Alfredo Maciel da Silveira

Alfredo Maciel da Silveira e Sergio Augusto de Moraes: Os 101 anos da revolução russa e o capitalismo em transformação

Ao nos defrontarmos com a busca das vias de superação do capitalismo neste século, tateando o terreno movediço do presente e vislumbrando tendências do futuro, seria um erro não ter em conta a recente experiência histórica do século XX.

O grande marco histórico do século XX foi a revolução russa de 1917, que completa 101 anos neste dia 7 de novembro.

A propósito trazemos citação do artigo de Sérgio Augusto de Moraes, “A Revolução Russa de 1917 – Erros, Acertos e Ensinamentos”, uma das publicações deste blog no ano passado por motivo do centenário daquela revolução. A partir daquela experiência histórica o autor descortina e põe em debate questões para a construção de um futuro socialista:

Qualquer observador no século XXI não terá dificuldades para encontrar críticas, umas poucas sérias mas em geral descabidas, sobre o que se fez na URSS entre 1917 e 1991. Difícil é encontrar alguém que aponte seus êxitos e ensinamentos fundamentais para quem pensa em construir um futuro não capitalista: a revolução socialista não pode abrir mão da democracia mais avançada, ela só poderá se desenvolver em uma série de países de capitalismo de ponta cuja força seja capaz de impedir seu sufocamento pelo que restar de capital internacional, ela deverá se apoiar nas classes e camadas que já tenham desenvolvido uma forma de viver internacionalista, o planejamento e a distribuição da produção e do lazer deverá ser obra de toda a sociedade, um novo tipo de ética entre o homem e a natureza deverá abrir espaço, etc, etc. São incontáveis os ensinamentos que se pode tirar dos erros e dos acertos da Revolução de 17 e da construção da URSS.

Permeando as questões acima citadas há que se ter em conta as transformações que o capitalismo sofreu desde meados do século passado e que, com o fim do chamado “socialismo real” ganharam uma velocidade estonteante; referimo-nos em particular às alterações no mundo do trabalho e da cultura tais como a automação, a globalização, as formas de aprendizado, etc.

Na verdade, desde fins do século passado assiste-se à confluência de dois processos. Ao processo inovativo, característico do secular capitalismo industrial e plenamente institucionalizado em sua fase monopolista, superpõe-se a onda devastadora do novo “capitalismo da informação” (na acepção analisada por Tessa Morris-Suzuki[1]), a deslocar o foco da produção de bens para a da produção de conhecimento.

A partir do último quarto daquele século deflagrou-se a larga onda de revolução tecnológica que prossegue em nossos dias, a refazer toda a base produtiva, os meios e formas de vida humanas, a estrutura social e o ambiente cultural. Na produção e nos serviços ao nosso redor, inclusive na vida doméstica, assiste-se à introdução da robótica e da chamada “inteligência” artificial, a apontarem tendência à automação radical da produção de bens e serviços e com esta a eliminação do trabalho vivo material nas linhas de produção e no setor terciário, tal como historicamente vicejou sob o clássico paradigma do capitalismo do século XX.

Prossegue e exacerba-se o processo inovativo, inclusive aquele inerente à própria onda de destruição criativa da revolução tecnológica, centrado em atividades nas quais a energia humana vertida em trabalho desloca-se intensamente do campo material para o imaterial (como exemplos deste, as atividades de planejamento, pesquisa, projetos, etc.). Mais importante do que a tendência à automação, a novidade é trazida pela revolução informacional contemporânea. A escala e abrangência generalizada e pervagante adquirida pelo conhecimento como insumo da produção, e as diversas peculiaridades econômicas e morfológicas deste insumo, seja como bem livre, seja como mercadoria,traz a debate as mutações do sistema produtivo e das relações de produção, reiterando antigas questões sobre as formas de apropriação do valor criado, e da distribuição da renda e da riqueza social.

Note-se que em sua evolução, as categorias do conhecimento e da informação tornam-se “irmãs siamesas” porquanto em regra geral, a circulação da primeira é necessariamente mediada pela segunda.

Em seus dois artigos seminais dos anos 80[2] a citada autora realça que a verdadeira essência das transformações então em curso nos anos 80 não estava simplesmente na tendência à automação, mas sim na passagem da produção de bens para a de conhecimento-informação como mercadoria.

A autora analisa em profundidade a existência de amplo estoque de conhecimento social livre, portanto sem um preço, cuja apropriação desigual pelo poder assimétrico das grandes empresas permite-lhes a produção de novos conhecimentos, estes sim de caráter privado e destinados a venda no mercado, portanto mediante um preço.

Ao longo de todo o seu artigo, a autora problematiza os limites da teoria marxista tradicional do valor-trabalho para dar conta dessas condições contemporâneas em que parte significativa dos lucros provem da produção e venda da mercadoria conhecimento, tendo por insumos outros conhecimentos socialmente gerados desde fora do trabalho direto na linha de produção. Remete-se inclusive ao Marx dos “Grundrisse”, que antevia um mundo da exploração da força de trabalho social, generalizada, e não mais a dos trabalhadores diretamente no processo produtivo.

Por essa linha de argumentação a autora chega ao ponto central de sua tese das mutações que conduziram a um “capitalismo da informação”, onde há esferas de exploração de valor criado pelo trabalho para alem do circuito de produção. E sumariza:[3]

(…)O capitalismo, em outras palavras, é um sistema dinâmico, capaz de assumir muitas distintas formas em diferentes contextos históricos. O capitalismo industrial, baseado na exploração direta da força de trabalho industrial, é transmutado pelo processo de automação num novo sistema onde a exploração crescentemente abrange todos aqueles envolvidos na criação do conhecimento social e sua transmissão de geração a geração. Contra a idéia de uma sociedade pós-industrial ou “sociedade da informação”, que teria se tornado pós-capitalista de forma espontânea e indolor nós podemos contrapor a idéia de “capitalismo da informação" onde altos níveis de automação e informatização da economia coexistem com novas e alargadas esferas de exploração das maiorias pelos poucos.

Na parte final da exposição a autora analisa em mais detalhe:

1)o conhecimento social como fonte de lucro privado;

2)as relações de trabalho que asseguram o controle da informação pelas grandes corporações privadas e, finalmente;

3) o novo contexto social que deve embasar a ação política transformadora.

Eis um vislumbre da contribuição que nos trouxe Tessa Morris-Suzuki para a compreensão do capitalismo contemporâneo à luz do método de Karl Marx.

Assim como ela outros intelectuais com formação semelhante têm contribuído para, como dissemos acima, vislumbrar as tendências do futuro e tecer as malhas de uma nova sociedade.

Portanto, com a herança crítica da revolução russa e dos pioneiros do século XIX, e tendo presente que o conhecimento se completa e avança pela prática daquela ação política transformadora,... “mãos à obra”!

Notas:

[1]Tessa Morris-Suzuki, New Left Review, I/160, Novembro-Dezembro 1986.

[2] O artigo já referido de 1986, dera sequência ao debate suscitado pelo primeiro artigo, de 1984: “Robots and Capitalism”, New Left Review 147, setembro/outubro, 1984.

[3] Tradução dos autores, do original em inglês.