “por ora”, o Brasil permanece no acordo.

Em entrevista ao Estado logo após o pronunciamento oficial do presidente, que se disse comprometido com a preservação do meio ambiente e com os esforços mundial de redução de CO2, Artaxo opinou que “Bolsonaro disse o que a audiência (líderes políticos e econômicos) queria ouvir dele”. E defendeu que as indicações colocadas no começo deste governo não apontam nessa direção.

Artaxo também criticou as dúvidas que foram levantadas pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em relação aos dados do desmatamento registrados pelo Inpe. “O Inpe é líder mundial em sensoriamento remoto sobre floresta tropical. Não dá nenhuma dúvida científica sobre esses números”, afirmou.

“A política ambiental precisa ser baseada em conhecimento científico. A Amazônia é o exemplo mais claro dessa necessidade. Desenvolvimento sem fundamentação causa muito mais devastação do que ganhos econômicos. Pode ser um tiro no pé, no sentido de destruir o meio ambiente sem o retorno econômico que se imaginava que poderia ter. A melhor ferramenta para evitar esses erros se chama ciência: políticas públicas baseadas em conhecimento científico”, continua.

“E devastação é para sempre. A floresta não se recupera rapidamente uma vez destruídos os alicerces que sustentam suas existência”, alertou o cientista na entrevista.

Artaxo lembra que a permanência no acordo implica em cumprir suas metas de redução das emissões de gases de efeito estufa que, no caso do Brasil, são de 43% até 2030, com base nos valores de 2005.

“Muito dessa redução de emissões depende de pôr um fim no desmatamento ilegal e de reflorestar 12 milhões de hectares. Essas intenções estão agora em conflito com o desejo do agronegócio de expandir a pastagem e agricultura intensiva na floresta amazônica e no Cerrado”, escreveu no artigo.

“Destruir a Amazônia não é a resposta para os problemas do Brasil. A floresta tropical é um tesouro brasileiro que deve ser bem mantido para esta e as futuras gerações”, continua Artaxo.

Ele conclui o editorial lembrando que ele mesmo e demais cientistas brasileiros “estão prontos para assessorar o novo governo sobre formas de preservar a floresta amazônica e região do Cerrado com aumento da produção de alimentos e do crescimento da economia” a fim de “conceber estratégias para o desenvolvimento da Amazônia que também protejam sua rica biodiversidade e povos indígenas”.


O Globo: Governo prepara decreto para construir hidrelétrica e ponte e concluir rodovia na Amazônia

Batizado de Projeto Barão do Rio Branco, texto deve ser assinado dentro do prazo de 100 dias de gestão

Por Jussara Soares, de O Globo

BRASÍLIA — A equipe do presidente Jair Bolsonaro prepara um decreto para a criação de um programa de desenvolvimento da Amazônia, considerada estratégica para o novo governo e vista por militares como um ponto de vulnerabilidade nacional. Batizado de Projeto Barão do Rio Branco, o plano prevê a construção de uma usina hidrelétrica no Rio Trombetas, uma ponte sobre o Rio Amazonas, no município de Óbidos, e a conclusão da rodovia BR-163 até a fronteira com Suriname, todos no estado do Pará.

O decreto, segundo integrantes do Planalto, deve ser assinado ainda dentro do prazo de 100 dias da gestão Bolsonaro. Os detalhes do programa estão sendo desenhados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), subordinada à Secretaria-Geral da Presidência e comandada pelo secretário especial Maynard Marques de Santa Rosa.

O projeto considerado interministerial ainda não tem previsão de investimentos, impacto ambiental, nem da população atingida. Entretanto, já contaria com o aval do presidente Bolsonaro.

General da reserva e idealizador do projeto, Santa Rosa escreveu, em 2013, um artigo intitulado "Uma Estratégia Nacional para a Amazônia Legal" em que já defendia esses mesmos investimentos tanto para o desenvolvimento econômico e social da região, como também como uma tática para "quebrar o braço" de subsidiárias nacionais de organizações não-governamentais (ONG) internacionais que atuam em causas ambientais e indígenas.

Publicado em diversos sites, o texto do atual secretário de Assuntos Estratégicos defendia a construção "do complexo hidrelétrico do rio Trombetas, a fim de prover energia para o médio Amazonas, viabilizar a exploração do alumínio e expandir o polo estratégico de Oriximiná". Localizada na região de Óbidos, o município faz fronteira com os países de Suriname e Guiana e abriga a maior produtora de bauxita do país.

No mesmo artigo, Santa Rosa defende o plano de desenvolvimento para "paralelamente, vitalizar a presença diplomática e de inteligência junto aos centros decisórios do movimento indigenista-ambientalista internacional, antecipando providências e neutralizando as suas campanhas midiáticas".

A estratégia, segundo o texto de Santa Rosa, visa "quebrar o braço nacional desse movimento, por meio de um controle estrito sobre as ONGs internacionais que operam no Brasil e suas subsidiárias nacionais". Ele argumenta que "essa estratégia implica estancar as transferências de recursos públicos para as ONGs indigenistas e ambientalistas."

Secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa no governo Lula, Santa Rosa, já naquela época, condenava a atuação de ONGs na região amazônica, assim como o que considerava "excessiva a demarcação de terras indígenas."

Integrantes do governo negam que o Projeto Barão do Rio Branco tenha relação com o chamado "Triplo A", citado em diversas oportunidades por Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral como uma "ameaça à soberania nacional". Técnicos envolvidos no desenvolvimento do projeto afirmam que todo o programa estará amparado na sustentabilidade e reforçam que serão encomendados estudos de impacto ambiental.

A ideia do "Triplo A", citada diversas vezes por Bolsonaro, é creditada ao colombiano Martín von Hildebrand, fundador da Fundação Gaia Amazonas, sediada em Bogotá, capital do país. Chamada de "Triplo A" ou "Corredor AAA", proposta consistiria na formação de um grande corredor ecológico abrangendo 135 milhões de hectares de floresta tropical, dos Andes ao Atlântico, passando pela Amazônia — daí os três "A" do nome.


Joaquim Francisco de Carvalho: O valor da Amazônia

Que o governo honre compromissos de preservação

Convencionou-se chamar de serviço ambiental a regulação do clima, a oferta natural de água, a manutenção da fertilidade dos solos, a polinização das culturas etc.

Segundo o economista Bernardo Strassburg, diretor do Instituto Internacional para a Sustentabilidade e professor da PUC-Rio, graças aos serviços ambientais, a floresta amazônica vale mais se ficar em pé do que se for derrubada para dar espaço à agricultura ou à pecuária.

Alheios a isso, os empresários do agronegócio fazem tudo para que o governo flexibilize o licenciamento e afrouxe a fiscalização do Ibama, o que seria ruinoso tanto do ponto de vista ambiental como do econômico.

Pelos cálculos de Strassburg, cada hectare desmatado para a pecuária, na Amazônia, renderia no máximo R$ 100 por ano. Para o plantio de soja, a renda seria de R$ 500 a R$ 1.000 por ano. Em comparação, um hectare de floresta em pé presta serviços ambientais avaliados em R$ 3.500 por ano. No cerrado, isso chega a R$ 2.300 por ano.

Assinale-se que nesses cálculos não foi incluída a rentabilidade do turismo ecológico, tampouco a do extrativismo, isto é, do aproveitamento de matérias-primas extraídas da floresta, para uso no artesanato e na indústria farmacêutica.

Em latitudes equatoriais, os ventos empurram para o continente as nuvens formadas pela evaporação de águas do oceano Atlântico --e as chuvas provocadas pela condensação dessas nuvens caem sobre a floresta amazônica.

Calcula-se que há mais de 600 milhões de árvores na Amazônia e, de acordo com o Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), cada árvore pode absorver do solo, em média, 3 hectolitros de água por dia. Parte dessa água volta à atmosfera por evapotranspiração.

Forma-se então sobre a floresta um volumoso caudal, que, encontrando anteparo na cordilheira dos Andes, desvia-se para as regiões centro-oeste, centro-sul e sul. É o chamado "rio voador", que alimenta o ciclo hidrológico responsável pelas chuvas e pela regulação do clima na maior parte do país.

Por conseguinte, se o governo não for capaz de conter o desmatamento da Amazônia, sobrevirão longas estações secas, com funestas consequências para a agricultura.

Segundo o climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o processo de recomposição natural da floresta é desequilibrado sob a sinergia negativa entre a agricultura e a pecuária, de um lado, e o ecossistema, do outro. Caso seja desmatada uma área superior a 25%, a floresta original se transformará em savana.

A parte brasileira da floresta amazônica tem pouco mais de 3 milhões de km2. Entre 1991 e 2000, a área desmatada para a agricultura, a pecuária e a extração de madeiras cresceu de 415 mil para 587 mil km2.

De 2000 até 2017 desmataram-se, por ano, em média, 3.000 km2. Nesse ritmo, falta pouco para que o ecossistema amazônico passe de floresta tropical a savana e, depois, a deserto.
Os sucessivos governos mostram-se incapazes de conter esse descalabro, por motivos que vão da incompetência e corrupção de agentes públicos até a cupidez e --por que não dizer?-- e a ação corruptora de alguns conhecidos empresários da agricultura, da pecuária e da indústria madeireira.

Pelo Acordo de Paris, de 2015, o Brasil comprometeu-se a recuperar 120 mil km2 da floresta amazônica até 2030. Espera-se que o novo governo honre esse compromisso, acabe com a corrupção e seja capaz de evitar que a Amazônia se transforme numa savana.

*Joaquim Francisco de Carvalho é doutor em energia pela USP, professor aposentado, ex-presidente do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) e ex-chefe do setor industrial do Ministério do Planejamento


BBC Brasil: 'Tecnologia permite destruir Amazônia mais rápido do que fizemos com a Mata Atlântica'

Só 3% da madeira derrubada na Mata Atlântica para dar lugar a fazendas foi aproveitada; em geral, matas eram incendiadas e transformadas em pastos para prepará-las para a agricultura, assim como hoje ocorre na Amazônia

Por João Fellet, Da BBC News Brasil em São Paulo

Em 2005, então recém-formado na faculdade de Biologia da USP, o botânico Ricardo Cardim teve a ideia de percorrer áreas desflorestadas da Mata Atlântica atrás de árvores gigantes que haviam sobrevivido isoladas no meio de plantações e pastagens.

A pesquisa ganhou corpo ao longo dos últimos 13 anos e se transformou numa das maiores investigações sobre a história da destruição de uma das regiões mais biodiversas do planeta.

Em "Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios" (ed. Olhares), livro lançado em novembro, Cardim documenta a vertiginosa expansão econômica sobre o bioma, que, em pouco mais de um século, o fez perder 90% de sua vegetação original e dividiu as áreas sobreviventes em 245 mil fragmentos.

Ao lado do fotógrafo Cássio Vasconcellos e do botânico Luciano Zandoná, Cardim também elaborou um inventário de tesouros que resistiram às derrubadas - entre os quais exemplares centenários de figueiras, perobas e paus-brasil, retratados em expedições por seis Estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste.

A árvore mais alta identificada, numa antiga fazenda de cacau em Camacã (BA), foi um jequitibá com 58 metros de altura e tronco com 13,6 metros de circunferência - dimensões extraordinárias, mas aquém das árvores gigantes do bioma no passado, como um jequitibá na região de Campinas (SP) cujo caule alcançava 19,5 metros de circunferência no início do século 20.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cardim diz que as condições que permitiram o desenvolvimento das árvores gigantes da Mata Atlântica não existem mais. Compartimentadas e cercadas por lavouras, muitas áreas de floresta sobreviventes se despovoaram de animais - essenciais para a renovação das plantas - e sofrem com a invasão de espécies exóticas e alterações climáticas.

Ele diz acreditar, porém, que as próximas gerações conseguirão reconectar os fragmentos da floresta e trazer os bichos de volta, garantindo a sobrevivência do bioma, ainda que sem a mesma riqueza original.

Cardim não nutre o mesmo otimismo em relação à Amazônia - que, segundo ele, vive hoje, passo a passo, o mesmo roteiro da destruição da Mata Atlântica. Segundo o botânico, enquanto o desflorestamento da Mata Atlântica parece ter sido contido, a Amazônia sofre com a ação "de um arco de aventureiros que são incontroláveis" e fragmentarão o bioma antes que a sociedade se conscientize sobre sua importância. "Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo".

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - O livro mostra que, ao contrário do que muitos pensam, a destruição da Mata Atlântica foi um processo bem recente. Como o bioma foi aniquilado tão rapidamente?
Ricardo Cardim - Até 1890, o que estava mexido no Brasil era um pedacinho de Pernambuco, por causa do ciclo do açúcar no século 17, e do Rio de Janeiro, por causa das fazendas de café. O resto era mata fechada, com índios dentro.

Parece incrível, mas a destruição da Mata Atlântica se deu mesmo no século 20. A grande cobiça era pelos húmus que fertilizaram o solo da Mata Atlântica ao longo de milênios. A madeira era muito mais um empecilho do que um benefício. Só no final do processo, quando já tínhamos muito caminhão e transporte facilitado pelas ferrovias, que a madeira começou a ser aproveitada. Mesmo assim, o índice de aproveitamento da madeira foi de cerca de 3% de tudo o que foi derrubado.

A ordem era "limpa logo para a gente começar a colher o ouro verde", que era o café. Fizemos como aquele cara que herda uma fortuna e na mesma noite vai gastar tudo em farra, e acorda pobre. Demoramos milhares de anos para formar aquele solo, criar aquelas condições perfeitas, e em cinco ou dez anos, aquilo não existia mais. Os solos que a gente cultiva hoje só são cultiváveis por causa da tecnologia, porque já foram exauridos.

BBC News Brasil - Você destaca no livro a destruição das matas de araucárias, na porção sul da Mata Atlântica. O que houve de peculiar nesse processo?
Cardim - A velocidade com que ocorreu. Essa é uma floresta que passa do século 19 ao 20 praticamente intacta. Brincava-se que era possível atravessar os Estados do Paraná e de Santa Catarina nos galhos das araucárias, de tão grudadinhas que elas estavam.

Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil importava madeira - o que era surreal para um país que estava destruindo florestas adoidado para plantar café. Mas, quando a Primeira Guerra impede esse comércio, o mercado começa a lembrar a araucária - um pinheiro maravilhoso, muito fácil de cortar. Começa um saque da floresta voltado para a madeira como se nunca viu.

A araucária vira uma grande divisa. Todo mundo que quer ficar rico vai para a floresta de araucária montar sua serrraria. Isso chega no auge nos anos 1950 e 1960. Cortavam tanta madeira que boa parte dela apodrecia antes de ser escoada para o mercado. Nos anos 1970, a floresta acabou. Houve uma quebradeira geral nas serrarias. Famílias que eram riquíssimas ficaram pobres.

A araucária simplesmente acabou. O que temos hoje são araucárias rebrotando, pequenas. O que sobrou hoje é uma sombra.

BBC News Brasil - O quão virgem era a Mata Atlântica antes de 1500?
Cardim - (O antropólogo) Darcy Ribeiro falava que havia entre 4 e 6 milhões de índios vivendo aqui no território. Acho possível, mas não acho que o impacto deles na floresta foi tão grande quanto o historiador americano Warren Dean falou em "A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira" (1996). Ele diz que não existia floresta intocada, porque os índios já tinham cortado aquilo pelo menos uma vez em um milênio.

Eu acredito que os índios tinham capacidade de alterar o meio, mas com ferramentas muito primitivas - machados de pedra, fogo -, e também tinham populações muito pulverizadas. As coivaras que eles faziam para queimar e plantar roças não eram suficientes para gerar uma extensa derrubada. Acho que os índios deixavam as árvores grandes no meio da coivara e plantavam embaixo delas. E não acho que tenham conseguido trabalhar todo o território a ponto de alterá-lo.

BBC News Brasil - Qual o cenário hoje para as árvores gigantes remanescentes da Mata Atlântica?
Cardim - É terrivelmente ameaçado. A Mata Atlântica virou uma colcha de retalhos. Sobrou um décimo do que ela era, e ainda por cima esse décimo é formado por vegetação secundária - por florestas que já foram queimadas, exploradas, derrubadas - e dividido em 245 mil fragmentos de diferentes tamanhos. As árvores gigantes que sobraram nesses pedacinhos, especialmente nos menores, estão superameaçadas.

O clima local altera quando se derrubam florestas - basta lembrar que São Paulo era a terra da garoa, e hoje não temos mais garoa porque sumiu o verde dentro e no entorno da cidade. Os ventos, alterações ecológicas como a infestação de cipós, uma série de desequilíbrios ecológicos causados pela invasão do homem na floresta estão colocando em risco as poucas árvores gigantes que sobreviveram no bioma - tanto dentro da floresta quanto aquelas que estão isoladas em pastos, plantações, meios urbanos.

Nossa geração talvez seja uma das últimas a conseguir enxergar essas árvores gigantes, porque elas estão desaparecendo. E acho difícil que novas árvores desse porte surjam se a gente não reconectar os fragmentos de floresta.

BBC News Brasil - É viável reconectar esses fragmentos, considerando as forças econômicas e políticas atuais? As paisagens na região parecem estar muito consolidadas.
Cardim - Nasci em 1978 e cresci numa casa que tinha telefone de disco, uma TV com bombril espetado em cima e meu pai assinando jornal. O mundo mudou muito, e não só em tecnologia, em visão do planeta, sociedade. As crianças estão vindo com outro olhar sobre a natureza. Tenho muita fé de que elas vão causar uma revolução, e a tecnologia vai resolver muitos problemas, produzindo muito alimento sem precisar de grandes territórios. Vai chegar o momento em que vamos conseguir ter a harmonia entre o conforto moderno e o modo de produção econômico, e conseguiremos restabelecer parte do território natural.

Em 2100, teremos a Mata Atlântica reconectada, sobrevivendo, em harmonia com as cidades e as atividades agrícolas. Sou otimista.

BBC News Brasil - A Mata Atlântica será capaz de se regenerar sozinha?
Cardim - Se o ser humano desaparecesse da Terra neste instante, a Mata Atlântica iria recompor todo seu espaço. O que a atrapalharia são as plantas invasoras. Trouxemos muitas plantas estrangeiras. Quando você traz algo de fora, isso pode prejudicar enormemente quem já estava aqui antes. Vemos isso no parque Trianon (em São Paulo) e na Floresta da Tijuca (no Rio de Janeiro).

A floresta abandonada, sem ser manejada, iria virar um híbrido de Mata Atlântica com Pinus elliotti (pinheiro nativo da América do Norte), com palmeira seafortia (espécie australiana), com jaqueiras (oriundas da Ásia), e isso poderia comprometer grande parte da bidiversidade até chegar num ponto de equilibrio. Teríamos uma floresta mais pobre do que aquela que os portugueses encontraram em 1500.

BBC News Brasil - O geógrafo Altair Sales costuma dizer que os trechos remanescentes de Cerrado são como fotografias do passado, porque muitas das interações entre insetos, plantas e animais que permitiram o desenvolvimento daquelas paisagens deixaram de existir à medida que o bioma foi sendo degradado - e que no futuro aquelas paisagens desaparecerão. Isso se aplica à Mata Atlântica?
Cardim - Sim. Temos hoje na Mata Atlântica florestas que são relíquias, restos de uma era quando tínhamos macacos muriquis andando de galho em galho do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, quando tínhamos antas, varas de queixadas e catetus, onças em todos os lugares.

Os bichos são fundamentais para plantar e polinizar a floresta. Nos anos 1930, o homem chegou à mata metralhando os bichos, caçava tudo o que via por ali. A vegetação tropical é intimamente ligada a seus bichos, uma evoluiu com o outro, com complexas interações que a gente nem imagina ainda.

Na Mata Atlântica, temos hoje a figura da floresta vazia, da floresta zumbi, como a do Parque Trianon, que não tem como se renovar. Para que a semente de um jatobá germine, ela tem de ter a dormência quebrada pelo intestino da anta. Sem anta, isso não acontece mais, a semente cai no chão e não germina. Os mecanismos estão profundamente comprometidos tanto no Cerrado quanto na Mata Atlântica.

Por isso, quando formos investir para reconectar os fragmentos, precisamos procriar os bichos para que eles possam voltar a transitar e reabilitar a floresta.

BBC News Brasil - Em vez de homogênea, a Mata Atlântica é descrita no livro como um bioma com múltiplas faces. O quão diversa é a formação?
Cardim - As pessoas tendem a pensar que a Mata Atlântica é aquele tapetão de floresta, como na Serra do Mar. Pensam que só ocorre no litoral, sem saber que ela vai até o Paraguai. Ela era realmente extensa. Outra coisa interessante é a diversidade de paisagens.

Na Mata Atlântica, podemos encontrar desde a restinga arenosa, um areial com ilhas de bromélias, cactos, pequenos arbustos, pitangueiras, verdadeiros jardins prontos - não é à toa que Burle Marx se inspirava nessas paisagens -, a campos de altitude, como em Itatiaia, ou na Serra dos Órgãos, que são campos com plantinhas no topo, até florestas monstruosas como as que existiram no norte do Paraná e no sul da Bahia.

Ela tem maior biodiverisade, comparativamente, do que a Amazônia, porque ela concentra diversas paisagens e espécies num território relativamente pequeno, graças à proximidade do oceano em alguns pontos e do relevo, que é bastante movimentado e cria diferentes condições para a vegetação.

BBC News Brasil - Já tivemos perdas irreparáveis de espécies de árvores gigantes na Mata Atlântica?
Cardim - Suspeito que sim. Por exemplo, a peroba-rosa encobria centenas de quilômetros de florestas. Ela foi tão cortada, sobrou tão pouco, que nos faz questionar o quanto sofreu de ersoão genética a ponto de se tornar viável. Uma doença talvez seja capaz de matar todas as restantes. São os últimos moicanos. Tenho a sensação de que muitas árvores da Mata Atlântica são os últimos moicanos.

Nas expedições que fiz durante a produção do livro, tinha o objetivo de ver a floresta original, mas acho que não consegui. A grande verdade é essa. Eu vi florestas que podem ter sido próximas daquilo, mas fiquei com a sensação de que não existe mais a floresta original, que meu tataravô possa ter visto quando estavam abrindo as fazendas.

BBC News Brasil - Quando se critica o desmatamento no Brasil, alguns representantes do agronegócio costumam citar a destruição das florestas na Europa e reivindicar o direito de fazer o mesmo por aqui. Como seria nossa sociedade se a Mata Atlântica não tivesse sido destruída?
Cardim - Esse argumento é tão hediondo como falar que, já que houve o Holocausto na Alemanha, podemos fazer um aqui também. A Europa hoje está preocupadíssima em restabelecer suas florestas e nunca mais vai restabelecer do jeito que era, porque as matas lá vêm sendo derrubadas desde a época romana.

Se tivéssemos encontrado outros meios de produzir riqueza, através da educação, da tecnologia, teríamos agora um patrimônio maravilhoso. Não sou contra a exploração de madeira. Sem a madeira, não teríamos orquestras, por exemplo. Eu adoro móveis de madeira nobre. Mas, se tivéssemos explorado de forma sustentável, poderíamos ter móveis de jacarandá pelo resto da vida.

Teríamos um potencial gastronômico inacreditavelmente grande, como alguns já começaram a perceber, como (o chef) Alex Atala. Teríamos muito potencial no ramo da biotecnologia, de medicamentos. E também de turismo, pois é impossível ficar indiferente diante dessas árvores gigantes. É como alguém diante da pirâmide de Queóps.

BBC News Brasil - O processo de destruição da Mata Atlântica é comparável ao que hoje enfrenta a Amazônia?
Cardim - A grande sacada desse livro é mostrar que fizemos uma coisa na Mata Atlântica nos últimos 100 ou 150 anos que é exatamente igual ao que estamos fazendo hoje na Amazônia. O que muda é a proporção, por causa da extensão da Amazônia e a tecnologia. Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo.

BBC News Brasil - Quais foram as etapas da destruição da Mata Atlântica que agora se repetem na Amazônia?
Cardim - Primeiro, criar uma motivação econômica para um acesso à floresta. Na época (dos presidentes) Costa e Silva e Médici, nos anos 1970, começa a surgir a ideia da terra sem homens da Amazônia para o homem sem terras do Nordeste. Esse caminho para o interior da Amazônia, que começa com a rodovia Transamazônica, tem como paralelo a entrada das ferrovias no seio da Mata Atlântica por causa do café. A ferrovia entrava e rasgava a Mata Atlântica - vem o eixo de penetração, saem estradas vicinais para saquear a floresta e aproveitar a terra.

É o que está ocorrendo hoje na Amazônia: primeiro vem o cara saquear madeira, depois se faz a queimada para aproveitar o solo, o fogo fertiliza aquela terra e planta-se capim para que o gado pisoteie os entulhos da floresta. Com dois ou três anos, aquela floresta desaparece e vira carbono, e aí entra a soja. No nosso caso, era o café que entrava. Temos registros em Campinas (SP), em 1840, da presença do gado entre ruínas de árvores colossais da Mata Atlântica. Era um modo de domar a terra para o café.

BBC News Brasil - Seremos capazes de frear o desmatamento na Amazônia?
Cardim - Sou otimista quanto à Mata Atlântica, mas não quanto à Amazônia. Acho que não vai dar tempo. A Amazônia vai ser fragmentada antes que as gerações futuras consigam entender a importância dela.

Existe lá um arco de aventureiros -políticos, grileiros - que são incontroláveis. Eles vão fragmentar a floresta antes que a gente consiga mudar a sociedade.

BBC News Brasil - As tecnologias e a legislação para evitar o desmatamento também não avançaram?
Cardim - Com certeza, mas ainda acho que são fracas perante o que está acontecendo lá. O que houve em Rondônia é emblemático. A floresta do Estado sumiu em dez anos. E hoje a última fronteira é o Estado do Amazonas, porque o Pará já foi muito detonado.

Estão derrubando por mais que coloquemos multas. Tem muita gente lá que não tem nada a perder e vai fazer isso acontecer. Talvez, daqui a 40 anos, alguém faça um livro como este que eu fiz contando como a Amazônia foi destruída.

 


Eliane Brum: Os “malucos” sapateiam no palco

Aqueles que não eram levados a sério hoje têm poder atômico e também o de destruir a Amazônia

Nas últimas décadas existiu um consenso de que, diante dos absurdos que eram ditos nas redes e em outros espaços, a melhor estratégia era não responder. Contestar pessoas claramente mal intencionadas e intelectualmente desonestas, em sua busca furiosa por fama, seria legitimá-las como interlocutor, dando crédito ao que diziam. E, assim, servir de escada para que ganhassem mais visibilidade. A frase popular que expressa essa ideia é: “Não bata palmas para maluco dançar”. A eleição de Donald Trump, de outros populistas de extrema-direita e agora de Jair Bolsonaro revelou que este foi um equívoco que vai custar muito caro.

Os “malucos” não só dançaram, como sapatearam. Em seguida, passaram a afirmar seus pensamentos como “verdades” – e verdades únicas. O próximo passo foi conquistar o poder. Hoje os “malucos” não só ocupam os palcos mais centrais como têm o poder atômico de explodir o mundo, como Trump, ou acabar com a Amazônia, como Bolsonaro.

Se a eleição de Trump já havia exposto essa realidade, a de Bolsonaro é ainda mais emblemática. No caso de Trump, ao menos se poderia contrapor que o presidente americano é um bem sucedido homem de negócios, algo bastante valorizado no país do “faça-se a si mesmo”, frase usada para encobrir desigualdades decisivas para o destino de cada um. No caso de Bolsonaro, apesar de ele se apresentar e ser apresentado como “capitão reformado”, o presidente eleito passou os últimos 28 anos como um político profissional com pouca ou nenhuma importância para as grandes decisões do Congresso, ganhando espaço no noticiário apenas como personagem burlesco. Conseguiu se eleger sem sequer participar de debates no segundo turno – ou exatamente por isso –, porque dominava os palcos que importavam para ganhar a eleição.

Bolsonaro, que é chamado de “mito”, é um mitômano

Embora Bolsonaro só assuma oficialmente em janeiro, claramente o governo de Michel Temer acabou em 28 de outubro, quando o deputado se elegeu presidente. Hoje os brasileiros percebem que aquilo que parecia ser um universo paralelo, que só em situações excepcionais cruzava com o real, se tornou o que podemos chamar de realidade. O homem que já governa o Brasil, chamado de “mito” por seus seguidores, é um “mitômano”.

O que sabemos até agora é que Bolsonaro venera três figuras masculinas: Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar e torturador da ditadura (1964-85); Olavo de Carvalho, que se apresenta como filósofo e se popularizou na internet depois de ser colunista da grande imprensa, e Donald Trump. Ustra desponta como a referência ética de Bolsonaro, Carvalho como seu guru intelectual e Trump é seu farol como líder. Por enquanto, temos uma trindade. E, neste ponto, Bolsonaro poderia interromper para afirmar que Deus acima de todos, já que Deus passou a ser um ativo na economia política que tem regido o Brasil atual.

A trindade de Bolsonaro é composta por um torturador, um guru e... Trump

Carlos Alberto Brilhante Ustra já foi amplamente descrito. Ele é reconhecido como torturador pela justiça brasileira e, conforme testemunhos, seria responsável por pelo menos 50 assassinatos. Como torturador, foi capaz de espancar grávidas e de levar crianças para ver o corpo destruído dos pais. Olavo de Carvalho já se manifestou contra campanhas de vacinação, isso num país que assiste a doenças consideradas erradicadas voltarem a ameaçar por baixa cobertura vacinal. Mora nos Estados Unidos desde 2005 e dá cursos de filosofia em vídeos transmitidos pela internet. Em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba, na Folha de S. Paulo, Carvalho assim se manifestou, ao ser perguntado sobre educação sexual nas escolas:

"Quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas. No fim, está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal. O Estado não tem que se meter em educação sexual de ninguém".

A credibilidade não é mais construída por uma reputação baseada em conhecimentos expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade”

A linguagem que o mentor intelectual do novo presidente do Brasil leva para a imprensa formal é a que rege a internet. Não há qualquer base para o que afirma, não há um único caso confirmado de que alguma criança foi ensinada na escola a “dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público”. Isso até hoje não existe como fato. Mas não importa. As afirmações não precisam estar enraizadas em fatos, basta serem ditas. A verdade foi convertida em autoverdade. E a credibilidade não é construída por uma reputação de conhecimentos postos à prova e expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” daquele que a consome.

É “verdade” porque Olavo de Carvalho diz que é verdade o que claramente inventou. E é verdade porque, individualmente, cada seguidor de Olavo de Carvalho decidiu que é verdade. E, desde 29 de outubro, dia seguinte ao segundo turno eleitoral, é verdade também porque Olavo de Carvalho é a referência intelectual do presidente da (ainda) oitava economia do mundo.

A partir de suas autoverdades, Olavo de Carvalho indicou dois ministros do novo governo: o das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, e o da Educação, o colombiano radicado no Brasil Ricardo Vélez Rodríguez. Na mesma entrevista, Carvalho conta o processo pelo qual conseguiu emplacar dois ministros para governar o Brasil:

"Coloquei no Facebook, creio que coloquei também na área de mensagens do Eduardo Bolsonaro (em rede social). Foi tudo. Eu sei que o Bolsonaro lê as minhas coisas e a gente está vendo que leva bastante a sério. Eu fico muito lisonjeado com isso. (...) Sugeri esses dois simplesmente porque me ocorreu na hora".

A conturbada escolha do ministro da Educação explicitou a forma como o novo governo já começou a operar. O primeiro indicado, Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi derrubado pelos evangélicos porque seria “esquerdista”. Em seguida, foi cogitado o procurador Guilherme Schelb, próximo do líder evangélico Silas Malafaia e defensor do “Escola Sem Partido”, projeto que busca censurar conteúdos e professores. Ao sair do encontro com Bolsonaro, Schelb fez a seguinte afirmação à imprensa:

"Eu não posso dar tarefa de casa, como tem sido feito, para criança de 8, 9 anos aprender discussão de gênero, o que é sexo grupal, como dois homens transam? O que é boquete? Isso é uma discussão de gênero, é uma violação da dignidade da criança".

Como a autoverdade dispensa os fatos, Schelb não foi incomodado pelo inconveniente de provar o que diz. Como por exemplo: em quais escolas do país e em quantas escolas do país crianças de 8 e 9 anos estão aprendendo sobre o que é boquete e sobre como dois homens transam? Onde está a tarefa de casa em que uma criança de 8, 9 anos precisa descrever um boquete e como dois homens transam?

A sociedade é levada a acreditar que as salas de aula são uma suruba permanente enquanto o real problema é empurrado para as sombras

Seria preciso perguntar onde isso está acontecendo e em que proporção isso está acontecendo no país. E o procurador precisaria responder. Com provas verificadas. Mas não há necessidade de provar. Basta dizer. Qualquer coisa. E assim vai crescendo no país o número de pessoas que acreditam que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente, quando os reais problemas, o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil, são convenientemente empurrados para as sombras.

Dito de outro modo: o problema inventado se torna mais real do que o problema que de fato existe e que condena milhões de brasileiros às consequências de uma educação falha, limitando seu acesso ao mundo e suas possibilidades de uma vida plena.

Por fim, Bolsonaro acolheu a indicação de seu guru, Olavo de Carvalho: entre as várias crenças de Vélez Rodríguez, o futuro ministro da Educação, está a de defender que 31 de março de 1964, data do golpe que deu origem a uma ditadura de 21 anos, “é um dia para ser lembrado e comemorado”. Também critica a Comissão da Verdade, que apurou as torturas, sequestros e assassinatos cometidos por agentes de Estado durante o regime de exceção: “A malfadada ‘Comissão da Verdade’ que, a meu ver, consistiu mais numa encenação para ‘omissão da verdade’, foi a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”. Nos próximos meses, a sociedade brasileira descobrirá como será ter a área da educação comandada por alguém que frauda os fatos históricos.

O futuro chanceler acusa a esquerda de ser “antinatalista”, mas omite que seu chefe defendeu a esterilização de mulheres para combater a pobreza e o crime

Vélez Rodríguez foi o segundo nome emplacado por Olavo de Carvalho. O primeiro foi Ernesto Araújo. As crenças do futuro chanceler já se tornaram piada internacional. Em seu blog chamado “Metapolítica 17” (número de Bolsonaro na cédula eleitoral), criado para apoiar seu futuro chefe, Araújo afirma que mudança climática é uma “ideologia de esquerda”. Também acusa o PT e a esquerda de “criminalizar o desejo do homem pela mulher, os filmes da Disney, a carne vermelha” e “o ar-condicionado”. Chegou a escrever que o PT “quer impedir que crianças nasçam” porque, para a esquerda, “todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”.

Ao empilhar falsidades, Araújo omitiu uma verdade comprovada e documentada sobre seu candidato e agora chefe: nas últimas duas décadas, Bolsonaro defendeu a esterilização de mulheres e um rígido controle de natalidade como meios para combater a pobreza e a criminalidade. Mas quem se importa com fatos quando seus seguidores acreditam em qualquer mentira que ele disser que é verdade?

O problema é que nenhuma das afirmações escritas do futuro chanceler é piada. Ao contrário. É muito sério. Primeiro, porque Bolsonaro e parte de seu entorno manipulam essas mesmas mentiras. Segundo, porque os seguidores do presidente acreditam que são verdades. Terceiro, porque elas já começam a produzir consequências. O Brasil desistiu de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, em 2019, uma distinção que o governo brasileiro pediu e, dois meses atrás, Michel Temer (MDB) comemorou. Bolsonaro afirmou ter participado desta decisão e feito uma recomendação ao seu futuro ministro, Ernesto Araújo, para evitar a realização do mais importante evento mundial do clima no Brasil.

Está em curso a sexta extinção em massa na trajetória do planeta, a primeira causada pelos humanos

A liderança no debate da crise climática é a única que o Brasil teria as melhores condições para disputar, por ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do aquecimento global. O país é também o mais biodiverso do mundo. Entre 1970 e 2014, a humanidade já destruiu 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis. Desde que os humanos apareceram na Terra, já desapareceram metade das plantas. O continente sul-americano é um dos que mais rapidamente está perdendo biodiversidade. Está em curso a sexta extinção em massa, a primeira causada pelos humanos.

Até a eleição de Bolsonaro, o Brasil tinha um papel de protagonista no debate do clima e da biodiversidade, no cenário mundial. Estes são os dois maiores desafios da atualidade, porque afetam todas as outras áreas, inclusive e muito fortemente o agronegócio. Hoje, em Katowice, na Polônia, é realizada a COP 24. Graças às declarações de Bolsonaro e Araújo, o Brasil é má notícia. Como foi má notícia no final de novembro, durante a Conferência Mundial da Biodiversidade.

Ao aceitar o convite para ser o futuro chanceler, Araújo abriu uma conta no Twitter. Como seu chefe, ele quer falar diretamente com os seguidores. Recentemente, escreveu um texto defendendo que sua indicação representaria um “mandato popular” no Itamaraty. Suas crenças supostamente representariam a vontade do povo no cenário externo. Araújo tenta seguir o mesmo caminho de seu padrinho, Olavo de Carvalho. Falando diretamente com os seguidores e desqualificando qualquer mediador, como a imprensa, a academia e mesmo seus pares, Araújo não precisa provar o que diz nem ter suas afirmações confrontadas com os fatos. Fala sozinho. Mas, para isso ser legítimo, como membro de um governo populista, precisa convencer o povo que fala pelo povo. Ou que o povo fala pela sua boca.

A certa altura, escreve: “E o povo brasileiro? Vocês não se preocupam com o que o povo brasileiro vai pensar de vocês? Sabem quem é o povo brasileiro? Já viram? Já viram a moça que espera o ônibus às 4 horas da manhã para ir trabalhar, com medo de ser assaltada ou estuprada? A mulher que leva a filha doente numa cadeira de rodas precária, empurrando-a de hospital em hospital sem conseguir atendimento? O rapaz triste que vende panos no sinal debaixo do sol o dia inteiro para mal conseguir comer? A mulher que pede dinheiro para comprar remédio, mas na verdade é para comprar crack e esquecer-se um pouco da vida? O outro rapaz atravessando a rua de muletas, com uma mochila toda rasgada às costas, na qual pregou o adesivo do Bolsonaro, talvez sua esperança de dar dignidade e sentido à sua luta diária? O pai de família com uma ferida na perna que não cicatriza nunca porque ele precisa trabalhar três turnos para poder alimentar os filhos? Aí está o povo brasileiro, não está no New York Times”.

Não é porque o chanceler de Bolsonaro não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas

Como Araújo pretende falar diretamente com “o povo”, mas numa via de mão única, em que ele fala e o povo engole, ele prefere não explicar ao povo que são os mais pobres que sofrerão o maior impacto das mudanças climáticas. As pessoas em regiões de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer quando expostas a riscos naturais do que populações equivalentes em regiões de alta renda. Os mais pobres também têm seis vezes mais chances de serem feridos ou de precisarem se deslocar, abandonando suas terras e casas. O Brasil tem perdido mais de 6,4 bilhões de reais por ano com eventos extremos, como tempestades e inundações, provocados por mudanças climáticas.

A crise do clima tanto reflete a desigualdade abissal do Brasil quanto a amplia. São estas mesmas pessoas que Araújo diz conhecer – e seus críticos não – as que vão sofrer mais por ter um chanceler como ele. Não é porque Araújo não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões também no Brasil.

Ao final do texto, o chanceler se trai. Parte do povo, aquela que discorda dele, não entende nada. O chanceler com “mandato popular” diz ao “povo” que ele precisa deixar as decisões para quem sabe e para quem estudou: “Se você repudia a ‘ideologia do PT’, mas não sabe o que ela é, desculpe, mas você não está capacitado para combatê-la e retirá-la do Itamaraty ou de onde quer que seja. Ao contrário, você está ajudando a perpetuá-la sob novas formas. Se a prioridade é extrair a ideologia de dentro do Itamaraty, não lhe parece conveniente ter um chanceler capaz de compreender a ideologia que existe dentro do Itamaraty? Alguém que estuda essa coisa nos livros, há muitos anos, e não simplesmente ouviu alguma referência num segmento do Globo Repórter?”.

Como tudo pode ser muito pior, o Brasil não tem apenas um chanceler desastroso, mas dois. Na semana passada, o presidente eleito despachou um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para bajular Donald Trump, o terceiro personagem de sua trindade. Como ressaltou Matias Spektor, na Folha: “O filho chegou fazendo compromissos numa agenda cara ao governo americano —Cuba, Jerusalém, China e Venezuela. Nada pediu em troca além da deferência americana a Bolsonaro. Como Trump não respeita quem faz concessões unilaterais, a equipe de Bolsonaro desvalorizou o próprio passe. (...) Trata-se de crença irracional que ignora o gosto de Trump por arrancar concessões de seus principais parceiros a troco de nada. (...) Os americanos irão à forra".

Como a Família Bolsonaro pretende conseguir os melhores acordos para o Brasil usando o boné de quem está do outro lado da mesa de negociações?

Ao cumprir agenda oficial em Washington, o filho do presidente usou um boné onde estava escrito “Trump 2020”. Talvez a maioria possa compreender como é constrangedor um representante do presidente eleito do Brasil usar um boné defendendo a reeleição do atual presidente americano. É como se o próprio Brasil estivesse usando um boné de Trump 2020. Como se espera negociar os interesses do país em boas condições a partir desta posição de subalternidade explícita, como se fosse um fã vestindo a cabeça com o nome do seu ídolo? O pai não fez melhor durante a visita ao Brasil do assessor de Trump, John Bolton. Como se fosse um subalterno, bateu continência. E não foi correspondido.

É isso. Os “malucos” estão dançando no palco e não precisam que ninguém dê palco para eles. Nem precisam das palmas de setores que acreditavam ter o monopólio dos aplausos. Ao dançar, afirmam que os fatos são “fake News” e que a ciência é “fake News”. Como estão em posições de poder, e um deles será o próximo presidente do Brasil, os jornais são obrigados a reproduzir suas falas e sua dança.

As universidades serão governadas por eles. A política científica será decidida por eles. A Escola Sem Partido pode virar lei, estabelecendo a censura com a justificativa de combater um problema que não existe. E tudo indica que o SUS poderá ser desmantelado em nome da privatização da saúde. O destino da Amazônia e de seus povos será determinado por aqueles que querem abrir a floresta para exploração.

Quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade?

Ernesto Araújo se tornou uma piada internacional porque suas afirmações são absurdas. Elas não se sustentam quando confrontadas aos fatos. Mas, quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade? Esta é uma pergunta crucial neste momento. E um desafio para o qual precisamos construir uma resposta. E rápido.

Quando já não há uma base comum de fatos a partir da qual se pode conversar, não há linguagem possível. Por exemplo: nas últimas décadas, religiosos fundamentalistas defendem que a teoria da evolução, de Charles Darwin, deveria ser ensinada nas escolas junto com o “criacionismo”, crença pela qual tudo foi criado por Deus. Segundo eles, as duas se equivalem. A questão é que essa afirmação equivale a dizer que uma cadeira e uma laranja são o mesmo. Não são.

A evolução é uma teoria científica, o criacionismo é uma crença religiosa. A primeira foi preciso provar pelo método da ciência. Mesmo se você não acreditar nela, os processos que a teoria da evolução descreve continuarão existindo e agindo. A segunda você pode acreditar ou não e jamais poderá ser provada pelo método científico. As duas não se misturam nem se comparam. Misturá-las faria com que deixássemos de compreender uma parte da Ciência que faz esse mundo funcionar – e faria também com que a dimensão mítica dos textos religiosos se perdesse naquilo que têm de mais poético.

O mesmo vale para a mudança climática provocada por ação humana. Não é uma questão de crença ou de fé. Está provado pelos melhores cientistas do mundo. É tão evidente que a maioria já pode perceber mesmo numa investigação empírica, na sua própria experiência cotidiana. Se o futuro chanceler do Brasil acredita que o aquecimento global é uma “ideologia de esquerda”, o planeta não vai deixar de aquecer por conta da sua crença. Só crianças muito pequenas acreditam que algo vai deixar de existir se elas fingirem que não existe.

Como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar?

Mas, ao tratar fatos como crença – ou como “ideologia” –, tanto Araújo como o presidente eleito podem impedir que o Brasil faça o que precisa para reduzir as emissões de CO2, as principais responsáveis pelo aquecimento global, assim como impedir que o Brasil tome medidas de adaptação ao que está por vir. Temos apenas 12 anos para impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Se passar disso, os efeitos serão catastróficos. É grave que, nestes 12 anos, em pelo menos quatro o Brasil terá no poder pessoas que confundem fatos com crenças. Ou, para seu próprio interesse, afirmam que aquilo que é fato é a “ideologia” dos outros.

A segunda pergunta crucial neste momento é: como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Também precisamos construir uma resposta. E rápido.

A terceira é como devolver o significado às palavras. Por exemplo: uma laranja. De novo. Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir qual qualidade de laranja é melhor, como melhorar a produção de laranjas, de que forma ampliar o acesso de todos ao consumo de laranjas etc etc, mas não podemos discutir se a laranja é uma cadeira ou uma laranja, do contrário não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo o que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possibilidade de comprar ou plantar laranjas, ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que a laranja é cadeira.

Não é uma questão de opinião a laranja ser laranja – e não cadeira. Também não há fatos alternativos. Há fatos. E não há alternativa de a laranja ser uma cadeira. Atualmente, porém, o truque de tratar laranjas como cadeiras para impedir o debate é amplamente utilizado.

Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido, os temas que afetam a vida das pessoas são decididos sem participação popular

Se as palavras são esvaziadas de significado comum, não há possibilidade de diálogo. É o que está acontecendo com a palavra “comunismo”, entre muitas outras. Não há uma base mínima de entendimento sobre o que é comunismo. Então, tudo o que os seguidores de Bolsonaro não gostam ou são estimulados a atacar é chamado de “comunismo”, assim como todos aqueles que eles consideram seus inimigos são chamados de “comunistas”.

O significado de comunismo, porém, foi quase totalmente perdido. E assim a conversa está interditada, porque o que é laranja virou cadeira para uma parte da sociedade brasileira. Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido ou querer ser, os temas que afetam diretamente a vida das pessoas estão sendo decididos sem debate nem participação popular, como, por exemplo, a reforma da previdência.

Os “malucos” que hoje dançam em todos os palcos não são tão malucos assim. Ou, se são, também parecem bem espertos. É claro que há alguns deles que acreditam que, por exemplo, crise climática é “climatismo” ou uma “ideologia de esquerda”, como diz Araújo. Mas a maioria deles sabe que afirmar isso é quase tão estúpido quanto dizer que a Terra é plana. Então, depois de fazer bastante alarme com isso, eles vão para a próxima etapa do roteiro. Qual é?

Enquanto a turma de Bolsonaro faz a dancinha da invasão estrangeira, a Amazônia vai sendo tomada por seus amigos

Afirmar que, sim, é claro que o aquecimento global é um fato, mas “os países ricos já destruíram todas as suas riquezas naturais e agora usam a crise climática para manipular países como o Brasil”. Basta acompanhar as declarações recentes de Bolsonaro e outros do seu entorno para constatar que a estratégia usada para manter os seguidores alinhados será reavivar a falsa acusação de que os indígenas e as ONGs internacionais querem tomar a Amazônia do Brasil. A mentira da ameaça à soberania nacional nunca deixou de se manter ativa na disputa da Amazônia. Mas, em tempos de WhatsApp, pode atingir muito mais gente disposta a acreditar. Já começou.

Enquanto parte dos brasileiros se distrai com a dança dos “malucos”, os ruralistas vão tentar avançar no seu propósito de abrir as terras indígenas para exploração. Não custa lembrar, mais uma vez, que as terras indígenas são de domínio da União. Os indígenas têm apenas o usufruto exclusivo sobre elas. Quando Bolsonaro compara os indígenas em reservas com “animais num zoológico” e diz que os indígenas “querem ser gente como a gente”, querem poder vender e arrendar as terras, ele não está sendo apenas racista.

Ele também está manipulando. A sua turma quer que as terras públicas sejam convertidas em terras privadas, que possam ser vendidas e arrendadas e exploradas. Enquanto fazem a dancinha da invasão estrangeira, a floresta vai sendo tomada por dentro. O nacionalismo da turma de Bolsonaro bate continência não só para os Estados Unidos, mas também para os grandes latifundiários e para as corporações e mineradoras transnacionais.

No futuro bem próximo assistiremos ao que acontece quando um delírio coletivo, construído a partir de mentiras persistentes apresentadas como verdades únicas, é confrontado com a realidade. Às vezes parece que Bolsonaro acredita que tudo vai acontecer apenas porque ele está dizendo que vai. Ele diz, depois se desdiz, aí diz que inventaram que ele disse o que disse. Em resumo: ele diz qualquer coisa e o seu oposto. Em alguns sentidos, Bolsonaro parece uma criança extasiada com o sucesso que faz no mundo dos adultos, com bonés e figurinhas de seus ídolos. Parte do seu entorno, que não é burra, acredita que pode controlar a criança mimada e voluntariosa – e convencê-la a agir conforme seus interesses. Veremos.

Em algum momento, o seguidor de Bolsonaro vai descobrir que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira

O confronto das promessas com o exercício do poder já começou. Como explicar que serão mais de 20 ministérios e não os 15 prometidos? Ou como explicar as consequências de transferir a embaixada para Jerusalém, desrespeitando parceiros comerciais importantes como os árabes? Como lidar com a China, grande importador dos produtos brasileiros, batendo continência para Trump em meio a uma guerra comercial entre as duas grandes potências? Como lidar com os impactos que tudo isso terá na economia e na vida dos mais pobres? Como justificar que postos de saúde poderão ficar sem médicos porque os cubanos foram embora e os brasileiros não querem ocupar os lugares mais difíceis e com menos estrutura? Como lidar com o possível aumento de gestações na adolescência, assim como de Aids e DSTs por falta de políticas públicas de prevenção e educação sexual nas escolas?

A realidade é irredutível. É quando o seguidor descobre que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira. Bolsonaro e sua turma já começaram a experimentar esse confronto. A compreensão ainda não atingiu seus seguidores. Mas atingirá.

Quem se anima com essa ideia, porém, deveria se envergonhar. Quem sofre primeiro e sofre mais numa sociedade desigual são os mais pobres. Se os “malucos” estão dançando no palco é também porque a maioria da população brasileira foi excluída da conversa mesmo na maior parte do período democrático e mesmo na maior parte dos governos do PT. Ainda que Bolsonaro tenha conseguido unir as pessoas em torno não de um projeto, mas de um afeto, o ódio, seu grande número de seguidores se sentiu parte de algo. Desde 2013 já havia ficado muito claro que havia um anseio da sociedade brasileira por maior participação.

Durante parte de sua permanência no poder, o PT também investiu mais nos afetos do que na construção de um projeto junto com as pessoas. Parou de conversar, não achou que precisasse mais das ruas e foi expulso delas em 2013. Depois da corrupção do PT no poder, e não me refiro apenas à corrupção financeira, a esquerda se mostrou incapaz de criar um projeto capaz de unir as pessoas. Isso não é culpa de Bolsonaro. Não adianta acusar o outro de ter um projeto de destruição. É preciso lidar com as próprias ruínas e apresentar um projeto de reconstrução e reinvenção do Brasil que convença as pessoas porque junto com elas.

Se alguém ainda não compreendeu, é o seguinte: para disputar uma ideia de Brasil será preciso, primeiro, ter uma ideia; segundo, convencer a maioria dos brasileiros que este é o melhor projeto para melhorar suas vidas; terceiro, tentar voltar a dançar no palco para recompor a linguagem, restabelecer a importância dos fatos e devolver substância às palavras. Não vai ser fácil.

A maior vitória de Bolsonaro é quando seu opositor fala como ele

Nestas eleições, o Brasil foi esgarçado até quase rasgar. Em alguns pontos, rasgou. Talvez o maior triunfo de Bolsonaro tenha sido interditar qualquer possibilidade de diálogo. Esse processo não foi iniciado por ele nem ele é o maior responsável. Mas, sem bloquear o diálogo, Bolsonaro possivelmente não ganharia a eleição. Hoje, de um lado e outro, as pessoas só sabem desqualificar – e destruir. Aqueles que denunciam Bolsonaro não compreenderam que, ao adotar o mesmo vocabulário e a mesma sintaxe, apenas em sentido oposto, tornam-se iguais. E dão ao seu opositor a maior vitória que ele pode ter. Neste sentido, o do ódio, Bolsonaro unificou o país. Todos odeiam. Não há complemento nesta gramática. Odiar esgota-se no próprio verbo, mas o substantivo destruído é o corpo dos mais frágeis.

Quem quer resistir à redução do Brasil, em tantos sentidos, precisa primeiro resistir na linguagem. Diferenciar-se, também para poder acolher. O único jeito de voltar a conversar é voltar a conversar. Mesmo que para isso tenhamos que falar sobre laranjas e cadeiras.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Bolsonaro quer entregar a Amazônia

Transformar as terras protegidas da floresta em mercadoria é a principal missão do presidente eleito

Ninguém se iluda com o vaivém da fusão ou não do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. É jogo de cena. Bolsonaro pode fingir que é democrata e ouviu a população, especialistas e o suposto agronegócio moderno, fingir que recuou porque escuta, mas o fato é que já está tudo decidido. Não é necessário fundir os ministérios para fazer o serviço sujo de abrir ainda mais a Amazônia para a exploração. Se concluir que é mais conveniente manter o ministério, basta escolher um ministro identificado com o projeto de comercializar a floresta. Quando o populista de extrema direita que, na prática, já governa o Brasil desde 29 de outubro, diz que botará alguém “sem o caráter xiita” à frente da gestão ambiental, é isso que está dizendo. Bolsonaro pode apregoar que não tem compromisso com nenhum partido, mas esta é apenas mais uma bravata. Os fatos mostram que ele deve bastante do sucesso de sua candidatura a dois grandes “partidos” não formais e poderosos, com atuação fora e dentro do Congresso: os ruralistas e os evangélicos. Essa conta ele vai ter que pagar. E, dado o seu perfil, vai pagar com gosto. A conta dos ruralistas é a Amazônia. E o que ainda resta do Cerrado.

O problema, e este é um enorme problema, é que todos pagaremos muito caro pela operação na Amazônia que Bolsonaro e seus articuladores já anunciaram de várias maneiras. Muitos com a vida. E não apenas a vida dos que morrem à bala, mas a vida dos que morrerão pelos efeitos da mudança climática. Há algumas coisas que quem ainda não entendeu precisa entender agora, já, se não quiser continuar fazendo papel de bobo.

Bolsonaro quer transformar o que é terra pública protegida em terra privada comercializável

As terras dos indígenas são terras públicas, de domínio da União. São minhas, são suas, são do país. Os indígenas, segundo a Constituição de 1988, que é a constituição da democracia, têm apenas o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais. Podem viver nelas e delas, sem destruí-las, mas não podem fazer negócio com elas. Estas terras não são, portanto, mercadoria. Este é o ponto.

São muitos os fogos de artifício lançados por Bolsonaro, mas é na Amazônia que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados

Tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazônica em mercadoria. Este é o trabalho prioritário de Bolsonaro para uma parcela poderosa dos articuladores de sua candidatura. Por uma razão bastante objetiva: é na Amazônia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais.

Basta acompanhar os números da agropecuária, especialmente a partir dos anos 90, para constatar como tem crescido a importância da região amazônica para o gado e para a soja. Só de bois já são 85 milhões, três bois para cada humano. Também basta checar o congestionamento de pedidos de licenças de mineração na floresta. A Amazônia é a região do Brasil onde o capitalismo ainda vê espaço para a exploração predatória num país que vem sendo dilapidado desde as capitanias hereditárias. Enquanto Bolsonaro e seus estrategistas criam jogos de cena e fogos de artifício em outras áreas, é na floresta que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados.

Os indígenas têm sido tratados como “entraves para o progresso” – ou para “o desenvolvimento” – há vários governos, inclusive os do PT. Porque os indígenas são de fato “entraves”. Mas entraves para a destruição da Amazônia. De novo, basta olhar os mapas e os números. É nas terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, onde a floresta está mais preservada. Como o direito ao usufruto das terras ancestrais é garantido pela Constituição, os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria.

Há uma mudança recente na estratégia de desqualificação dos indígenas. Em anos anteriores, a campanha que buscava tirar a legitimidade do seu direito às terras ancestrais concentrava-se em convencer a população que: 1) os indígenas teriam terras demais; 2) uma parcela dos indígenas seria composta por falsos indígenas ou, como chegaram as ser chamados, “indígenas paraguaios”. Ser índio e usar celular ou uma camiseta da seleção brasileira era propagandeado como incompatível por aqueles que querem botar a mão em suas terras. Os indígenas eram tratados como uma espécie de estrangeiros nativos, uma contradição em si, mas vista como normal por uma parcela dos brasileiros.

Houve uma mudança de tática para botar a mão na terra dos indígenas: de “índio falso” a “ser humano como nós”

Bolsonaro tem uma expressão estúpida, claramente não é um leitor assíduo, os olhos perseguem cursos erráticos quando fala, mas ele não é burro. Ninguém passa 28 anos no Congresso e mesmo assim consegue se vender como “não político” e “antissistema” e se eleger presidente, sem alguma inteligência. Talvez aqueles do seu círculo que pensam manipulá-lo facilmente terão alguma surpresa. Mais espertos ainda são aqueles que estão ao redor dele, dentro e fora do país, sustentando seu projeto autoritário.

Essa esperteza marca a mudança de tática de Bolsonaro com relação aos indígenas durante a campanha e também após eleito. O discurso passa a ser o de que “o índio é um ser humano como nós”. O que é óbvio e que jamais precisaria ser dito não houvesse uma intenção oculta. Segundo Bolsonaro, o indígena quer “empreender”, quer “evoluir”. O que significa isso? Significa, como Bolsonaro já explicou, que os indígenas deveriam ter o direito de vender e arrendar a terra, algo que está em curso no Governo e no Congresso há bastante tempo.

Os indígenas supostamente gostariam de ser como os brancos. Mas ser como brancos em qual sentido? No sentido de poderem tornar a terra mercadoria, uma característica intrínseca “dos brancos”. E então a terra pode ser vendida e aberta à exploração. “Evoluir” e “empreender”, no entendimento de Bolsonaro, é dar à floresta o mesmo status que um carro, uma mesa, um celular ou um pirulito. Mas, atenção. O presidente eleito também diz: “Os índios não querem ser latifundiários”.

Não é difícil adivinhar quem vai comprar as terras ou explorar suas riquezas. É bastante esperto o discurso de “ser humano como nós”, que converte o que é sequestro das terras dos indígenas em um “direito” dos indígenas a poderem fazer o que querem com elas, inclusive e principalmente vendê-las, arrendá-las ou abri-las para exploração. Assim, o que hoje é terra pública – minha, sua, do país – passaria para a mão privada de poucos.

Esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousseff já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo de Lula. Figuras como Kátia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que, até 2016, quando foi afastada por um impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas.

Já com os quilombolas, povos muito mais frágeis que os indígenas, a estratégia empregada para avançar sobre as suas terras ainda é a antiga. Por que Bolsonaro falaria tanto em quilombo e quilombolas durante a campanha? Porque um de seus serviços no poder é botar a mão nas terras a que os descendentes de escravos rebelados têm direito constitucional.

Bolsonaro se vende como alguém de língua solta, mas ele é um homem que calcula e sabe por que lança frases racistas para consumo midiático

Como as terras dos indígenas, as dos quilombolas já deveriam estar demarcadas, mas há uma grande parcela que ainda não está. Como o Brasil é um país estruturalmente racista e, nos últimos anos, o protagonismo negro alcançado com medidas como as cotas raciais nas universidades incomodou muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro, desqualificar os quilombolas se revelou um caminho mais fácil. Sem contar que os quilombolas têm muito menos expressão internacional e ecos no imaginário do que os indígenas.

Quando Bolsonaro escolhe contar sobre uma visita a um quilombo na palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, não é algo que surge do nada na sua cabeça, como parece à primeira vista. Ele está calculando. Quando ele diz que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, seguida por “nem para procriar servem mais”, ele não está sendo apenas o racista habitual. Ele está calculando. E atingindo o alvo, preparando-se para “legitimar” para a opinião pública a futura retirada de direitos dos quilombolas às suas terras.

Depois de ter sido denunciado por racismo, Bolsonaro mudou de tática e uniformizou o discurso: “Eles (os quilombolas) querem ser libertos. (...) Acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda, opinião minha. Se quiser explorar, tirar minério, ter maquinário, a exemplo do seu irmão fazendeiro do lado...”. É fundamental prestar atenção na operação de linguagem para botar as mãos nas terras ancestrais: o indígena “é ser humano como nós”, o quilombola quer ser “liberto”. Para tornar-se humano como nós e ser liberto tem que ter o “direito” de vender as terras hoje protegidas. O complacente Supremo Tribunal Federal absolveu Bolsonaro da denúncia de racismo pouco antes da eleição.

O discurso da “indolência” e da “malandragem”, associado a indígenas e negros, também aventado por seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, é o capítulo anterior ao capítulo do “ser humano como nós”. Ambos estão no manual sobre como transformar terras públicas protegidas em terras privadas exploradas por poucos. O capítulo introdutório, como todos sabem, é o extermínio direto dos povos da floresta, seguido pelo dos negros. As três estratégias ainda convivem simultaneamente no Brasil, como os números de assassinados mostram. Mas, no mundo globalizado, é sempre melhor evitar o sangue e eliminar os corpos de uma maneira mais “limpa”.

E esta maneira será tentada primeiro dentro da lei, também no governo populista de extrema direita de Bolsonaro. Esta é uma característica dos governos autoritários que estão sendo produzidos dentro da democracia. Basta olhar para outros casos do mundo. Bolsonaro vai intensificar e acelerar o que já vinha acontecendo nos últimos anos. O “novo” Código Florestal, um tremendo retrocesso na proteção do meio ambiente, é um exemplo. Mas talvez o exemplo mais cristalino seja o daquela que foi chamada de “Lei da Grilagem”.

Grilagem, como se sabe, é o roubo de grandes porções de terras públicas. Houve casos de “grilos” maiores do que países da Europa na floresta amazônica. Por muito tempo, a grilagem foi feita na base da pistolagem. Ainda é. Mas também vem sendo feita na base da lei. Em julho de 2017, Michel Temer (MDB) sancionou uma lei “regularizando” terras públicas que foram tomadas até 2011 no limite de 2.500 hectares, o equivalente a 57 Vaticanos. Bastava expandir a produção de “laranjas”, legalizando de 2.500 em 2.500 hectares, para tornar legal o roubo de enormes porções de floresta.

Enquanto for possível, a barbárie será consumada dentro da lei; depois, pode valer a alternativa de Mourão

Esta foi a “Lei da Grilagem número 2”. A “Lei da Grilagem número 1” é de 2009, ainda no governo Lula (PT), quando foram “regularizadas” terras públicas ocupadas até 2004, no limite de 1.500 hectares. Ou seja: a “lei” foi só melhorando para os ladrões de terras públicas. Em seguida, eles passam a ser chamados de “fazendeiros”, “desbravadores” ou representantes do “agronegócio”. São duas as operações: uma no plano da lei, outra no plano da linguagem. “Regularizar”, em vez de “legalizar”, arranca pela linguagem o caráter criminoso da operação de grilagem, responsável pelo maior número de mortes no campo e na floresta.

É também por esse caminho que a Amazônia vem sendo destruída. Assim como não foi o PT que inventou a corrupção no Brasil, também não será Bolsonaro que inventará a legalização do crime de grilagem. Essa operação já vem acontecendo há muito, se acelerou enormemente no governo Temer e deverá ganhar proporções inéditas no governo de Bolsonaro. Tudo dentro da lei. A princípio. E enquanto for possível. O judiciário já deu provas contundentes de que não é capaz – e em muitos casos não deseja – barrar essa operação de legalização do crime.

Para botar a mão na terra ancestral dos indígenas, porém, é mais complicado. O agrobanditismo vem atacando por vários flancos. Um deles é o que chamam de “marco temporal”. Sempre colocam um nome esquisito, que pouco diz para a maioria, para confundir a população. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada.

Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. Mas esta é uma maneira “legal” de consumar algo criminoso. E assim impedir a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.

Bolsonaro já declarou que não vai “demarcar nem um centímetro a mais de terras indígenas”. A aprovação da tese do “marco temporal” é só uma das maneiras e depende do Supremo Tribunal Federal, este que o filho do presidente eleito disse que “basta um cabo e um soldado para fechar”. Talvez nem isso, já que o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já se submete ao autoritarismo por gosto pessoal, como quando fraudou a história ao dizer que o período de 21 anos de regime de exceção no Brasil não foi ditadura, mas um “movimento”.

O “marco temporal” é uma das estratégias legais para roubar os direitos dos indígenas determinados pela Constituição de 1988

Na segunda-feira, na mesma entrevista para a TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou suas intenções e deixou claro com qual parte da população tem compromisso: “Afinal de contas, temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. O presidente eleito tenta vender a falsa ideia de que as terras indígenas é que são “novas” e que o fazendeiro, que já as ocupou sabendo disso, é “surpreendido” pela notícia. Sem contar que o processo de demarcação é longo e criterioso, impossível de representar qualquer surpresa para quem invadiu terras indígenas ou foi lá colocado por projetos de governos passados.

A aprovação do marco temporal ajudaria a evitar novas demarcações de terras, mas não resolveria o problema das terras já demarcadas. Para abrir a Amazônia para a exploração do agronegócio e da mineração, além de estradas, ferrovias, pontes e hidrelétricas, Bolsonaro vai ter que mudar a Constituição de uma forma mais radical. Por isso o general Mourão, sempre falando na hora errada, já antecipou em setembro uma “nova Constituição”, feita por uma “comissão de notáveis”. Uma Constituição sem povo, portanto.

Como a declaração produziu mal-estar, Bolsonaro, notável por sua delicadeza de linguagem e de gestos, afirmou que “faltou um pouco de tato” ao seu general. O que significa isso? Que não era hora de mencionar a intenção. Nem era a forma de sugeri-la. Se não conseguir mudar a Constituição ou fazer uma nova Constituição, sempre há o que o mesmo Mourão já antecipou: a possibilidade de um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.

Alguns indicativos sobre o que está em curso. Em pesquisa recente, a antropóloga Ana Carolina Barbosa de Lima e os biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado mostraram que os municípios amazônicos que mais desmataram desde 2000 teriam elegido Bolsonaro já no primeiro turno. Nos municípios bolsonaristas, a média do desmatamento foi duas vezes e meia maior do que nos municípios que preferiram Fernando Haddad (PT). Segundo o Observatório do Clima, dados do Deter B, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora a Amazônia em tempo quase real, a taxa de desmatamento subiu 36% entre junho e setembro, período da pré-campanha e campanha eleitoral.

No governo Temer, o agrobanditismo está no poder. No governo Bolsonaro, eles serão o poder

Na Amazônia, fazendeiros e grileiros já apoiavam Bolsonaro quando a maior parte dos brasileiros ainda duvidava que ele seria capaz de vencer a eleição. Assim como muitos dos prefeitos do PSDB da região, que nunca cogitaram votar em Geraldo Alckmin. Também será interessante observar como Bolsonaro, que mesmo antes de assumir já está de namoro avançado com Donald Trump, vai lidar com os interesses da China, cada vez mais presente na floresta e uma das principais importadoras de soja do país.

É na Amazônia que vai se dar a disputa do governo de Bolsonaro. O Brasil já é o país mais mortal para defensores do meio ambiente, segundo a organização Global Witness, e o estado amazônico do Pará é o lugar mais letal do planeta. O “agronegócio” superou a mineração como causador das mortes. Todas as variáveis apontam que esta violência vai se multiplicar com Bolsonaro. Até o governo Temer o agrobanditismo estava no poder. Agora, ele será o poder. E com autorização para matar dada pelo próprio presidente, em suas várias manifestações durante a campanha.

A Amazônia pode parecer longe para a maioria dos brasileiros. Mas nada afetará mais o futuro próximo de todos do que o destino da floresta. No Brasil, a agropecuária e o desmatamento, ambos relacionados, são as principais fontes de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Em outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertaram que a humanidade tem apenas 12 anos para limitar o aquecimento da Terra em 1,5 graus Celsius. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Sem a maior floresta tropical do mundo em pé não será possível atingir essa meta. É por isso que Bolsonaro se tornou também uma ameaça para o planeta. Para enfrentar a crise climática e recuperar a floresta seria necessário um presidente com ideias opostas às de Bolsonaro.

Somente a Bacia do Xingu, segundo monitoramento do Instituto Socioambiental, teve 150 milhões de árvores derrubadas em 2018, e o ano ainda nem acabou. A floresta amazônica chega aos dias atuais já desmatada em cerca de 20%. Um estudo publicado no início deste ano na Science Advances, assinado por cientistas de renome internacional, o americano Thomas Lovejoy e o brasileiro Carlos Nobre, mostrou que a floresta alcançará um “ponto de inflexão” se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%. A partir daí, a Amazônia sofreria mudanças irreversíveis, tornando-se uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade.

Se a eleição de 2018 foi brutal, pelo resultado e pela decepção com os políticos de centro-esquerda, graças à sociedade civil democrática também foi uma das mais belas campanhas da história

Estamos muito perto deste ponto de não retorno. E Bolsonaro ainda nem assumiu oficialmente. Querendo ou não, gostando ou não, acreditando ou não, estamos todos implicados neste futuro bem próximo. Os sinais estão todos aí para quem é capaz de ver. Mas, se preferir não ver, também não vai adiantar nada. É rápido. É no tempo da sua vida e na da vida de seus filhos. E não é porque a gente finge que não existe que a crise climática vai deixar de existir.

Eleger Bolsonaro foi a pior ação para o Brasil e para o planeta. Mas está feito. A pergunta agora é: o que faremos para resistir ao que está por vir e proteger a floresta e com ela a nossa vida? A eleição de 2018 revelou algo duro, mas importante: os candidatos estavam aquém da população. Primeiro, Lula e o PT mostraram-se incapazes de articular uma candidatura de centro-esquerda que pudesse vencer o projeto autoritário. Depois, Ciro Gomes e Marina Silvaprovaram-se incapazes de subir no palanque do segundo turno para defender a democracia.

Mas as pessoas se moveram. Apesar da brutalidade de, mesmo assim, ter sido eleito um defensor da ditadura e da tortura, esta foi uma das campanhas mais bonitas da história recente. Poucas cenas são tão memoráveis quanto a de pessoas anônimas, sozinhas, que na tentativa de virar o voto para o projeto democrático, levantaram um cartaz no centro das cidades dizendo: “vamos conversar?”.

É dessa força que precisamos agora para, unidos com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, lutarmos pela Amazônia e pela vida de todos. Mesmo que os eleitores de Bolsonaro não sejam capazes de perceber, resistir ao projeto destruidor da floresta já anunciado pelo presidente de extrema direita é também lutar pela vida deles e de seus filhos.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum