Ainda estou aqui
Dia 2 de março tem final de Copa do Mundo no domingo de Carnaval
Lilia Lustosa, crítica de cinema
É real! Brasil está nomeado ao Oscar 2025 em 3 categorias: Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz e Melhor Filme. Isso mesmo: Melhor Filme e ponto, concorrendo contra candidatos originários dos Estados Unidos, Reino Unido, França e Canadá. Feito histórico para o nosso país, que, pela primeira vez, tem um longa-metragem no topo da premiação de maior prestígio nos Estados Unidos, quiçá no mundo.
E, por mais se diga que isso não importa, que prêmios não são o mais importante, que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana – The Academy – está há muito vendida e tantas outras falas que repetimos anualmente por estarmos sempre fora do palco, no fundo, no fundo, o que (quase) todo brasileiro sonha é em ver um filme nosso oscarizado. Sonha em escutar um discurso de agradecimento feito em nosso tão belo idioma ou, no mínimo, em um inglês com aquele charmoso sotaque brasileiro.
A festa verde e amarela tem então dia e hora marcados: 2 de março, às 20h (hora Brasília), em pleno domingo de Carnaval. Carnaval que terá jeitão de final de Copa do Mundo, com o país inteiro torcendo por Walter Salles, por Fernanda Torres, por Selton Mello, pelo cinema brasileiro e, mais que tudo, pelo Brasil.
Mas quais são nossas verdadeiras chances?
Muito honestamente, a chance de ganhar Melhor Filme é diminuta, já que estamos aqui em uma categoria com candidatos de peso, bancados pelas maiores empresas da indústria cinematográfica atual, como a A24, a Netflix, Amazon, Mubi, Universal e outras. Muita "gente grande” que investe milhões nessa disputa e que não quer ir para casa de mãos vazias. Porém, o fato de Ainda Estou Aqui ter sido indicado nessa categoria, pode nos ajudar a levar a estatueta de Melhor Filme Internacional, desbancando o Emilia Pérez, de Jacques Audiard, que também concorre na categoria principal. O longa do conceituado diretor francês é, aliás, o campeão de indicações, com treze no total, apesar da polêmica que vem causando na América Latina. Uma obra que tem seus senões, mas que tem também o seu valor, e muito valor. Mas isso é assunto para outro artigo.
Com relação à qualidade do nosso filme comparado aos demais internacionais, ou seja, analisando os quesitos “arte e ciência”, é difícil traçar aqui uma análise honesta sem ter assistido a todos os candidatos. Deles, só vi até agora Emilia Perez e A Semente do Figo Sagrado. Gostei muito de ambos, mas ainda acho que o prêmio pode vir para o Brasil, já que Walter Salles conseguiu em seu filme contar uma história que se conecta com pessoas de todo o mundo, fruto da sábia decisão de deixar o contexto da ditadura como o pano de fundo para exaltar a mulher Eunice Paiva. O foco são as dores e as transformações vividas por essa mãe de cinco filhos que, de uma hora para outra, se vê obrigada e arregaçar as mangas e tomar as rédeas da casa, da vida, da vida dos filhos, acumulando as funções de pai e mãe, em um período sombrio vivido por nosso país. Um filme que é, antes de tudo, uma história de uma guerreira que lutou no anonimato e que só agora surge em cena (para nós, claro) dando uma verdadeira lição de força, coragem, determinação e resiliência para o mundo.
Na categoria Melhor Atriz, são boas também as chances de Fernanda Torres. E olha que nessa, vi quase tudo, só me falta Wicked… A razão para esta afirmação é, em primeiro lugar, sua atuação espetacular, feita na medida do necessário, com tanto sendo dito com apenas um olhar, um gesto, uma fala em voz baixa… Em segundo lugar, pela campanha maravilhosa que vem sendo feita pela equipe do filme mundo afora, incluindo a Globoplay e a Sony. Lembrando aqui que cinema, sobretudo em Hollywood, é também – e mais do que tudo – business. O que exige uma bela estratégia de promoção se se quiser ter uma mínima chance de competir.
As maiores oponentes de Fernanda serão Demi Moore que, assim como a brasileira também levou o Globo de Ouro de Melhor Atriz, só que na categoria Musical/Comédia, por Substância, um filme que, aliás, de comédia e de musical não tem nada. E Karla Sofia Gascón, primeira atriz trans a ser indicada ao prêmio, e que, aparecia quase sempre como a favorita em muitas enquetes, mas cuja campanha vem sofrendo um bocado desde que vazou para a imprensa que sua voz teria sido ajustada por Inteligência Artificial. Outro tema que vale um artigo!
Diante do exposto, e deixando ufanismos de lado, repito que Fernanda Torres tem muita chance de levar esse prêmio e, mais que tudo, ela MERECE o prêmio de Melhor Atriz de 2025, uma vez que sua atuação foi a mais brilhante da temporada, tendo sido capaz de expressar sentimentos diversos de uma pessoa “comum”, sem jamais recorrer ao exagero, ao piegas, ao melodrama. Uma atuação pontente, forte, justa e elegante, como a personagem que ela retrata tanto merece.
Em tempos escassos de ídolos e de celebrações em nosso país, Fernanda - Eunice virou a Pelé - Senna do Brasil e, certamente, vai alegrar o nosso domingo 2 de março.
Análise | Globo de Ouro, ainda estamos aqui
Lilia Lustosa*
Estamos anestesiados. Paralisados de tanto orgulho. Chocados pela justiça tão rara na indústria hollywoodiana. Extasiados por aqueles poucos segundos que vão deixar uma marca profunda na história do nosso cinema. Embriagados pela vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, prêmio concedido pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Reflexo imediato de um eterno complexo de vira-lata? Costume de colonizados? Ou simplesmente hábito de sermos constantemente inviabilizados, fora e dentro de nosso próprio país?
A atriz brasileira chegou mesmo a confessar que estava feliz pelo simples fato de estar ali entre as indicadas. Uma fala bastante comum entre os artistas brasileiros… infelizmente. É chegada a hora de mudar esse discurso!
Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, de fato não repetiu a dose de 1999, ao levar o Globo de Ouro de Melhor Filme Internacional, como aconteceu com seu belíssimo Central do Brasil, de 1986. Mas Fernanda Torres, neste 2025, redimiu sua mãe, que naquele ano deixou escapar o que seria nossa primeira estatueta dourada de Hollywood, prêmio este que foi parar injustamente nas mãos da sem-graça Gwyneth Paltrow. Fala sério!
Fernanda Montenegro - nossa diva maior do teatro, cinema e tv - não levou o prêmio naquele ano, nem teve nunca seu talento reconhecido oficialmente na terra do Tio Sam. Pura ignorância daquela indústria! Fernandinha, por sua vez, que já havia sido reconhecida em Cannes por sua atuação em Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, leva agora o prêmio americano, deixando para trás atrizes do peso de Kate Winslet e Tilda Swinton, tornando-se a primeira brasileira a lograr este feito. Vitória para o Brasil. Vitória para a língua portuguesa, última flor do Lácio, língua de Camões, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, de Clarice Lispector e de tantos outros grandes artistas muitas vezes ignorados por aqueles que não dominam nosso idioma.
Em Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, esposa do ex- deputado federal Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar. Baseado na autobiografia homônima escrita pelo filho Marcelo, o filme conta a história dessa mulher que, de um dia para o outro, vê sua vida revirada, tendo que se reinventar para conduzir sozinha a família de cinco filhos, sem seu companheiro de vida, sem renda, enfrentando diariamente o medo e a incerteza de encontrá-lo vivo ou morto. Uma atuação contida, equilibrada e justa, talhada na medida exata para retratar uma mulher de coragem e fibra que, sem fazer escândalo, nunca se calou e nunca aceitou o desaparecimento do marido.
Eunice não apenas sobreviveu à prisão e às consequências da ditadura, como usou-as como força motriz para encontrar um novo caminho. Formou-se em direito, tornou-se uma ativista das causas indígenas e dos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil e militar, tendo sido uma das principais vozes para a promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante esse período.
Que este prêmio para Fernanda Torres e o sucesso de Ainda Estou Aqui sejam um incentivo para que o Estado brasileiro siga o caminho da reparação história dos desaparecidos nos anos de chumbo da ditadura militar. E que a bilheteria gerada até agora (mais de 3 milhões de espectadores) seja o impulso que falta para que nossa indústria cinematográfica passe a receber mais e mais investimentos para a produção e a distribuição de filmes de qualidade e que, assim, possa ganhar de vez a confiança dos públicos brasileiro e internacional.
Chega de nos contentarmos em estar na lista de candidatos. Somos bem mais que isso! Temos atores, diretores, roteiristas, produtores e músicos que merecem estar lado a lado com os maiores do mundo. Que o complexo de vira-lata tão bem detectado por Nelson Rodrigues naqueles já distantes anos 50 fique impresso apenas nos jornais e nos livros de história.
*Lilia Lustosa é integrante do Conselho Consultivo da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, crítica de cinema, formada em Publicidade, especialista em marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, na França.