Albert Camus

Luiz Carlos Azedo: A peste

É inevitável uma analogia com a situação que o nosso país está vivendo

Obra prima do escritor e filósofo franco argelino Albert Camus, o romance A Peste, publicado em 1947, conta a história de uma epidemia que assola Oran, pequena cidade argelina, cujos habitantes levam uma vida monótona até o flagelo dizimar considerável porcentagem da população. O livro é uma alegoria da ocupação nazista e do colaboracionismo na França durante a guerra, que causou grande polêmica entre os intelectuais franceses na década de 1940. O autor foi agraciado com Premio Nobel de Literatura em 1957. Morreu em 1960, aos 47 anos, em um desastre de automóvel.

A peste bubônica, uma zoonose causada pela bactéria Yersinia pestis, é transmitida ao ser humano pelas pulgas dos ratos pretos. A bactéria entra por meio de invisíveis quebras na integridade da pele, espalhando-se para os gânglios linfáticos, onde se multiplica. Em poucos dias surge febre alta, mal-estar gastrintestinal e gânglios linfáticos hemorrágicos e edemaciados devido à infecção. Formam manchas-se escuras na pele e as bactérias invadem a corrente sanguínea, onde se multiplicam, causando hemorragias sépticas em vários órgãos.

“Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada” — assim começa a narrativa da invasão que quebrou a monotonia da pequena cidade. “Foi mais ou menos nessa época que nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois, a partir do dia 18, as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois a agonia era demasiado longa. Mas, desde os bairros exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde o Dr. Rieux passava, por toda parte onde nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas”, continua.

“A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrer em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor-de-sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados e pútridos; outros, rígidos e com os bigodes ainda eriçados (…) Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade”, descreve Camus.

No livro póstumo Quando os fatos mudam, o historiador britânico Tony Judt revisita a obra do escritor francês, ao fazer resenha da tradução para o inglês de Robin Buss publicada pela famosa editora Penguin. Judeu, reconstitui o grande incômodo que o livro causou aos intelectuais franceses quando foi lançado e atribui o fenômeno à insistência do escritor em “situar a responsabilidade moral individual no centro de todas as escolhas públicas”. Camus é um moralista, mas não é um moralizador. Distingue claramente a diferença entre o bem e o mal, porém, trata com certa compaixão os que duvidam e aceitam fazer concessões, pelos motivos e erros de uma humanidade imperfeita. Ao mesmo tempo, revela desprezo pelos que relativizam as situações ou trocam de opinião de acordo com as conveniências do momento.

Zona cinzenta

Autor de outros romances famosos, como O estrangeiro e O homem revoltado, Camus era um mito por causa da participação na Resistência, como editor do diário clandestino Combat, que continuou a circular depois da França libertada. Seus editoriais formavam a opinião da esquerda francesa. Mas foi muito criticado por Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre por causa da “moderação e tolerância desiludidas” que revela na alegoria de A Peste. Quando o livro foi publicado, os franceses começavam a esquecer os constrangimentos e as soluções de compromissos dos quatro anos de ocupação alemã. O marechal Philippe Petain havia sido julgado e preso, outros colaboracionistas haviam sido executados, e cultivava-se o mito de uma gloriosa resistência nacional, alimentado por políticos de todos os matizes, do marechal Charles De Gaulle ao líder comunista Maurice Thorez.

Camus era um herói nacional, mas não gostava da apologia à Resistência e atribuía à inércia e à ignorância a incapacidade de ação da maioria dos franceses durante a ocupação nazista. Judt destaca que, em condições extremas, raramente encontramos categorias simples e reconfortantes de bem e mal, culpado e inocente. Os personagens de A Peste mostram que as pessoas “podem vir a fazer a coisa certa a partir de uma combinação de motivos e podem, com a mesma facilidade, cometer atos terríveis com a melhor das intenções — ou sem intenções de tipo algum”. Citando Camus, Judt destaca que o bacilo da peste nunca morre ou desaparece inteiramente e pode chegar o dia em que “a peste convocará seus ratos e os enviará para morrer em alguma cidade que se mostre satisfeita consigo mesmo”. É inevitável uma analogia com a situação que o Brasil está vivendo. Quantos foram cúmplices, omissos ou prevaricaram?

Luiz Carlos Azedo é jornalista


Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-peste/