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Ruy Castro: Noite de 13 de dezembro

Um disco de Charles Mingus tornou-se a triste trilha sonora do AI-5

Às 20h30 de 13 de dezembro de 1968, Alberto Curi, locutor da Agência Nacional, leu em rede de rádio e TV o comunicado do governo anunciando o Ato Institucional nº 5. Naquele momento eu estava naModern Sound, loja de discos em Copacabana, aonde ia todas as sextas depois de sair do Correio da Manhã, em cujo 2º caderno trabalhava com Paulo Francis. Comprara um LP de Charles Mingus, e já estava saindo quando alguém veio me contar: “Acabei de saber. Os militares baixaram um ato para fechar tudo. Agora é sério”. Não vacilei. Tomei um táxi e voltei para o Correio, na Lapa.

Meia hora depois, já chegara lá. Havia uma multidão na porta do jornal. Desci do táxi, mas ninguém podia entrar. De repente, Osvaldo Peralva saiu do saguão imobilizado por dois homens. Passou a um metro de mim e foi jogado dentro de um carro. Peralva fizera parte da elite comunista na Europa, mas largara tudo em 1956, ao se convencer dos crimes de Stálin denunciados pelo sucessor Kruschev. Então escrevera um livro, “O Retrato”, em que revelava as táticas dos partidos comunistas, inclusive o brasileiro. Com isso, fora jurado pela esquerda. E, agora, por dirigir um jornal liberal e de oposição, era preso pela direita.

Paulo Francis estava num avião naquela noite, voltando de Nova York. Desceu de manhã no Galeão. Foi para seu apartamento em Ipanema e eles o pegaram pouco depois, ainda de pijama. Uma colega do jornal me ligou dizendo que meu nome estava numa lista que ela vira por lá. Mandou-me sumir por uns tempos.

Fiquei longe também do Solar da Fossa, onde morava, um ninho de anarquistas facilmente confundíveis com “subversivos”. Passei uns dias na casa dos tios de uma namorada, no Flamengo. Lá finalmente escutei o LP, “Mingus Revisited”. Achei muito triste.

Nunca me desfiz do disco, mas levei 30 anos para conseguir ouvi-lo de novo. Para mim, ele se tornara a trilha sonora do AI-5.

*Ruy Castro é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Zuenir Ventura: AI-5, um ato obsceno

Há quem não acredite que houve um golpe militar no Brasil. Tem razão. Houve dois, um em 1964 e o outro que vai completar 50 anos amanhã, chamado de golpe dentro do golpe. Assinado pelo marechal Costa e Silva e referendado pelo Conselho de Segurança Nacional, o Ato Institucional nº 5 pôs fim aos “anos rebeldes” e inaugurou os “anos de chumbo”.

Era tão radical que o próprio ditador desabafou na hora da assinatura: “Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e ideias que adoto uma atitude como esta”. De fato, em uma década de vigência, o chamado AI-5 fechou o Congresso, cancelou o habeas corpus, censurou cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, incontáveis programas de rádio, cem revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos de telenovelas.

Além desse expurgo nas obras de criação, foram punidos mais de mil cidadãos com suspensão de direitos políticos, demissão, cassação de mandatos. Entre os funcionários públicos atingidos por delito de opinião, estavam três ministros do STF — Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Vítor Nunes Leal — e professores universitários como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros.

O AI-5 foi assinado por 22 dos 23 membros do CSN, composto pelos ministros civis e militares, numa sessão que lembrava uma peça do Tropicalismo, então na moda. Os ministros atuaram como encarnações alegóricas da hipocrisia e da pusilanimidade. O auge da encenação foi quando o ministro Jarbas Passarinho pronunciou sua famosa fala: se era inevitável a ditadura, “às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.

O único a se portar corretamente foi o vice-presidente Pedro Aleixo, que disse “não”, apontando uma solução constitucional para a crise, o estado de sítio, que pelo menos tinha prazo de validade de 60 dias.

O AI-5 não instituiu a pena de morte, e teve gente que sentiu falta. O futuro presidente Bolsonaro, por exemplo, reclamou em entrevistas: “o erro da ditadura foi torturar e não matar (...). Devia ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar por FHC”.


Folha de S. Paulo: 'Creio que o AI-5 passou para não voltar', diz FHC sobre o decreto de 1968

Por Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Fernando Henrique Cardoso estava em sua casa, no bairro do Morumbi (zona sul de São Paulo), quando escutou o anúncio do Ato Institucional número 5, na noite de 13 de dezembro de 1968. Lembra-se perfeitamente da voz do ministro da Justiça, Gama e Silva, que havia sido seu colega no Conselho Universitário da USP, informando em cadeia nacional de rádio e televisão as medidas que iriam endurecer a ditadura militar.

Fazia apenas dois meses que Fernando Henrique voltara ao Brasil e a ministrar aulas na Universidade de São Paulo, após um exílio imposto pelo golpe de 1964. Percebeu o que estava por vir, pegou o carro e se dirigiu à Cidade Universitária (zona oeste), onde se organizavam protestos. O AI-5, que fechou o Congresso, acabou com o habeas-corpus e concedeu poderes ilimitados ao Presidente, teria logo consequência mais direta em sua vida: em abril de 1969, com 37 anos, seria aposentado compulsoriamente da universidade. Aos 87, o ex-presidente do Brasil relembra nesta entrevista à Folha esse "clima horroroso" de 50 anos atrás.

De que movimentos o sr. participava para ser considerado pelos militares um "subversivo" e ter sido obrigado a se exilar após o golpe de 1964?
Na época de 1964, eu era professor da USP, só participava do debate público. Era acusado pelas ideias, não pela ação. Exercia certa liderança, fundara no passado a associação dos docentes e havia sido eleito, então, representante dos professores assistentes.

O sr. foi oficialmente expulso ou recebeu algum tipo de ameaça e decidiu partir?
Fui obrigado a deixar o país em 1964 porque tentaram me prender e a Justiça militar abriu um processo contra mim. Em Santiago, trabalhei na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], da ONU [Organização das Nações Unidas], e fui professor na Universidade do Chile, de 1964 a 1967. De lá fui para a França a convite de Alain Touraine [sociólogo] para criarmos um departamento na Universidade de Paris (Nanterre), onde fiquei entre 1967 e 1968.

O sr. e dona Ruth já tinham filhos quando foram para o exílio?
Sim. Um tinha nove anos e as outras, meninas, sete e cinco.

Por que decidiram voltar em 1968? Foi consequência do aparente fortalecimento dos movimentos de oposição, marcado pelas grandes passeatas?
Voltei porque um catedrático da USP morrera deixando uma vaga. Eu estava, desde 1964, fora da USP, pois a reitoria se negou a conceder-me licença. Além disso, o clima político parecia desanuviar-se, o que com o AI-5 não ocorreu.

Da sua volta até o anúncio do AI-5, como foi a vida em São Paulo, as aulas na USP e o clima na universidade?
Eu morava no Morumbi [zona sul] em uma casa que começamos a construir quando fui para Santiago. Ganhei o concurso para a cadeira de ciência política da USP em outubro de 1968. Nessa época não sofri qualquer processo. Houve sim acusações internas à USP, por parte de outros professores. Logo depois, em abril de 1969, fui aposentado compulsoriamente pelo AI-5, aos 37 anos.

O sr. se recorda do momento do anúncio? Onde estava e qual foi a sua sensação?
Recordo-me perfeitamente da leitura do decreto do AI-5 e da voz do ministro Gama e Silva, da Justiça, o Gaminha, que havia sido meu colega no Conselho Universitário. Eu estava em minha casa e logo percebi o que aconteceria. Peguei o carro e fui para a faculdade. Em seguida começaram as aposentadorias compulsórias.

Com o AI-5, o que mudou na sua vida? As consequências foram imediatas ou o sr. só seria afetado a partir do seu afastamento compulsório da USP?
As consequências gerais foram imediatas. Até a minha compulsória, eu fora eleito por alunos e professores diretor do Departamento de Sociologia, estávamos fazendo uma reforma curricular, mas o clima passou a ser de protestos abafados e mesmo abertos. Um dia fomos cercados pela polícia na Cidade Universitária. Mas disso já havíamos provado em 1964 na rua Maria Antonia [sede na USP na Vila Buarque, região central]. Basta dizer que houve "guerra" entre provocadores e alunos da filosofia, com coquetéis molotov -um atingiu minha sala e queimou documentos. A partir do AI-5, eram notícias vagas de reações, medo e repressão. Embora voltasse a ser convidado a dar aulas na França e em Yale, resolvi ficar em São Paulo e fui um dos fundadores do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], instituição que continua existindo. Posto para fora da USP e trabalhando no Cebrap [que reuniu intelectuais afastados de suas funções pela ditadura], o clima era horroroso. Qualquer carro que parasse em frente à casa já se pensava na polícia política. Sabia de pessoas, às vezes amigos, presos e mesmo torturados ou mortos, como o [jornalista Vladimir] Herzog.

O sr. nunca mais voltou a ser professor da USP?
Só voltei a dar um curso, durante um semestre, depois da lei de anistia [1979]. Não regressei mais à carreira pois estava dirigindo o Cebrap, dando aulas eventualmente no exterior (École des Hauts Etudes [França], Cambridge [Inglaterra], Stanford e Berkeley [Estados Unidos], em períodos distintos) e meus ex-alunos ocupavam, com brilho, as funções que eu e outros deixáramos. Eu sempre gostei de não repetir experiências, buscar novos desafios.

O sr. já tinha àquele momento alguma intenção de entrar na carreira política?
Não tinha, embora a política não fosse experiência distante: meu pai, que era militar (chegou a general), era também advogado e foi deputado federal por São Paulo. Minha participação foi consequência das lutas contra a ditadura (SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], jornais "nanicos" como "Movimento" e, sobretudo, "Opinião", a Comissão de Justiça e Paz etc.). Foi Ulisses Guimarães quem me levou a ser candidato ao Senado em uma sublegenda do MDB, não para ser eleito, mas para somar votos a quem seria reeleito, Franco Montoro. Eu nem sabia que o segundo colocado, como fui, seria o suplente do titular... Montoro eleito governador, tornei-me senador. Na época estava dando aulas em Berkeley.

O AI-5 é algo enterrado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim?
Espero e creio que sim, o AI-5 passou para não voltar. E ainda bem.


O Estado de S. Paulo: Ato Institucional número 5 completa 50 anos

Por Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo

Cinquenta anos depois, o AI-5 ainda divide opiniões no País – se os juristas e a imprensa são unânimes no repúdio ao arbítrio, muitos militares ainda consideram que o contexto da época justificava a sua imposição. O decreto do Ato Institucional que contou com a  assinatura de 16 ministros e do presidente, o general Costa e Silva, marcaria profundamente a Nação. Não apenas em razão das cassações de mandatos de parlamentares, pela censura de 500 filmes, 950 peças de teatro, 200 livros, 500 letras de música, mas pela suspensão de garantias fundamentais, como o habeas corpus para crimes contra a Segurança Nacional e a Ordem Econômica e Social. Uma década depois, quando foi suspenso, a repressão do regime militar já havia feito mais de 400 mortos, provocado o exílio de cerca de 7 mil brasileiros e submetidos outros 20 mil a sevícias e maus-tratos nas cadeias e porões da ditadura.

Desde que as eleições foram suspensas, os jornais do grupo Estado fizeram oposição ao regime. A consequência foi perseguição, prisões de jornalistas e a censura de suas páginas. Neste especial, o Estado mostra como enfrentou a ditadura e defendeu a liberdade. Revela ainda que uma armadilha feita por integrantes de um órgão de informação do regime esteve por trás da cassação do emedebista Marcos Tito (MG), abrindo a crise que resultaria ainda na cassação do também deputado Alencar Furtado, líder do MDB na Câmara, em 1977. Seria o último expurgo no Parlamento feito com base no AI-5.

Leia aqui ainda a íntegra do editorial Instituições em Frangalhos, que levou à instituição da censura prévia ao jornal e veja abaixo a galeria "50 anos de AI-5 em 50 fotos", uma seleção do nosso acervo com cenas sobre a crise política que culminou na decretação do Ato Institucional.

Reação ao AI-5 leva à democracia e à Constituição

Ato institucional suspendeu garantias legais e fechou Congresso; oposição lutou contra autoritarismo

Marcelo Godoy e Pablo Pereira, O Estado de S.Paulo

Os brasileiros tomaram conhecimento do Ato Institucional de número 5 pelo anúncio do ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva. Era noite de sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Fora Gama e Silva que redigira o documento, suspendendo garantias constitucionais e fechando o Congresso por tempo indeterminado. Ele assim permaneceria até outubro do ano seguinte, quando reabriria – expurgado pela cassação de 98 deputados e 5 senadores – para referendar uma nova Constituição com mudanças, como a adoção da pena de morte.

Um dia antes, a Câmara dos Deputados negara por 216 votos a 141 a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, por seus discursos, considerados ofensivos às Forças Armadas. Vindo da casa da namorada, na Água Branca, na zona oeste, o professor de Direito Constitucional da USP José Afonso da Silva dirigia seu Fusca com o rádio ligado quando um locutor começou a ler o texto. “Fiquei tão horrorizado com aquilo, porque é o instrumento mais violento que o País já teve, de certo modo, mais violento do que a Constituição do Getúlio Vargas. Dava um poder tão grande para o presidente fazer o que queria. E eles fizeram o que queriam, usaram e abusaram do Ato largamente, praticando os mais absurdos atos de autoritarismo.” Horas antes, o prédio do Estado, no centro, fora invadido por policiais que aprenderam sua edição em razão da recusa de Julio de Mesquita Filho de se submeter à ordem de trocar o editorial Instituições em Frangalhos. Começava a censura ao jornal.

Vinte anos depois, José Afonso estaria entre os assessores do senador Mário Covas, líder do PMDB, que ajudaram a sistematizar e redigir a Constituição de 1988. Para ele, a atual Carta é um “espelho invertido” do AI-5. A visão de que o arbítrio da ditadura militar engendrou a luta que se concluiu na promulgação da nova Constituição é compartilhada por outros juristas que lutaram pela redemocratização do País.

“Ela é o grande reverso do arbítrio. Garantiu direitos e valorizou como nenhuma outra no mundo os operadores do direito”, diz o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal(STF) Francisco Rezek. Estudante de Direito, ele estava no meio do Atlântico, no navio Augusta, voltando ao Brasil após a primeira fase do doutorado na Sorbonne, em Paris, quando o comandante anunciou aos brasileiros a novidade. Eram quatro homens e três mulheres. “Alguns pensaram em não desembarcar.” Rezek seguiu para Minas. “O AI-5 desvelou por completo a face do regime, inaugurando uma ditadura escancarada.”

O que tornava o AI-5 diferente dos Atos anteriores não era a licença para cassar mandatos e direitos políticos ou para aposentar compulsoriamente magistrados, professores, militares, mas a suspensão de garantias, como a do habeas corpus, para acusados de delitos políticos e econômicos, além de retirar da Justiça a possibilidade de apreciar quaisquer atos do governo baseados no AI-5. Dezesseis ministros assinaram o documento, além do presidente Costa e Silva. Era a reação de um governo acuado por protestos estudantis, greves operárias e críticas da imprensa.

Ao aumento da oposição, o governo reagia com prisões, como a dos 720 estudantes no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, no interior paulista. Alunos do Mackenzie vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas enfrentavam estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antonia, no centro. A batalha começou em 2 de outubro e acabou no dia seguinte, com o incêndio da prédio da Filosofia, atacado por coquetéis molotov lançados do Mackenzie. Dias depois, homens da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) executaram o capitão americano Charles Chandler, em São Paulo. Parte da esquerda pegava em armas contra o regime.

No Rio, a agitação estudantil crescera após o assassinato do estudante Edson Luis, quando a polícia invadiu um restaurante estudantil. No dia seguinte, 50 mil marcharam contra o regime. Em 21 de junho, nova manifestação terminaria com 4 mortos – um era policial. Cinco dias após, 100 mil sairiam às ruas em protesto. “Nossos alunos têm razão”, dizia uma das faixas. No mesmo dia, em São Paulo, a VPR lançou um carro-bomba contra o quartel do 2.º Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho.

Belisário dos Santos Junior era um jovem estudante de direito quando ouviu com amigos a decretação do AI-5. Estava em um bar na Rua Iguatemi, no Itaim Bibi, na zona oeste, tomando um sorvete. O Ato fez dele um defensor de presos políticos. Ele mesmo acabaria detido pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, por causa de um documento que denunciava torturas impostas aos criminosos comuns do Presídio Tiradentes. Os interrogadores não lhe perguntaram nada sobre a petição assinada com outros sete advogados e enviada à Justiça Militar. “Só queriam saber quem nos pagava para fazer aquilo.”

A denúncia contra os advogados partira do juiz auditor Nelson Machado Guimarães, que recebera a petição. O grupo compareceu diante do Superior Tribunal Militar (STM), ainda no Rio, defendido pelo advogado Heleno Fragoso. “Senhores, em São Paulo, terrorista é a Justiça Militar”, disse Fragoso aos ministros do STM, que confirmaram a libertação de todos. Belisário se juntaria à luta pela anistia e pela Constituinte. “A Constituição é o momento de afirmação dos direitos e garantias. Antes, estavam no artigo 153. Com a nova carta passaram a ocupar o artigo 5.º, o que mostra a prioridade que receberam.”

Outro advogado que conheceu a prisão após o AI-5 foi Eros Grau. Era 1970 quando ele foi preso pela segunda vez – a primeira fora pouco após o golpe de 1964. Durou três dias. Grau era suspeito de ligações com o Partido Comunista Brasileiro, crime previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN), que podia ser punido com até 2 anos de cadeia.

O empresário Dilson Funaro, então secretário de Planejamento do governador Abreu Sodré (Arena) pediu ao chefe a libertação do amigo. “Ele disse que ‘ou me soltavam ou se demitiria.’” Eros foi solto. “Perdi a chance de viver na França...” O então advogado da classe teatral se tornaria ministro do STF. “A Constituinte de 1988 rasgou tudo o que existia antes. Como no poema de Álvaro Moreyra: ‘A vida está toda errada/Vamos passá-la a limpos?’ Ela passou a limpo o passado. Virou aquela página. Ela significa o nascimento do novo.”

Vencidas as organizações que se opunham pelas armas, o regime iniciou a abertura. O AI-5 acabaria revogado em 1978 pelo presidente Ernesto Geisel. O último presidente do ciclo militar, João Figueiredo, assumiu prometendo “prender e arrebentar” quem fosse contra a redemocratização. Não fez uma coisa nem outra. Governaria até entregar o poder aos civis. “A Constituição (de 1969) estava comprometida com o autoritarismo. Um remendo não daria a ela a visão que se tinha de adotar para a democratização do País. A eleição do Tancredo Neves, com seu discurso de Maceió, da Nova República, era a proposta para liquidar com os tais entulhos autoritários”, diz José Afonso. Com a morte de Tancredo, caberia ao vice, José Sarney convocar a Constituinte. Quatro anos depois, em 1988, estaria pronta a nova Constituição.


Generais eleitos pelo PSL afirmam que AI-5 ‘foi necessário’ para o país

Roberto Sebastião Peternelli Junior e Eliéser Girão Monteiro Filho foram eleitos para a Câmara dos Deputados pelo partido do presidente eleito, Jair Bolsonaro

Os dois generais eleitos em outubro pelo PSL para a Câmara dos Deputados – Roberto Sebastião Peternelli Junior e Eliéser Girão Monteiro Filho – afirmaram que a adoção do Ato Institucional-5 (AI-5) foi necessária diante da conjuntura da época. “A conjuntura, infelizmente, com os movimentos revolucionários armados, fez com que Brasil precisasse do AI-5 para manter a democracia e se contrapor ao comunismo. Vivemos hoje um momento diferente, não há mais o risco de implantação de um regime comunista”, diz Girão.

Peternelli também culpa as ações armadas contra o regime. “Para aquele contexto, talvez, tenha sido uma medida necessária. O governo não tinha opção.” Ele afirma que o Exército “ao longo da história sempre defendeu a defesa da democracia”. “O compromisso com a democracia nos levou à Câmara pelo voto.” Cinquenta anos atrás, o Congresso também tinha dois oficiais generais quando foi fechado pelo AI-5: os marechais Amaury Kruel (MDB-GB) e Mendes de Moraes (Arena-GB).

O general Girão, no entanto, disse concordar com a crítica feita nos anos 1970 pelo general Peri Constant Bevilacqua, para quem o AI-5 “comprometeu os ideais de 31 de Março”. Ministro do Superior Tribunal Militar, Bevilacqua foi cassado pela ditadura, em 1968. “A terapêutica revolucionária agrava os males do doente – a democracia – quando não o mata”, afirmara.

“A prática da República é que vai aperfeiçoá-la. Para isso acontecer, os Poderes devem agir de forma independente. Infelizmente, a Nova República foi sepultada – com a causa mortis corrupção –, por partidos políticos formados por derrotados pela revolução de 1964, quando da tentativa de se implantar um regime comunista”, disse Girão.

 


Amordaçado pela ditadura, jornal luta pela liberdade

Editorial faz general apreender edição; regime impõe censura prévia ao ‘Estado’

Por José Maria Mayrink, O Estado de S.Paulo

A edição do Ato Institucional-5 (AI-5) marcou, em 13 de dezembro de 1968, o início da censura sistemática à imprensa, que só acabaria dez anos depois. Houve pressão, ameaças e atentados contra O Estado de São Paulo desde o golpe militar de 31 de março de 1964, mas os censores não frequentavam a Redação nesse período. A repressão chegou para valer quando a Câmara negou a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves.A censura no Estado começou, aliás, em 12 de dezembro, véspera do anúncio do AI-5. O chefe da Polícia Federal em São Paulo, general Sílvio Correia de Andrade, telefonou para a Redação para saber qual seria a manchete do dia seguinte. “Câmara nega; prontidão”, informou o editor-chefe Oliveiros S. Ferreira. O general deu-se por satisfeito, mas o jornal foi apreendido ao chegar às bancas, na madrugada seguinte. O general liberou o noticiário, mas não gostou do editorial Instituições em Frangalhos, no qual o diretor do jornal, Julio de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, criticava o presidente Costa e Silva. “Era um texto duro e corajoso, que refletia a tradicional independência do jornal em relação aos governantes”, diz o jornalista Miguel Jorge, na época repórter do Jornal da Tarde, vespertino da empresa.Foi o último editorial do Doutor Julinho. Ele deixou de escrever na seção Notas e Informações, na página 3, em protesto contra a censura. Revoltado com a apreensão do jornal, mandou seu filho Julio de Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de Abreu Sodré e ao general Correia de Andrade que não faria autocensura. Se o governo quisesse proibir alguma notícia, pusesse censores na Redação. Sua resistência custou caro. “O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai”, disse o jornalista Ruy Mesquita em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho. Ele caiu doente quando parou de escrever o editorial e morreu em julho de 1969, sete meses após a edição do AI-5.Os censores se instalaram na Redação na noite de 13 de dezembro, ao lado dos jornalistas atônitos que se agrupavam em frente da TV para assistir ao anúncio do AI-5. O locutor oficial Alberto Curi leu o texto do ato, ao lado do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da USP.Recusa. Os jornais da família Mesquita não faziam autocensura. “Façam as reportagens e escrevam, os censores que cortem”, era essa a orientação. Os censores permaneceram no prédio da Rua Major Quedinho, sede do Estadono centro da cidade, até o dia 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram e só voltaram em agosto de 1972. Nesse intervalo, a censura prévia era feita por telefonemas da Polícia, bilhetes e listas de assuntos proibidos. Como não se permitia deixar espaços em branco, recorria-se a textos aleatórios para mostrar aos leitores o que estava ocorrendo. Cartas inventadas pelos redatores, despachos judiciais, orientações de cultivo de flores interrompiam com destaque o noticiário nas páginas nobres, para cobrir o vazio de editoriais e reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.

Apesar do cerco policial, milhares de exemplares do Estado chegaram às ruas no dia 13. O pessoal da expedição armou uma operação de guerra. “Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos uns 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição”, lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, onde funcionava o jornal, no centro.

Também o JT foi proibido de circular e apreendido. Seus diretores se recusaram a trocar textos considerados “mais exaltados”, depois de terem publicado, no dia 12, um editorial sobre a crise política com o título "Mais uma demonstração de inviabilidade do regime". Repórteres e editores fizeram um esquema semelhante ao do Estado para garantir a distribuição. Enquanto a Polícia vigiava a Rua Major Quedinho, 84.900 exemplares escaparam pela Rua Martins Fontes, do outro lado do prédio.

O general Sílvio Correia de Andrade ficou furioso. Percorreu as bancas do bairro de Higienópolis para recolher o JT pessoalmente. “Esse jornal traiu a Revolução”, gritava sem parar, conforme lembra Fernando Mitre, atual diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes.

Reação. O escritor e jornalista Ivan Ângelo, então secretário de Redação do JT, lembra a reação dos jornalistas. “Quando o censor entrou na sala, logo nos primeiros dias, todos nós nos retiramos, em sinal de protesto. O censor perguntou se o pessoal estava saindo por causa dele e eu disse que certamente sim, pois isso nunca havia ocorrido antes.”

Os jornalistas faziam o que podiam para infernizar a vida dos censores. “Contrabandeando informações que seriam censuradas no meio de outras matérias, em linguagem pouco usual – e não apenas isso, mas também esvaziando os quatro pneus do carro de um deles apenas para vê-los, da janela, suando a camisa num trabalho mais digno que aquele a que se haviam habituado ”, disse Carlos Brickmann, repórter político.

Proibido de publicar a notícia da demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda, Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu em 1973 uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado. “Agora é samba”, dizia o anúncio, com grande impacto. Repetiu-se a dose no dia seguinte, quando foi publicada, no lugar de outra foto de Cirne Lima, uma ilustração com uma rosa branca. Legenda: “A rosa, louvada por poetas desde tempos imemoriais, continua simbolizando o amor”.

Os editores publicavam também poesias no lugar do material cortado. O primeiro poema, Y – Juca Pirama, de Gonçalves Dias, saiu em destaque na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Nem todos os leitores entenderam o recado. Muitos telefonaram ou escreveram para cumprimentar o Estado pelo apoio à literatura e ao cultivo de flores. Diante dessa reação, Julio de Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada, de modo que o leitor identificasse a censura.

O redator Antônio Carvalho Mendes, responsável por uma coluna sobre cinofilia e pela seção de falecimentos, sugeriu a publicação repetida de versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. O poeta português apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da USP, foram cortados 1.136 textos no Estado, de 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura. No JT, Ruy Mesquita optou pela publicação de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas.

Repórteres e correspondentes do Estado foram perseguidos por causa do seu trabalho. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do presidente Ernesto Geisel. “O Estadão se posicionou firmemente contra a ditadura e alguns de seus jornalistas foram torturados, como foi o meu caso, por defenderem a liberdade de imprensa”, disse Garcia. Em outubro de 1975, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, foi preso e torturado no Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, na mesma semana e local em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob torturas.

Julio de Mesquita Neto resistia à censura e protestava contra a ditadura. “Meu pai aproveitava suas viagens para denunciar no exterior a falta de liberdade de imprensa no Brasil”, disse Júlio César Mesquita, lembrando discursos e pronunciamentos feitos na Europa e nos Estados Unidos. Pela sua coragem, Julio Neto ganhou o Prêmio Palma de Ouro da Liberdade, concedido pela Federação Internacional dos Editores de Jornais. No JT, o diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que mandou a Alfredo Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a PF baixou novas normas de censura à imprensa. Dizia o texto:

“Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura...Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr. Ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas...”

Os militares ficaram furiosos, recorda Mitre, por terem sido chamados de nazistas e fascistas.

“Meu pai lutou contra a censura e contra todas as barbaridades do regime militar”, disse Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito. Ainda adolescente na época, ele se lembra hoje de Ruy Mesquita falando aos berros, pelo telefone, com um general. “Meu pai defendia os jornalistas que eram presos e perseguidos. Os diretores do Estado e do Jornal da Tarde sabiam e denunciavam o que estava acontecendo. O prédio do Estadofoi alvo de três bombas em atentados terroristas, de esquerda e de direita, em represália à sua posição em defesa da democracia”, acrescentou Ruyzito.

Missão. Correspondente em Buenos Aires, onde era exilado político e assinava seus textos com o pseudônimo de Julio Delgado, Flávio Tavares lembra como iludiu a censura, quando os Mesquitas não se dobraram à “inquisição” militar. “Usávamos todos os estratagemas para driblar a censura.” Em 1977, Flávio foi preso e torturado no Uruguai, acusado de espionagem, após ter entrevistado Leonel Brizola no exílio. Foi libertado por pressão do Estado, que enviou Júlio César Mesquita e advogados do escritório de Gerson Mendonça Neto a Montevidéu para resgatá-lo.

A censura só acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário do Estado. Era o cumprimento de um compromisso assumido pelo general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência em março de 1974. As dificuldades, porém, continuaram, até o fim do AI-5, em 1978.

 


 

O complô para cassar o deputado

Oficiais revelam como armaram a crise que fez Marcos Tito e Alencar Furtado perderem os mandatos

Por Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo

A crise que levou à cassação dos dois últimos mandatos de deputados federais com base no AI-5 em 1977 foi o resultado de uma conspiração montada por integrantes da comunidade de informações da ditadura militar. O objetivo inicial era decapitar um parlamentar do MDB – Marcos Tito. Ele denunciara a ação da extrema-direita, que se alinhara em torno da ideia de impor o general Silvio Frota, então ministro do Exército, como candidato do governo à sucessão do presidente Ernesto Geisel (1974-1979).

As eleições eram indiretas e o presidente, eleito pelo Colégio Eleitoral em 1978. Quarenta e um anos depois, um ex-integrante do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) revelou a trama ao Estado. A entrevista, feita no Clube da Aeronáutica, no Rio, durou cinco horas e foi gravada. O coronel pediu anonimato. A história foi confirmada por outro oficial, que trabalhou 28 anos no Cisa.

“Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram operações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”, diz o coronel. Entre essas operações, estava a que levou à cassação de Tito. “Ele estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito.”

Integrante da contrainteligência do Cisa, ele estava no setor desde sua criação como Núcleo do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica, chefiado pelo então coronel João Paulo Moreira Burnier. Era julho de 1968. Permaneceu ali até 1979 como o agente Paulo Mário.

Na época, o emedebista havia discursado na Câmara afirmando: “Há evidentes sinais de que a extrema-direita articula-se para promover as condições necessárias a um novo surto de violência política”. Tito era vinculado ao grupo mais incisivo do MDB, conhecido como “autêntico”. Desde 1964, 171 mandatos de parlamentares haviam sido cassados pelos governos militares, dos quais 104 foram com base no Ato Institucional-5. Para retirar do caminho o parlamentar de Minas – eleito em 1974 com 61.386 votos –, a Aeronáutica montou uma armadilha. Os oficiais da inteligência da Força apanharam a edição especial do jornal Voz Operária, de abril de 1977. Órgão oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB), então na ilegalidade, ele era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

A edição trazia uma decisão do partido e um editorial sobre o Pacote de Abril, por meio do qual Geisel fechou o Congresso e aprovou reformas, como a ampliação do Senado com a nomeação de senadores – os biônicos –, garantindo maioria no Colégio Eleitoral. Também continha o Manifesto à Nação.

O texto afirmava: “No momento em que o Brasil atravessa uma crise cujas consequências e alcance são reconhecidos por todas as correntes políticas nacionais, os comunistas dirigem-se à nação com o objetivo de, ao lado de todos aqueles interessados na conquista da democracia, propor uma alternativa para a situação político-institucional em que o regime resultante do golpe de 1964 colocou o País”. Reescrito pelos militares, o texto perderia a palavra “comunistas” e teria “golpe” substituída por “movimento”. Dos 24 parágrafos, cinco foram suprimidos. As alterações, porém, ainda deixavam clara a origem do texto sem, no entanto, alertar o alvo da armadilha: Tito.

O próximo passo foi entregar o texto ao gabinete do parlamentar, que mantinha relações com estudantes e sindicalistas. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. E ele caiu e leu.” O papel foi recebido por um assessor, que o repassou ao deputado. Em 24 de maio, o parlamentar subiu à tribuna e leu o discurso sem saber que era quase cópia da Voz Operária. Acusava o regime de ter como métodos o “medo e o arbítrio”. Sua fala atraiu a resposta do deputado Cantídio Sampaio (Arena-SP), que o chamou de “atrevido”.

Tudo parecia se encerrar ali. Dois dias após o discurso, os militares fizeram chegar ao deputado Silval Boaventura (Arena-MG) a informação de que Tito lera da tribuna o manifesto do PCB. Sinval denunciou o colega. Estava aberta a crise. “E acabou levando uma ferroada, acabou cassado e posto na rua”, conta o coronel. De fato, 21 dias depois, Geisel anunciou a cassação de Tito. “Na época, não havia desconfiança de que o texto tivesse sido plantado. Pareceu o plágio de um assessor. As forças mais radicais do regime criaram uma crise artificial”, diz o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), então no MDB.

Necessário. A ação da comunidade de informações atendia ainda a outro motivo: provar que a infiltração comunista aumentava com a abertura e, assim, reforçar a “necessidade” de Frota ser o candidato do regime à sucessão de Geisel. “Queriam mostrar que tudo aquilo (o aparato do regime) era necessário”, disse o Doutor Pirilo, do Cisa. Entrevistado em julho de 2017, Pirilo morreu neste ano.

Treze dias depois, em 27 de junho de 1977, o MDB teria seu programa de TV. O presidente do partido, Ulysses Guimarães, foi duro com o governo e o líder da legenda na Câmara, Alencar Furtado (PR), protestou contra a cassação de Tito e outras e denunciou a chaga dos desaparecidos. “Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez”, disse.

O desafio ao regime foi punido por Geisel. Em 30 de junho, Geisel anunciaria a decisão de processar Ulysses. “Ulysses não foi cassado porque sua figura tinha mais respaldo, por seu histórico. Vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo e acusador. Geisel usou as cassações porque precisava enfrentar os radicais entre os militares e mostrar que não era mole”, diz Alberto Goldman, então líder do MDB na Assembleia Legislativa. Furtado se tornaria o 173.º – e último – parlamentar cassado no País com base no AI-5.

 

PERGUNTAS PARA: Marcos Tito

1. Oficiais do Cisa disseram que fizeram uma armadilha para que o sr. fosse cassado, plantando em seu gabinete o discurso com trechos da Voz Operária...

Eu fazia uma oposição muito dura à ditadura. Denunciava torturas e mortes. Eu recebia muitas solicitações de pronunciamentos, discursos e manifestações. Fiz vários. E fazia parte do grupo autêntico do MDB, com o Lysâneas Maciel, o Nadyr Rossetti, o Amaury Müller. Fui acusado pelo Geisel de ter sido apoiado pelo partido comunista. Os comunistas não iam apoiar a Arena, não é mesmo? Eles apoiavam quem? Apoiavam quem lutava contra a ditadura. Eles (os militares) usaram esse pretexto para me cassar. Não me arrependo nada do que fiz. Podem vasculhar minha vida; não tem nenhum ato de desonra.

2. O senhor tinha ideia de que foi vítima de uma armação?

Não tinha conhecimento, não. Eu supus que isso pudesse ser, sim, porque era uma forma de me caracterizar como representante do partido comunista.

3. De que forma a cassação afetou a sua vida?

Eu era jovem. Tinha 37 anos, um mandato e um cargo no Estado. Fui aposentado com 10% do salário – eu era fiscal de rendas – e tive de ir morar na casa da minha mãe, pois estava sem condição de sobreviver. Voltei à advocacia, mas as pessoas tinham medo de procurar meu escritório, porque naquela época o medo intimidava as pessoas. Morei dois anos com minha mãe para reorganizar minha vida.


Folha de S. Paulo: AI-5 atingiu pelo menos 1.390 pessoas nos dois primeiros anos

Capítulo 1

Por Rubens Valente, Naief Haddad, Marco Rodrigo Almeida e Laíssa Barros, da Folha de S. Paulo

BRASÍLIA E SÃO PAULO

Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos ministros e pelos principais chefes militares.

Nesse encontro, o governo federal havia sacramentado as medidas do decreto. Quatro anos e oito meses depois do golpe, começava o período mais duro da ditadura.

O AI-5 conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos.

Também poderia suspender direitos políticos e demitir ou aposentar servidores públicos. Suspendia-se ainda a garantia de habeas corpus em casos como crimes políticos.

Nenhuma dessas medidas estava sujeita à apreciação da Justiça. "Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime", diz o historiador José Murilo de Carvalho. "O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, cujas medidas afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia."

No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5, o regime militar passava a ter o poder de fechar o Congresso. Credito Arquivo / Folhapress
No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5. Foto: Folhapress

 

Documentos produzidos pelos militares e relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostram que o endurecimento promovido pelo AI-5 atingiu pelo menos 1.390 brasileiros até 31 de dezembro de 1970 em diversos setores e diferentes escalões da vida pública no país.

De três ministros do Supremo Tribunal Federal (Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), aposentados à força, a dois auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho (Gumercindo Libório Morais e José Zacarias da Silva), que foram demitidos sumariamente.

De cinco senadores (Aarão Steinbruch, João Abrahão Sobrinho, Arthur Virgílio Filho, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira), cujos mandatos foram cassados, a um encanador demitido pelo Exército (Aloisio Rocha).

Em relação aos documentos militares, a Folha compilou os dados que constam de papéis guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, e produzidos pelo extinto CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de assessoramento direto do presidente da, e pelo Ministério da Aeronáutica.

Ao longo desse período, foram atingidas 80 mulheres, incluindo professoras, advogadas, deputadas, militantes da esquerda armada e até duas militares das Forças Armadas. Elas representam 6% do total.

Os efeitos do ato envolvem diversas patentes, de soldados do Exército a um almirante da Marinha (Ernesto de Mello Baptista), transferido de unidade. Além dos ministros do STF, outros 27 magistrados foram atingidos, incluindo oito da área trabalhista e o ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Pery Constant Bevilacqua (1899-1990), aposentado à força por ser considerado adversário do governo.

Em 1976, o ex-ministro disse a escritores que o entrevistaram: "O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e comprometeu os ideais do movimento de 31 de março [de 1964]. Os fatos a que nos referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução".

Em janeiro de 1969, a jornalista e dona do "Correio da Manhã", Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), teve os direitos políticos suspensos e foi presa. Além dela, que estava à frente de um jornal crítico da ditadura desde o golpe militar, em 1964, seis jornalistas foram afetados nos dois primeiros anos da vigência do AI-5.

Também em 1969, em abril, os direitos políticos de um dos mais importantes jornalistas e romancistas do país Antonio Callado (1917-1997) foram suspensos. O autor de "Quarup" também acabou sendo preso -a cassação foi revogada posteriormente.

O poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) foi aposentado à força no Itamaraty em abril de 1969, no mesmo dia em que foi punido, com a aposentadoria na USP, Caio Prado Júnior (1907-1990), político, historiador e considerado um dos principais intelectuais do país.

Os expurgos ocorriam em ondas, após decisões sumárias tomadas pelo CSN a partir de processos administrativos que não abriam espaço para defesa e duravam poucos dias ou semanas.

Para provar que a pessoa merecia ser punida, o CSN se valia de todo tipo de informação produzida pela repressão, como informes confidenciais produzidos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), peça da máquina de espionagem criada logo após o golpe de 1964.

Os informes eram feitos sem o conhecimento da pessoa sob investigação e podiam ser alimentados com meros boatos não confirmados, distribuídos por adversários do político.

As listas dos punidos eram publicadas no Diário Oficial e anunciadas pela imprensa. Em 15 divulgações de dezembro de 1968 a abril de 1969, 452 pessoas foram atingidas de alguma forma, incluindo 93 deputados federais em exercício do mandato. A maioria teve os direitos políticos suspensos por dez anos, o que implicava a perda imediata do cargo.

"Na fase inicial do AI-5, havia muito improviso na organização do sistema repressivo. Era um trabalho por espasmos", diz à Folha David Lerer, à época deputado federal do MDB paulista. O nome de Lerer, 81, apareceu na primeira lista de cassações após a decretação do ato.

O AI-5 também abriu caminho para o recrudescimento da repressão militar contra opositores à ditadura e integrantes dos grupos de esquerda que haviam adotado o caminho da guerrilha.

Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação
Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação

 

Sete meses depois do ato, em julho de 1969, o 2º Exército e o governo de São Paulo criaram, com apoio financeiro de empresas privadas, a Oban (Operação Bandeirante), unidade formada por policiais civis e militares para perseguir militantes da esquerda.

A ditadura ainda estava abalada pelo ataque, em janeiro, liderado pelo capitão Carlos Lamarca (1937-1971) ao quartel de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo, de onde levou armas e munições.

No ano seguinte, em outubro de 1970, o modelo criado pela Oban foi difundido pelo interior do país, mas agora sob o guarda-chuva do próprio Exército, com a criação de unidades do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), que deu sequência à caçada aos integrantes da esquerda armada, com muitos episódios de tortura e execução de presos já dominados.

Da edição do AI-5 a dezembro de 1970, ao menos 44 militantes de esquerda foram mortos, incluindo um dos nomes mais procurados pelos militares, Carlos Marighella (1911-1969), abatido a tiros em São Paulo, e outros 11 foram presos e dados como desaparecidos.

O total de 55 em dois anos corresponde a 13% de todos os mortos e desaparecidos nos 21 anos de ditadura militar, segundo o número da Comissão Nacional da Verdade.

Fusca com vidros quebrados por tiros em que foi encontrado o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella após ação da polícia em 04 de novembro de 1969
Fusca com vidros quebrados por tiros em que foi encontrado o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella
após ação da polícia em 04 de novembro de 1969 - Reprodução

 

Como se sabe, o ano de 1968 foi um período marcado pela contestação política e comportamental em todo o mundo. No Brasil, a resistência civil também exibia um fôlego crescente.

O enterro do estudante Edson Luís, assassinado por policiais no Rio, atraiu dezenas de milhares de pessoas a um protesto contra o regime militar, em março. Três meses depois, ocorreu a manifestação contra o governo e a violência policial, que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil.

Os movimentos estudantis e operários ganhavam força ao longo do ano.

No campo oposto, a chamada linha dura (os militares mais radicais) defendia medidas enérgicas para fazer frente ao que via como uma "guerra revolucionária".

"Havia em 1968 um movimento gigantesco de contestação nas ruas. Era um ambiente de grande tensão", diz Delfim Netto, à época ministro da Fazenda do governo Costa e Silva. Entre os 24 membros do Conselho de Segurança Nacional que participaram da reunião no Rio, Delfim, 90, é o único que está vivo.

O ex-ministro critica a linha dura ("extremamente nacionalistas, de uma visão muito curta"). No entanto, ele pondera que a situação do país naquele momento era "bastante complicada".

Para o ex-deputado David Lerer, a tensão poderia ter sido contornada. "O limiar do ponto de ebulição dos militares era extremamente baixo. Ferviam com qualquer coisa."

De qualquer modo, o atrito entre o Planalto e os parlamentares da oposição cresceu em 12 de dezembro com a decisão da Câmara de negar a licença pedida pelo governo para processar o deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009).

Pouco mais de três meses antes, em discurso na Câmara em 3 de setembro, Moreira Alves (MDB-RJ) havia protestado contra a violência dirigida a estudantes e a outros ativistas da oposição e convocado a sociedade a boicotar os desfiles militares de Sete de Setembro. "Quando o Exército deixará de ser um valhacouto de torturadores?", indagou.

075801_0.tif. Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibi?na (SP), em 11 de outubro de 1968. (Folhapress)
Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibiúna (SP), em 11 de outubro de 1968. Foto: Folhapress

 

Para Delfim, "foi uma provocação inteiramente despropositada". O discurso "caiu muito mal entre os militares. Foi a gota d"água para o endurecimento do regime", recorda-se David Lerer, colega de partido e amigo de Moreira Alves.

Em uma sessão marcada pela fala do deputado Mário Covas (1930-2001) em defesa da autonomia do Poder Legislativo, o pedido pela punição de Moreira Alves foi rejeitado por 216 votos a 141.

Era a pior derrota política do regime militar desde a tomada do poder em 1964. Mais de 90 parlamentares do partido governista, a Arena, votaram a favor de Moreira Alves.

No plenário, a vitória foi celebrada ao som do Hino Nacional e com vivas à democracia. Estava criada uma crise institucional, opondo o Congresso às Forças Armadas.

No dia seguinte, uma sexta-feira 13, o presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) convocou a reunião do Conselho de Segurança Nacional. Surgiram poucas objeções, mesmo que veladas, às medidas propostas pelo ato.

"O que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é [...] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura", afirmou o vice-presidente, Pedro Aleixo, o único integrante da mesa a revelar uma preocupação clara com as novas propostas.

É preciso "acabar com estas situações que podem levar o país não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos", declarou Augusto Rademaker, ministro da Marinha.

Delfim, que também apoiou enfaticamente as medidas durante a reunião do conselho, diz não se arrepender da posição tomada 50 anos atrás.

"Quando o futuro virou passado, você adquire uma outra visão. Com a situação que eu via naquele instante e com o conhecimento que tinha, eu repetiria o fato", afirma Delfim, colunista da Folha.

"Mais tarde, eu assinei a Constituição de 1988, com todos os direitos do artigo 7º [abrange direitos dos trabalhadores urbanos e rurais]."

No texto do AI-5, Costa e Silva alegava que seu governo resolvera editar o decreto em concordância com os propósitos da "revolução brasileira de 31 de março de 1964", que visavam dar ao país "autêntica ordem democrática".

Era imperiosa, dizia, a adoção de medidas que impedissem que tal ordem e a tranquilidade fossem comprometidas por processos subversivos.

No livro "A Ditadura Envergonhada", primeiro dos cinco volumes de série sobre o governo militar, o jornalista Elio Gaspari assim resume o encontro no Laranjeiras:

"Durante a reunião falou-se 19 vezes nas virtudes da democracia, e 13 vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e 18 dias."

O Congresso Nacional foi fechado e só reabriu em 21 de outubro de 1969.

Manifestantes fazem protesto contra a ditadura militar, no centro do Rio de Janeiro (RJ); ato conhecido como Passeata dos 100 Mil, em 1968.
Manifestantes fazem protesto contra a ditadura militar, no centro do Rio de Janeiro (RJ); ato
conhecido como Passeata dos 100 Mil, em 1968. - AJB

 

Três meses depois da decretação do AI-5, permitiu-se a encarregados de inquéritos políticos prender quaisquer cidadãos por 60 dias, 10 dos quais em regime de incomunicabilidade. Segundo Gaspari, colunista da Folha, esses prazos se destinavam a favorecer o trabalho dos torturadores.

Há registros de tortura desde os primeiros dias da ditadura militar, mas a repressão ganhou intensidade após o AI-5, sobretudo no governo de Emílio Médici (1969-1974).

Rompia-se, a partir daí, parte expressiva do apoio civil ao regime. "O AI-5 aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país", afirma o historiador José Murilo de Carvalho.

Em artigo recém-publicado pela Revista Brasileira de História, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, examina as origens do ato.

De acordo com ele, a perda de prestígio e o isolamento político da ditadura, materializados na derrota na Câmara no caso Moreira Alves, estimularam a resposta autoritária dos agentes militares.

Pressionado à esquerda e à direita, vendo ruir os pilares de seu governo, Costa e Silva aceitou a demanda dos grupos militares mais radicais.

O governo já dispunha de instrumentos para reprimir revolucionários de esquerda. O novo ato autoritário, conclui Sá Motta, se prestava sobretudo a enquadrar dissidentes da própria ditadura, segmentos da elite (Congresso, Judiciário, imprensa, universidades) que apoiaram o golpe de 1964, mas se distanciaram em seguida.

"Se havia ainda dúvida de que o regime era uma ditadura governada por militares, isso cai em 68. Os militares foram ainda mais preponderantes no governo, e os parceiros civis tiveram papel mais apagado. A Arena, que servia para dar algum verniz democrático ao regime, entrou em ostracismo nos anos seguintes."

O AI-5 teve seu fim em 31 de dezembro de 1978, no governo Ernesto Geisel, em meio ao processo de abertura política. A ditadura, porém, resistiu por mais seis anos.

Colaborou EDMIR FARIAS

 

Cronologia do AI-5
Antes, durante e depois

28 de março de 1968 - O estudante Edson Luís é morto pela Polícia Militar durante protesto no Rio. Sucedem-se manifestações contra a violência policial

16 de abril de 1968 - Trabalhadores de siderúrgica de Contagem (MG) fazem a primeira grande mobilização operária no país desde o golpe de 1964. Acordo põe fim ao movimento no dia 26

17 de abril de 1968 - 68 municípios são considerados áreas de segurança nacional e proibidos de realizar eleições municipais

12 de junho de 1968 - Brigadeiro José Paulo Burnier revela ao capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho o plano de explodir o gasômetro do Rio, atentado que mataria milhares de pessoas. O objetivo era atribuir a culpa à esquerda. O plano não se consuma devido à recusa do capitão de levá-lo adiante; mais tarde, Carvalho é preso e reformado. O episódio passa a ser conhecido como caso Para-Sar

25 de junho de 1968 - Na manifestação que ficou conhecida como Passeata dos 100 Mil, no Rio, estudantes, artistas e representantes da classe média e da Igreja Católica se opõem à violência policial e pedem a volta da democracia

16 de julho de 1968 - Três meses depois de Contagem, acontece a greve de Osasco (SP). Metalúrgicos e estudantes ocupam a Cobrasma (Companhia Brasileira de Material Ferroviário). Três dias depois, mais de 400 são presos, e reivindicações não são atendidas

2 de setembro de 1968 - Márcio Moreira Alves, deputado federal pelo MDB, faz discurso enfático na Câmara. "Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?", questiona. Também sugere que a população boicote a parada militar de 7 de setembro

3 de outubro de 1968 - Acontece a Batalha da Maria Antônia. Com bombas, tiros e coquetéis molotov, estudantes do Mackenzie (alguns deles ligados ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas) atacam os estudantes da Filosofia da USP. Esses últimos reagem, mas têm menor poder de fogo. Um jovem, que estava no prédio da Filosofia, é morto

Batalha da Maria Antônia - 1968: Da mesma forma que a esquerda enraizava-se na USP, grupos paramilitares de direita encontraram abrigo no Mackenzie. Nessa universidade, estudavam membros da Frente Anticomunista, do Movimento Anticomunista e do mais famoso e estruturado grupo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). A presença deste foi decisiva para o confronto que aconteceu no dia 2 de outubro. Foto: Acervo UH/Folhapress
Batalha da Maria Antônia - 1968. Foto: Acervo UH/Folhapress

 

12 de outubro de 1968 - Polícia invade sítio em Ibiúna (SP), onde acontece o 30º Congresso da UNE. Mais de 900 estudantes são presos

12 de dezembro de 1968 - Em votação no plenário, marcada por discurso de Mário Covas (MDB-SP), Câmara não suspende a imunidade parlamentar de Moreira Alves. Decisão desagrada ao governo militar, que pretendia processar o deputado

13 de dezembro de 1968 - Após reunião do presidente Costa e Silva com membros do Conselho Nacional de Segurança, entra em vigor o AI-5 (ato institucional número 5), que impõe o recesso do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores. A partir daí, o presidente pode intervir em estados e municípios e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão. Habeas corpus também é suspenso

30 de dezembro de 1968 - Sai a primeira lista de cassações, que inclui 11 deputados federais, como Márcio Moreira Alves (MDB-RJ). Ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda tem seus direitos políticos suspensos

16 de janeiro de 1969 - Mais 35 deputados federais são cassados, entre eles Mário Covas (MDB). Lista também inclui dois senadores, Aarão Steinbruck e João Abraão, e três ministros do STF, Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva

25 de janeiro de 1969 - O capitão do Exército Carlos Lamarca foge do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco (SP), levando dezenas de fuzis e metralhadoras

1º de julho de 1969 - Governador Abreu Sodré cria a Oban (Operação Bandeirantes), centro de repressão em São Paulo

31 de agosto de 1969Depois da saída da presidência de Costa e Silva, incapacitado por uma trombose, junta de ministros militares assume o poder

7 de setembro de 1969 - O embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, é libertado após passar quatro dias em poder dos sequestradores, integrantes de movimentos da luta armada. Os 15 presos políticos libertados embarcam para o México

O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: ANODE1969
O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: Acervo

 

18 de setembro de 1969 - O governo aprova nova Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de morte e prisão perpétua

30 de outubro de 1969 - O general Emílio Garrastazu Médici assume a presidência

4 de novembro de 1969 - Carlos Marighella, líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), é morto a tiros em São Paulo

15 de março de 1974 - Ernesto Geisel assume a presidência

25 de outubro de 1975 - O jornalista Vladimir Herzog é morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Seis dias depois, mais de 10 mil pessoas participam de ato ecumênico na Catedral da Sé em memória de Herzog

17 de janeiro de 1976 - O metalúrgico Manuel Fiel Filho morre nas dependências do DOI-Codi. Como ocorreu com Herzog, versão oficial indica suicídio; mais adiante, fica comprovada a morte sob tortura

1º de abril de 1977 - Geisel fecha o Congresso Nacional

13 de outubro de 1978 - Sob o governo Geisel, é promulgada emenda constitucional que revoga todos os atos institucionais e complementares contrários à Constituição. Emenda passa a vigorar em 1º de janeiro de 1979. O AI-5 durou pouco mais de dez anos

Veja as nove páginas do Ato Institucional nº 5

Documento original está no Arquivo Nacional em Brasília

O primeiro ato institucional foi decretado nove dias após o golpe militar de 1964. O segundo foi editado em 1965, e outros dois em 1967. O mais radical e abrangente deles, o AI-5, é de dezembro de 1968. Foi seguido por outros 12 atos, todos decretados em 1969.

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O preâmbulo indica a necessidade de manter a "ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana" e a "luta contra a corrupção" como meios para atingir "reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil"

pág. 2
Cita o AI-2 e o AI-4 para justificar um novo ato a fim de continuar a "Revolução" iniciada em 1964. Embora não haja referência explícita, umas das motivações do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), em que fez críticas duras aos militares

pág. 3
Ao mencionar "fatores perturbadores da ordem", refere-se à votação na Câmara no dia anterior, contrária ao governo, aos movimentos estudantis e grevistas, aos atentados de grupos de esquerda, entre outros pontos. Dá aval ao presidente para decretar o recesso do Congresso

pág. 4
Já no primeiro item do artigo 2, o regime impõe o recesso parlamentar. O presidente ganha poder para enviar interventores para estados e municípios

pág. 5
Um dos trechos mais duros do documento. A partir de então, "para preservar a Revolução", o presidente pode suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos, além de cassar mandatos eletivos

pág. 6
Gama e Silva, ministro da Justiça, ganha poder no governo Costa e Silva para vigiar os cidadãos e limitar seu acesso a determinados lugares

pág. 7
O artigo 8 dá poderes para que o presidente, após investigação, decrete "o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública"

pág. 8
O ponto central da penúltima página é o artigo 10, que suspende o habeas corpus em casos como crimes políticos e crimes contra a segurança nacional

pág. 9

Nas duas últimas páginas, estão as assinaturas de Costa e Silva e de 16 dos 24 membros do Conselho de Segurança Nacional

Capítulo 2

"Sacrificamos algumas coisas não fundamentais", disse Costa e Silva aos EUA sobre o AI-5

Arthur da Costa e Silva em 1965. Foto: FolhapressArthur da Costa e Silva em 1965. Foto: Folhapress

 

Por Rubens Valente e Marco Rodrigo Almeida

BRASÍLIA E SÃO PAULO

Em janeiro de 1969, menos de um mês após o AI-5, o então presidente brasileiro, o general Costa e Silva (1899-1969), reconheceu numa conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill (1910-1996), que a ditadura havia "sacrificado algumas coisas não fundamentais" com o Ato para "preservar as fundamentais", conforme argumentou. Ele tachou a imprensa de "irresponsável", os políticos como adversários das "realizações da Revolução", referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava para o grupo de países latinoamericanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina) que viviam sob "regimes de exceção".

O documento mostra que Costa e Silva procurou ganhar tempo com o embaixador americano: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia uma "completa tranquilidade" no Brasil e que as coisas voltariam "ao estado de normalidade oportunamente", com a cautela necessária. O AI-5, contudo, só foi revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978.

Ocorrida no palácio presidencial de verão em Petrópolis na presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi registrada num telegrama, então classificado como confidencial e atualmente disponível para consulta no arquivo virtual do Departamento de Estado dos EUA, produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.

Costa e Silva recebeu Tuthill com "cumprimentos efusivos" e logo "se lançou em um de seus longos monólogos", ao qual deu um fim abrupto, quando soou "o toque de recolher", às 18h00. O embaixador reclamou depois que "mal conseguiu encaixar uma palavra".

Depois de uma introdução "longa e desconexa" sobre os méritos das lentes de contato, o general comentou que Tuthill deixava a América Latina num momento "confuso" para a região, com a Colômbia em estado de sítio e outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em "regime de exceção". O Uruguai era "um bom vizinho", mas estava "virtualmente "entregue aos comunistas"", escreveu o embaixador.

O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar "consideravelmente cônscio das críticas dos EUA" sobre o AI-5 e "aparentemente as compreende". Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que os EUA têm uma "vida estratificada" e que "não se pode esperar que compreendam os problemas dos países em fase de desenvolvimento".

Foi a deixa para uma das poucas intervenções do embaixador. Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam "impor seu padrão a qualquer outro país", mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967, escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado "três coisas que eu precisava ter em conta": "1) As Forças Armadas são a instituição mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalharia por um retorno a uma situação na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente".

Tuthill contou ter usado essas declarações em seus relatórios para o governo dos EUA em Washington, que agora "vinha acompanhado os atuais desdobramentos com preocupação". O embaixador indagou à queima-roupa: "O presidente gostaria que eu transmitisse alguma mensagem?"

Costa e Silva demonstrou preocupação sobre o imagem que o Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI-5. Pediu que que o embaixador explicasse "toda a situação" para seus superiores e pontuou que havia "completa tranquilidade" no Brasil, em uma de suas expressões favoritas, que repetiu "diversas vezes" na conversa. O general falou do sacrifício "de algumas coisas não fundamentais" e culpou basicamente dois setores para o estado de coisas: os meios de comunicação e "a classe política", a exemplo do que já havia feito dias antes em seu discurso de Ano Novo.

"Ele [general] disse ter trabalhado por um entendimento entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um entendimento. Se estivéssemos [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que os políticos desejam desmantelar todas as realizações da Revolução. "Ninguém trabalhou com mais afinco do que eu [general] junto aos políticos, mas eles se recusaram a compreender"", escreveu o embaixador.

Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou "das dificuldades que enfrentou", citando como exemplo o "Correio da Manhã", jornal do Rio fundado em 1901 que fazia uma cobertura crítica sobre o regime militar desde o golpe. Sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), naquele mesmo mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada pela ditadura. Ficou num cárcere em Bangu, no Rio, em uma ala reservada a ladras e prostitutas, segundo texto de 2009 do escritor e jornalista Ruy Castro. Niomar foi absolvida em 1970 mas o jornal, sob intensa pressão política e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.

Na conversa, Costa e Silva reclamou com o embaixador que "desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez o "Correio da Manhã" imprimiu uma carta que ele [general] estaria supostamente enviando ao presidente eleito [Richard] Nixon". "Não existe uma carta como essa. Uma coisa desse tipo não seria permitida nos EUA, e o "Correio" teria sido processado, mas nossas leis não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsável ("a de vocês nos EUA é mais responsável"). O "Correio" publicou até todas as críticas na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de ontem do jornal", escreveu Tuthill.

Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador "para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos EUA. Isso talvez não fosse verdade sob "os outros" (ele estava se referindo presumivelmente ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)".

Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou convencido. "É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. É evidente que agora está ciente das forças irrequietas entre os militares brasileiros, mas pode ser que esteja convencido (ou tentando se convencer) de que é capaz de contê-las. A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestimando as forças que estão em ação em seu país."

"Direitos deixaram de existir"
As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.

Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhada pelo secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era como os EUA lidariam "com os programas de assistência" entre os dois países.

Tuthill respondeu que "não havia problema de reconhecimento e que o governo americano não cortaria suas assistência", mas deixou claro a Magalhães Pinto que "a reação em Washington aos acontecimentos recentes havia sido muito forte".

O embaixador pontuou que era necessária "uma indicação melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituição de direitos democráticos básicos". Nesse momento, Magalhães Pinto "concordou rapidamente que esses direitos deixaram de existir".

Tuthill disse que governo americano cumpriria suas obrigações contratuais, mas ""esperaria para ver" quando a futuros programas da AID [Agência de Desenvolvimento Internacional] e quanto aos programas em negociação no momento".

Magalhães Pinto ofereceu uma lona explicação sobre os acontecimentos que, segundo ele, conduziram ao AI-5. Afirmou que "as pressões vinham crescendo há algum tempo" e que o discurso do então deputado Marcio Moreira Alves, considerado o estopim do Ato, "não representava mais que 10% ou 15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido". Depois da votação no Congresso que negou autorização para processar Moreira Alves, segundo o chanceler, "ficou claro que as Forças Armadas desejavam que o presidente agisse".

O chanceler disse que "o presidente resistiu". Tuthill escreveu no telegrama que "outras fontes confirmam". "Na primeira noite, ele [Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria "ultrapassado". Assim, ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucional número 5."

O chanceler brasileiro argumentou que "a intenção do presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme mas moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o desenvolvimento econômico. Parte disso é imaginário mas parte representa fatos sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a imagem de um governo militar".

Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler de um rápido retorno à normalidade. "O presidente deseja o retorno da plena liberdade de imprensa o mais breve possível, "mas a poeira do ato institucional ainda não se assentou". O maior problema é que as forças armadas consideram a imprensa responsável pela agitação estudantil. Fica claro que o FonMin [Magalhães Pinto] enfrenta dificuldade para explicar exatamente como a liberdade de imprensa poderá ser restaurada, agora", escreveu Tuthill. O Ato só seria extinto dez anos depois.

 

SÃO PAULO CINQUENTA ANOS DEPOIS, O PAÍS ESTÁ LIVRE DO RISCO DE UM NOVO AI 5?

Num exercício teórico -que, se espera, nunca chegue ao plano da prática- a Folha ouviu especialistas em direito e comunicação para especular de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.

O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao presidente censurar a imprensa, correspondências, telecomunicações e diversões publicas. "As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais", escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha, no livro "A Ditadura Envergonhada".

Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais ampla e intensiva que ocupar órgãos de comunicação.

"A experiencia com países autoritários demonstra que a primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e, mais recentemente, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia ser o bloqueio à internet em todo o país", diz Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.

Não seria algo muito complexo de realizar, explica -o país já teve amostras disso nos episódios em que o servio de mensagens instantâneas WhatsApp foi interrompido por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as empresas de telecomunicação a suspender a conexão.

"Seria um rompimento institucional muito grave e as empresas deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de cumplicidade com uma medida de exceção."

Pablo Ortellado, professora da USP que se dedica ao estuda das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativos sociais do Ocidente foram banidos e substituídos por similares desenvolvidos por empresas chinesas subordinadas ao poder do Estado. Dessa maneira é possível vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinados temas e palavras.

"Se o país não desenvolver programas nacionais, é muito difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinado país. Num caso extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais".

Ele destaca o nefasto processo de submissão pelo qual passaria a sociedade civil após uma ação absolutista como essa, uma vez que as redes sociais cumprem uma função de informação e mobilização social.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.

"Na verdade, a internet até ajuda na perseguição, pois acaba sendo uma ferramenta informatizada de delação premiada. Tudo o que se faz gera um registro. Tecnicamente é muito simples identificar o usuário", diz.
Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.

Para o advogado Diogo Rais, uma novo de AI 5 teria uma roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitário controlaria a desinformação. As forças da ditadura teriam um setor de distribuição em massa de notícias falsas.

"Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfiança em relação às instituições, à imprensa tradicional. Poderia levar a uma erosão perigosa dos princípios democráticos", especula.

Um novo AI 5 parece ser um cenário apocalíptico demais para ser concretizado, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao Estado.

"A democracia é um processo de construção permanente, incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la radical e incondicionalmente", afirma o advogado constitucionalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

"Os meios de resistência contra o arbítrio são lutar para manter nossas instituições fortes, independentes e imparciais, e a garantia da possibilidade do dissenso democrático, de organizações da sociedade civil e da liberdade de expressão."

 

 

Capítulo 3

'Brasil perdeu um pedaço da história', diz deputado cassado na 1ª lista do AI-5

Naief Haddad
SÃO PAULO

Em 1978, o ex-deputado federal pelo MDB paulista David Lerer voltou ao país depois de jornadas pela América do Sul, Europa e África. Havia deixado o Brasil uma década antes com medo de ser preso.

"Nas semanas anteriores ao AI-5 [ato institucional número 5], todos [no Congresso] já sabiam que algo iria acontecer. O ministro Gama e Silva circulava com um rascunho do ato. Era um segredo de polichinelo", conta ele, também médico aposentado.

David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5. Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp

David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5.
Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp - Folhapress

 

No dia 13 de dezembro de 1968, poucas horas antes da reunião da cúpula do governo que sacramentou o AI-5, ele esteve na Câmara, em Brasília. Foi uma passagem rápida porque Lerer e os raros parlamentares que estavam na capital temiam que os militares invadissem o Congresso Nacional a qualquer momento.

Com seu fusca, Lerer saiu em direção a uma agência do Banco do Brasil para sacar todo o dinheiro que tinha. Em seguida, foi ao hotel onde se hospedava para fazer a mala.

Decidiu permanecer em Brasília, mas agora instalado numa casa de estudantes, que estava vazia àquela altura.

Três dias depois, os jipes da Polícia Militar estacionaram em frente à residência. "A PM arrombou a porta e me deu uns tabefes. Eu estava de cueca, me pegaram de samba-canção [risos]. Botei a calça do pijama, peguei minha mala e fui com eles".

Ele estava na carceragem em Brasília quando saiu a primeira lista de cassações, em 30 de dezembro de 1968. A relação divulgada pelo governo federal trazia dez nomes de deputados federais, entre eles o de Lerer. Além dele, estão vivos Gastone Righi e José Lurtz Sabía, ambos pertencentes ao MDB paulista.

Nas semanas seguintes, outras listas com cassações foram anunciadas pelo regime.

Além das cassações, o endurecimento promovido pelo AI-5 resultou em aposentadorias compulsórias, direitos políticos suspensos e demissões, além de mortes de militantes da esquerda armada.

Liberado pelos policiais em 31 de dezembro, Lerer pegou um ônibus na rodoviária de Brasília dias depois e retornou a São Paulo, onde viviam seus pais. Proibido de atuar na política, voltou a trabalhar como médico.

Não manteve, contudo, uma rotina normal. "Eu via uma farda militar na rua e já ficava aflito", recorda-se. Era obrigado a se apresentar à Polícia Federal uma vez por semana.

Após a prisão de Hélio Navarro, deputado da oposição cassado como ele, Lerer se deu conta que a sua detenção estava prestes a acontecer. Embora seu passaporte tivesse sido confiscado pelos policiais, ele estava determinado a deixar o país.

Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp

Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de
dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp -Folhapress

 

Com a ajuda de um amigo advogado gaúcho, passou por Canoas (RS) e Porto Alegre até desembarcar em Santana do Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. De lá, incomodado pelo frio intenso, mas não pelos guardas, atravessou a divisa caminhando e chegou a Rivera, no país vizinho.

Nos anos seguintes, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola.

Hoje vive com a mulher, Katia, em São Sebastião, no litoral paulista. Está afastado de atividades partidárias, mas se mantém atento à política.

"Houve um grande desestímulo à juventude [com o AI-5], o sentimento de "podemos mudar o mundo" foi perdido. Entre 1968 e 1978 [período em que vigorou o ato], o Brasil perdeu um pedaço da história", afirma Lerer. "O vício do autoritarismo se reforçou nessa época."

 


Valor: AI-5 faz 50 anos em país polarizado; general Heleno defende decreto da linha-dura

Traumas demoram a passar. Cinquenta anos depois daquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, ainda causam emoção e controvérsias os motivos que levaram o então presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) a editar o Ato Institucional nº 5, o AI-5, marco do início dos anos de chumbo.

Por Helena Celestino, do Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Quando, numa tarde ensolarada, o marechal-presidente abriu a reunião com as 24 autoridades mais poderosas do país, em volta da mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras no Rio, já estava tomada a decisão de armar o Estado de poderes extraordinários, libertando o regime, por tempo indeterminado, das já tênues amarras legais.

Durou dez anos, foi o período mais duro da mais longa ditadura brasileira (1964-1985) e, mais de três décadas após a redemocratização, muitas das ideias consagradas sobre a radicalização do regime foram derrubadas com a abertura de novos arquivos, profusão de livros, filmes e teses a revisitar o período. Mas a interpretação do passado ainda reflete a polarização política de ontem e de hoje.

"Assinei e, se as condições fossem as mesmas e o conhecimento fosse aquele que a gente tinha naquele instante, assinaria outra vez", diz Delfim Netto, o único sobrevivente da histórica reunião, da qual participou aos 40 anos como ministro da Fazenda ainda apagado, mas já com passagem bem-sucedida como secretário de São Paulo e autor de tese de doutorado sobre café, na época o produto que mais mexia com a economia brasileira. (Leia entrevista na página 12)

A fidelidade ao passado não impede Delfim de ridicularizar, duas décadas depois, o solene pronunciamento feito, em cadeia nacional de televisão, pelo então ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva (1913-1979) horas depois da decretação do AI-5. Em nome do governo, ele justificava o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos, a prerrogativa de demitir funcionários públicos, a suspensão do habeas corpus, o cancelamento da liberdade de expressão e de reunião, pela necessidade de poderes extraordinários contra a ameaça comunista.

O perigo seria representado pelas manifestações estudantis, as ações armadas da esquerda e, como cereja no bolo da insubordinação, o discurso do deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009) na tribuna da Câmara, em que se referia ao Exército como santuário de torturadores. "Naquela época do AI-5, havia muita tensão, mas, no fundo, era tudo teatro… Era teatro para levar ao ato", disse Delfim ao jornalista Elio Gaspari, autor de cinco livros com minuciosa reconstituição da ditadura.

Foi prosaico assim, concorda a maioria dos historiadores. "Os protestos estudantis acabaram em junho e nem havia ainda as ações armadas. O Estado brasileiro tinha todas as condições para cuidar de alguns assaltos e meia dúzia de protestos", afirma Carlos Fico, historiador, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e reconhecido como grande pesquisador do período.

O alvo principal do ato não era a esquerda armada, mas antigos aliados de 64, afirma o historiador Rodrigo Patto. O governo temia que o Congresso votasse uma Lei de Anistia, acusava os professores de estimular a revolta dos estudantes, via na imprensa simpatia com os protestos e, nos juízes, impedimento para a "justiça revolucionária" agir livremente. O AI-5, analisa, forneceu ao Estado meios para punir segmentos do seu campo, grupos de centro ou liberais flertando com a rebeldia.

A interpretação do professor é reforçada por enquete do então embaixador dos EUA John Tuthill (1910-1996), recuperada em um arquivo americano, em que ele expressa o desconforto da diplomacia de seu país com o fim das garantias institucionais no Brasil e ouve de políticos, intelectuais e empresários brasileiros previsões de tempos difíceis pela frente.

"A sensação era de que o novo Ato Institucional liberava as feras, que saíram à caça com mais vontade do que em 64", diz Patto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "As Universidades e a Ditadura" (Zahar).

A partir daí, a ditadura tornou-se mais militar, mais autoritária, reduziu o espaço para atuação de aliados civis e botou os políticos em situação ainda mais subalterna. O "milagre econômico" já começara, mas a velha máxima "é a economia, estúpido" não ajudou a melhorar o clima político. Depois de um longo ajuste fiscal promovido pelo governo de Castello Branco (1897-1967), a liberação de crédito ao consumo estimulava a economia e já em 1968 o país cresceu 10%, iniciando um ciclo de taxas recordes de aumento do PIB até 1973. Só que a sensação de melhoria na qualidade de vida ainda não chegara à elite brasileira e, muito menos, aos mais pobres, dizem alguns especialistas.

"A crise foi estritamente política. O propósito que unificava os militares era transformar o Brasil em uma grande potência por meio de uma ação autoritária. O AI-5 não foi um fato episódico, foi a vitória da tendência saneadora, que achava necessário prender subversivos, corruptos e opositores para levar o projeto adiante", diz Fico, autor de livros importantes sobre o período.

Era a vitória da chamada linha-dura. A outra corrente, mais moderada, tinha uma dimensão pedagógica, acreditava na força da propaganda política para conquistar apoios e da censura para resguardar a moral conservadora. Ambas as tendências partiam do princípio de que a sociedade era despreparada, não sabia votar e cabia aos dirigentes o papel de "Messias". Os dois grupos se confrontaram ao longo da ditadura, às vezes ganhava força a corrente saneadora, outras, a pedagogia autoritária. "Eram dimensões distintas que expressam um propósito unificado, que chamo de utopia autoritária: tornar o Brasil um país rico ainda que a custo de direitos individuais, liberdade", afirma Fico.

 

O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, próximo ministro do Gabinete da Segurança Institucional, olha o passado de uma maneira semelhante à de Jair Bolsonaro (PSL) e ao discurso oficial da época. O homem que vai assessorar o presidente eleito em assuntos militares e de segurança acha que é fácil criticar agora o AI-5, longe do que qualifica de cenário de guerra revolucionária alastrando-se pelo país.

"Não era possível seguir permitindo que as forças da 'comunização' seguissem ganhando espaço por falta de instrumentos legais", diz o general, em defesa das medidas de exceção, consideradas como uma maneira de "partir para a ignorância" pelo diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI) da época, o depois presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999).

"O AI-5 começou a censurar antes mesmo de ser editado e a prender antes de ser anunciado publicamente", escreve o jornalista Zuenir Ventura no livro "1968: O Ano que Não Terminou". Nos dias seguintes ao 13 de dezembro, oficiais fizeram arrastões pelas cidades levando centenas de intelectuais, estudantes, artistas e jornalistas para as celas dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) e quartéis. Estavam nessa turma de Caetano Veloso e Gilberto Gil ao ex-presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), capturado enquanto descia as escadas do Teatro Municipal do Rio. Aos 75 anos, o jurista Sobral Pinto (1893-1991) foi levado de chinelos e meias para um quartel; o antigo aliado dos militares Carlos Lacerda (1914-1977) se viu na mesma cela que o seu arqui-inimigo Mário Lago (1911-2002), histórico comunista vestido de vilão, o figurino da novela que gravava ao "cair".

"Vivemos um terrorismo cultural", classificou Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), pensador católico importante nos anos 60. A suspensão do habeas corpus, princípio do direito para dar proteção ao cidadão contra arbitrariedades do Estado, devastou uma geração de brasileiros e deixou uma herança trágica: em documento entregue à então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2014, a Comissão Nacional da Verdade contabilizou 434 mortos ou desaparecidos, 7 mil exilados e 20 mil torturados.

"A partir do AI-5 monta-se a repressão política, organizada nacionalmente por setores de espionagem, setores da polícia política, setores de censura", diz Fico. O general Heleno contesta: "Apenas os excessos das forças do Estado são invariavelmente maximizados, enquanto as forças que desejavam transformar o Brasil em uma ditadura comunista são romantizadas".

As denúncias de abusos contra os direitos humanos afetaram as relações externas do Brasil com as grandes democracias ocidentais, mas não só da maneira esperada pela rede de solidariedade aos exilados, organizadas por ativistas e parlamentares na Europa e nos EUA. Documentos revelam que interesses comerciais falaram mais alto do que as palavras de ordem dos manifestantes nas ruas e, secretamente, Reino Unido e França colaboraram com os oficiais brasileiros em ação nos porões.

"Os brasileiros foram cobaias das técnicas de tortura usadas depois pelo Exército britânico contra o IRA [Exército Republicano da Irlanda]", diz o historiador João Roberto Martins Filho.

Professor da Universidade Federal de São Carlos, ele teve acesso a uma carta confidencial, de 1972, enviada pelo então embaixador britânico em Brasília, Sir David Hunt (1913-1998), ao Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, na qual comenta que os "métodos mais sofisticados de interrogatórios no Brasil foram influenciados por sugestões e recomendações do Exército inglês". Pelo texto, presume-se que os britânicos estariam sendo procurados de novo por brasileiros, e o diplomata escreve que, como seu interlocutor deve saber, a "colaboração com o Brasil já acabara há um ano e meio, ou seja, em agosto de 1971".

"Os britânicos construíram três salas de tortura no DOI-Codi na Barão de Mesquita, antes de fazer isso na Irlanda, perto de Belfast", diz Martins Filho, autor do livro "Segredos de Estado - O Governo Britânico e a Tortura no Brasil". Eram cubículos pintados de preto ou completamente brancos, hermeticamente fechados, mantidos sob frio intenso ou calor escaldante, bombardeados com sons em alta frequência, variações de luz e ameaças gritadas em alto-falantes.

Uma réplica dessa sala escondia-se numa prisão na Irlanda, onde os membros do IRA também conheceram a arquitetura e os métodos de interrogatórios do Exército britânico, exportados depois para a prisão de Abu Ghraib, onde os EUA torturavam prisioneiros no Iraque. "O prisioneiro ficava no escuro muitas horas, perdia a noção do dia e da noite, começava a ouvir vozes e não sabia mais se eram deles ou não", afirma o professor.

Para a rua Barão de Mesquita eram levados os ativistas nos anos 70. O jornalista Álvaro Caldas esteve lá duas vezes e constatou a modernização da tortura entre a primeira e a segunda prisão. Na primeira, era pau de arara e choque elétrico, juntos ou separados. Na segunda, foi deixado numa das salas especiais e viu que era tudo novinho, notou que os fios elétricos eram importados e achou tudo parecido com consultório de dentista. "Fiquei sozinho, ouvindo o barulho, até que entrou um cara e, de um púlpito, dizia: 'Agora não torturamos mais', como se não estivesse me torturando", relembra Caldas. A história abre o livro "Tirando o Capuz".

O "Times" de Londres foi o primeiro a denunciar o uso das "técnicas do Ulster [Norte da Irlanda]" e, por exigência do arcebispo ao primeiro-ministro britânico, a tortura foi proibida logo depois. Em relatório secreto consultado pelo pesquisador, um general citava enviados de muitos países, a Alemanha Ocidental entre eles, para aprender as técnicas britânicas de interrogatório. O Brasil não estava na lista, mas há registros de militares brasileiros em Londres e vice-versa.

"O documento comprova a participação direta do Reino Unido na construção da tortura no Brasil", diz Martins Filho. Contatada, a embaixada do Reino Unido em Brasília não respondeu ao pedido de informações sobre o assunto.

 

Após o AI-5, ficaram mais complexas as relações diplomáticas do Brasil. Os EUA, aliados ativos no golpe de 64, agora estavam reticentes e divididos. O Conselho Nacional de Segurança propunha o esfriamento das relações com o Brasil e senadores defendiam o corte da ajuda externa aos brasileiros. Documento do Departamento de Estado mostrava a preocupação do então secretário Dean Rusk (1909-1994) com o rumo da política, mas, na Casa Branca, prevalecia o pragmatismo. Só que o Congresso, em conflito com governo de Richard Nixon (1913-1994) desde 1965, impusera ao Executivo a apresentação de um relatório anual sobre a situação dos direitos humanos nos países compradores de armas, restrições que dificultavam negócios com os militares brasileiros interessados em reequipar as Forças Armadas.

O Reino Unido percebeu a oportunidade de bons negócios. A moeda de troca para passar tecnologia a ser usada contra opositores da ditadura foi a compra de seis fragatas da Marinha inglesa, um negócio de 100 milhões de libras financiado por um consórcio de oito bancos britânicos, diz Martins Filho. As relações comerciais entre os dois países eram públicas e provocavam protestos na cidade-sede da Anistia Internacional. O apoio aos porões, naturalmente, era secreto lá e aqui. "Provavelmente, os primeiros-ministros não sabiam", diz o pesquisador.

Padrão semelhante tiveram as relações entre França e Brasil. Paris honrava a fama de pátria dos exilados políticos do mundo: recebeu bem os brasileiros expulsos pela ditadura, mas foi igualmente acolhedora com as autoridades que os perseguiam. Negociava-se com a Força Aérea Brasileira 16 caças Mirages, um negócio com cacife para evitar as críticas oficiais do país dos direitos humanos às torturas nas prisões brasileiras. "Generoso no asilo, o governo francês era severo na vigilância dos exilados e cordial nas relações com a embaixada", resume Elio Gaspari, em "A Ditadura Escancarada".

As denúncias ecoavam em jornais, nas universidades e materializavam-se em protestos no Parlamento e nas ruas, com apoio de sindicatos e da esquerda francesa. Só dom Helder Câmara (1909-1999), arcebispo do Recife, numa passagem por Paris, reuniu no Palácio dos Esportes 10 ml pessoas para ouvi-lo pedir que denunciassem ao mundo que no Brasil se torturava.

O governo brasileiro rotulava esse movimento de "campanha de difamação do Brasil no exterior" e chegou a contratar um escritório para publicar textos elogiosos ao país num obscuro jornal, "East Ouest". O historiador Paulo César Gomes encontrou documentos da embaixada brasileira relatando artifícios arquitetados para fazer o arcebispo perder o passaporte e, no Ministére des Affaires Étrangeres, teve acesso a dossiês completos sobre a vida em Paris do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981), do escritor Josué de Castro (1908-1973) e do jornalista Samuel Wainer (1910-1980).

"O governador Miguel Arraes [1916-2005], na época morando na Argélia, só recebia visto de entrada na França se o cunhado francês, Pierre Gervaiseau, assinasse termo de responsabilidade por ele", diz o pesquisador, autor de livro sobre o tema que será lançado em 2019.

Quase oficial foi a exportação para a América Latina da doutrina militar francesa, batizada de guerra antissubversiva. O método, cuja arma principal era a tortura, foi sistematizado após a derrota do Exército francês contra a Frente de Libertação Nacional da Argélia e, nos anos 60, foi ensinado a brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios. Em 1972, quando o Brasil enfrentou a guerrilha do Araguaia, um ex-general da batalha de Argel, Paul Aussaresses (1918-2013), veio servir como adido militar em Brasília e deu aulas no Centro de Instrução de Guerra na Selva, com sede em Manaus.

"Antes de morrer, ele me contou que ensinou tortura aos militares brasileiros", diz Marie-Monique Robin, autora de "Escadrons de la Mort: L'École Française" [Esquadrões da Morte: A Escola Francesa], livro e filme sobre o tema.

 

 

"Essa estrutura de repressão política trouxe um prejuízo generalizado à sociedade brasileira", diz Fico. Ele dá o exemplo da rede de espionagem criada para monitorar autarquias, estatais e universidades, fazendo com que todas as ações da esfera pública passassem a ser pautadas pela comunidade de informações, a essa altura o grupo mais poderoso do aparelho de Estado. "Muita gente foi vítima dessa comunidade de informação", afirma o historiador.

O general Heleno rechaça as críticas. "A história do Brasil, durante o que chamam de regime militar, jamais foi contada com imparcialidade, a começar pela falsa afirmativa de que a tortura, os sequestros e os assassinatos foram institucionalizados", diz.

Essa tragédia política brasileira, desenrolada com mais intensidade durante os dez anos de AI-5, poderia ter sido abreviada se não fosse mais um desses acidentes que pontuam a história do país. Arquivos revelam a intenção de Costa e Silva de outorgar uma nova Constituição, em que o presidente teria poder de revogar "qualquer ou todos os artigos do AI-5". O vice, Pedro Aleixo (1901-1975), e juristas trabalharam no projeto. O marechal participou de reuniões e fez anotações. Marcou para 1º de setembro a reabertura do Congresso (fechado desde o AI-5), ocasião em que promulgaria a emenda constitucional para revogar o AI-5.

Mas Costa e Silva teve uma trombose em agosto de 1969. Fico relata seus últimos movimentos no poder: "Estava muito pressionado pela linha-dura, aconselhavam-no a não abrir mão de parte dos poderes do AI-5. Na última reunião, o homem autoritário e tido como burro, faz um desabafo dizendo que nunca quis impor a tirania ao Brasil. Já era doente, mas provavelmente o estado dele se agravou pela pressão política".

A sequência dessa história é arquiconhecida: na sequência, os três ministros militares dão um golpe e impedem Pedro Aleixo de assumir a Presidência. "Aí, sim, acontece o golpe dentro do golpe. A junta promulga a Constituição sem o artigo 182", diz Fico.

O general Heleno vê o periodo como a consolidação da vitória do Brasil contra o comunismo: "Concordo com o general Leônidas [Pires Gonçalves], quando afirma que o Brasil se transformaria em um verdadeiro continente sócio-marxista, se não fosse o regime militar. O AI-5 aconteceu dentro desse contexto". Tudo indica que as profundas cicatrizes e divisões da sociedade deixadas por esses anos ainda atravessarão novas gerações. (Colaborou Monica Gugliano)

Nota da Redação: Esta reportagem foi publicada na edição impressa com o título Uma utopia autoritária.

A relação entre arte, democracia e utopia

Todos estão em torno dos 70 anos, os cabelos são grisalhos, os corpos têm as marcas do tempo. São 12 ao redor de uma mesa, as vozes às vezes se quebram num choro contido. A plateia, uma maioria de companheiros de geração salpicada por muitos jovens, enxuga as lágrimas, em meio a sorrisos ternos provocados pelas lembranças. É uma leitura dramática, mas não como as outras que marcam o início de ensaios. "O Mutirão", nome provisório desse espetáculo, está sendo construído há dois anos em um trabalho de criação coletiva. É uma arqueologia sentimental do Tuca, grupo de teatro universitário da década de 60, entremeada com a memória dos 50 anos de vida dos então jovens atores amadores, trazendo junto meio século da história do Brasil.

As apresentações aos sábados de manhã, na UFRJ, e as sessões especiais para estudantes universitários comovem. Remexem num passado doloroso, revisitado também em documentários como "Torre das Donzelas", em que Susanna Lira retrata as presas políticas durante a ditadura militar no presídio Tiradentes, ou na transposição para o cinema de "Rasga Coração", peça-símbolo da luta contra a censura escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e filmada agora por Jorge Furtado. O Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa estreou nesta semana a remontagem de "Roda Viva" e mostras no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo (encerrada no mês passado) ou no Museu de Arte do Rio (MAR) discutem, respectivamente, os custos da retirada dos direitos no imaginário cultural do país e a relação entre arte, democracia e utopia.

Lembrar para não repetir está no espírito de todas essas manifestações culturais. Talvez a mais despretenciosa, mas não menos poderosa, seja a memória do engajamento cultural contra a ditadura e a reflexão sobre o tempo político vivido, encenada pelos agora envelhecidos atores amadores, para comemorar os 50 anos do Tuca. "Ficamos atrevidos, achamos que nossa geração tem algo a dizer", reforça um deles para o público. "Estamos criando algo novo, tudo tem uma ressignificação", diz Amir Haddad, o diretor do passado e do presente, em mais um ensaio na semana passada.

Esse tempo revivido começa com a formação do grupo em 1966, tem o momento de glória com a montagem de "Coronel de Macambira" em 67 e a fase feliz acaba em dezembro de 68 com o AI-5. Foram dois anos que deixaram marcas na trajetória de cada um e na história do teatro. "Pouco mais do que um adolescente, fiquei encantado com a encenação. Ali, em plena ditadura, o Brasil era o boi, que afinal ressuscitava, e dele se ouvia o rumor dos passos", disse o deputado Chico Alencar (PSol), num depoimento ao "Globo" em 2016.

A vida brasileira desfilava na grande praça montada no palco, nesta adaptação de "Bumba Meu Boi", criada pelo poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), o também famoso engenheiro dos projetos de Oscar Niemeyer (1907-2012). As músicas, compostas por Sérgio Ricardo, eram todas originais e jamais foram gravadas. Haddad, um homem de teatro já confirmado, largou tudo para, encantado, trabalhar com aquele bando de jovens: eles eram 36 no palco, revezando-se em 45 papéis, mas eram muito mais atrás das cortinas, ajudando, aplaudindo e discutindo, registrou Arthur Poerner, no "Correio da Manhã", em 1966: "O Tuca é fundamentalmente o movimento estudantil".

O trabalho teatral era parte da luta pela democracia. O projeto do grupo era levar o teatro à periferia, aos sindicatos, às cidades pequenas. Eram apenas estudantes contra a ditadura, mas, após o AI-5, muitos deles foram presos, torturados, exilados e demitidos dos empregos.

E se a gente lesse de novo o "Macambira"? A ideia foi lançada no primeiro reencontro do grupo há três anos e resultou no espetáculo de agora. Nesse "Mutirão", trechos do texto e das músicas originais são intercalados com o relato do processo de criação e depoimentos dos atores sobre como eram no passado, por onde andaram e como são agora. "Tudo que é dito aqui foi intensamente vivido ou testemunhado por nós. Nada é ficção", diz Amir Haddad, narrador do espetáculo.

Ninguém conta para o público a sua história, mas todos reconhecem como seus os sentimentos vividos por cada um dos outros. Por exemplo, a dor e o medo na cadeia. "Não dá para esquecer. O barulho das chaves na Ilha das Flores, cada vez que o guarda ia buscar alguém para o interrogatório. Esse barulho a gente carrega pela vida toda", diz uma delas.

Ou a solidão do exílio para os que foram e o clima opressivo criado pela desconfiança e a repressão para os que ficaram. "Essa atmosfera que asfixia a liberdade dificulta a respiração", diz um deles.

O humor e a ironia permeiam os relatos. "Chegamos [as três exiladas] a Santiago do Chile, e, talvez por ver uma de nós carregando um violão, um jornalista perguntou: 'Ustedes no son el trio Bangu?'." Na volta ao Brasil, com a Anistia, a alegria se mistura ao estranhamento. "Reencontrar os amigos traz um sentimento ambíguo. Eles estão diferentes, mudaram. Descubro que eu também", reconhece.

Com o fim da ditadura, a vida retomou uma certa normalidade, e a maioria seguiu as profissões para as quais se preparavam. Haddad criou o Tá na Rua e continua dando aulas. Três deles se tornaram atores profissionais: Márcia Fiani, Renata Sorrah e Roberto Bonfim, outros são economistas, químicos, engenheiros, professores. Para todos, é importante contar os sonhos, as derrotas e as vitórias. A emoção do público parece demonstrar que é importante ouvir. No ano que vem o espetáculo volta ao mesmo lugar, no mesmo horário.

Produção artística era vista como uma grande ameaça

"Fecha esta exposição." Era 1969, a Petite Galerie expunha as obras de Carlos Vergara, já naquela época um nome importante nas artes visuais brasileiras. Em exibição estava "Berço Esplêndido", instalação de caixotes com um manequim como um corpo morto enrolado na bandeira dos Estados Unidos e do Brasil. Pelo chão da sala, uma palavra repetida muitas vezes: penso, penso, penso.

Um general morava perto da galeria, em Ipanema. Passou por ali, ficou irritado com o que viu e deu a ordem. "O general não disse nem o nome. Mandou fechar, simples assim, simples como um bom-dia", afirma Vergara, 50 anos depois. Franco Terranova (1923-2013), dono da Petite Galerie, ligou para o artista, contou a história, e os dois desmontaram a exposição.

"Nasci em 1941, vivi toda a época libertária juscelinista. Para quem teve um início assim, foi muito violento. Pensei em ir para a clandestinidade, mas achei que minha arte poderia ser mais útil. Com trabalhos que não fossem das musas, fossem mais perigosos, que contivessem dados do real, como os músicos faziam, o teatro fazia, todos tentando manifestar uma visão libertária do mundo", diz o artista.

Com um público mais reservado, as artes plásticas foram menos afetadas pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, do que a música, o cinema e o teatro, mas algumas manifestações criaram enormes polêmicas no país, como as trouxas ensanguentadas espalhadas pela cidade por Arthur Barrio, numa referência à violência da repressão. Ou a performance de Antonio Manuel nu, apresentando-se como obra de arte no Salão Nacional de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Estava conectado com a "body art", um dos caminhos da arte no mundo. Mas aqui foi proibido, estávamos em 1970.

"Depois ele construiu um belo trabalho com a foto dele nu numa caixa", diz Paulo Sérgio Duarte, crítico de arte, curador e professor. Duarte mostra como o desdobramento da política na produção artística nessa época se dá por uma obra mais reflexiva, uma tendência internacional que faz uma crítica forte da arte como mercadoria. "São trabalhos muito importantes, mas que não se entregam sem o pensamento, você é obrigado a pensar", diz.

No Brasil ocorre com Waltercio Caldas, Antonio Dias (1944-2018) e, um pouco mais tarde, Tunga (1952-2016), um grupo de artistas com trabalhos de muita potência que repercutem hoje em todo o mundo. "O interesse em não produzir uma obra comercial é político", afirma.

Fazer pensar ficou perigoso nos anos de chumbo. O poder público foi usado como polícia pedagógica, destinada a perseguir desviantes, rotulados de comunistas e acusados de pregarem ideias para destruir os pilares da civilização ocidental: a família, a moral sexual e as bases do direito penal e civil. Só depois da Lei da Anistia (1979), foram reintegrados à universidade os 66 professores expulsos com o AI-5, entre eles Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), a historiadora Maria Yeda Linhares (1921-2011). Para combater o pensamento marxista que teria se infiltrado nas instituições culturais, o Estado abriu inquéritos policiais e militares contra "think tanks" (Iseb, por exemplo) e centros de cultura, como o CPC da UNE. Interveio nas escolas e universidades, com uma legislação repressiva forte, aulas de moral e cívica do ensino fundamental às faculdades e incentivos à espionagem. E usou a censura sem moderação.

"Criou-se um clima de medo e revolta. Uma situação muito violenta contra as atividades intelectuais e culturais. A censura, instituída por lei em 1970, vai ser muito pesada contra artes e espetáculos regidos por essa lei", diz Marcelo Ridenti, professor do Instituto de Filosofia da Unicamp e autor de livros sobre cultura e ditadura.

As histórias são conhecidas, mas os números impressionam. Em dez anos, os censores examinaram em torno de 22 mil peças de teatro, das quais 700 foram proibidas na íntegra e outras centenas tiveram trechos cortados, contabiliza a pesquisadora Miliandre Garcia.

Cerca de 500 filmes (muitos estrangeiros) foram banidos das telas brasileiras, a maioria por questões morais ou religiosas - um exemplo foi "Último Tango em Paris" (1972), clássico do cinema de Bernardo Bertolucci (1941-2018). A literatura foi um pouco menos afetada, mas 430 livros não puderam chegar às livrarias, dos quais 92 escritos por brasileiros. Centenas de letras de canções foram vetadas pela censura, levando Chico Buarque a recorrer a pseudônimos e sair do país, mesmo caminho seguido por Caetano Veloso e Gilberto Gil. A imprensa foi controlada de modo severo entre 1969 e 78, sujeita a arbitrariedades de censores, já que não havia regulamentação específica para jornais e noticiários em televisões e rádios.

Em muitos jornais, sob mordaça, estampava-se o ufanismo do Brasil Grande e a família tradicional, imagens só contestadas mais tarde com a criação da imprensa alternativa iniciada com "O Pasquim" e depois o "Opinião" - este teve 5 mil páginas publicadas e 5 mil vetadas.

"A cultura é muito flexível e sobrevive. Quem falou muito depois do AI-5 foi a poesia marginal", diz Heloisa Buarque de Hollanda, a primeira a chamar atenção para os poetas do mimeógrafo.

Lentamente um reflorescimento cultural se inicia, com o surgimento da contracultura, não diretamente política, mas muito crítica à situação do país. Os movimentos de vanguarda reaparecem, os exilados culturais começam a voltar. "É uma reação ainda à meia voz, foi se criando uma cultura alternativa muito viva que só fez crescer", diz Ridenti. Era o início da distensão, lenta e gradual.