ai-5

William Waack: Divisor de águas?

É tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse processado pelo regime militar

A história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para punir uma Câmara dos Deputados que impedira que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de brasileiros para propor acabar com essas liberdades. 

Do ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas. 

Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros. 

Essa noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general, aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política. 

A franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código Penal. 

Legislativo brasileiro, a quem cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”. 

Em 1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda emergencial e respeitar o teto de gastos. 

Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022. 


RPD || Editorial: Escalada autoritária

Mais uma vez, o Presidente da República consegue surpreender os cidadãos brasileiros. Comparece a uma manifestação convocada nas sombras de seu governo, endossa com sua presença as consignas autoritárias das faixas e cartazes ali levantados, promete a mudança radical no rumo de um novo e puro país, tudo para desmentir, no dia seguinte, qualquer intenção golpista. Se o roteiro é sempre o mesmo, pois se trata, afinal, de fazer retroceder as fronteiras do inaceitável, a ousadia dos atores é crescente.

Curiosa cruzada essa que investe simultaneamente contra a democracia e a ciência. Parece ter como premissa a incapacidade de os brasileiros estabelecerem relações de causa e consequência, tanto para prever o futuro, quanto para avaliar o passado. É certo que há concidadãos, letrados inclusive, que relutam em perceber que nossa situação hoje é em tudo similar à de outros países, semanas antes de mergulharem no abismo.

No entanto, são poucos. E, como mostram as notícias do mundo, quando a questão é perda de vidas, não há como ignorar para sempre a escalada dos números. Ou seja, em algum momento, as responsabilidades políticas pelo caos que está por vir serão estabelecidas e cobradas.
Cumpre reconhecer, contudo, que a crise sanitária provocada pela pandemia é um ingrediente exterior, que se soma, entre nós, a um processo político anteriormente iniciado e com ele se combina.

Está em curso, desde a apuração dos votos no segundo turno das eleições de 2018, uma escalada golpista no país. As manifestações visíveis dessa escalada são o comportamento do Presidente da República; os fluxos poderosos de falsa informação disseminada nas redes sociais contra seus presumidos desafetos ou em favor de suas bandeiras; e a insistência de um pequeno número de seguidores em sair às ruas, manifestando-se contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, em favor de uma intervenção militar.

É urgente enfrentar e derrotar essa escalada. Essa tarefa exige a ação firme das instituições e o diálogo e a cooperação entre todas as forças democráticas, na União, nos Estados e nos Municípios. Câmara dos Deputados, Senado Federal e Supremo Tribunal Federal devem acordar uma reação articulada aos desatinos do Presidente. Regras relativas à identificação e responsabilização de produtores e divulgadores de falsidades nas redes devem se aprovadas e aplicadas. Lidar com as ruas, por sua vez, é tarefa dos governadores, dos legislativos estaduais, do Judiciário e do Ministério Público nos Estados.


Eliane Catanhêde: Chance zero?

Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5

Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!

No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?

O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.

O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.

E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?

Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?

O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.


Igor Gielow: Bolsonaro faz apelo golpista e coloca Forças Armadas em saia justa

Governadores veem ensaio de golpe sem apoio pelo presidente, isolado na crise do coronavírus

SÃO PAULO - A demonstração de apoio do presidente Jair Bolsonaro a uma manifestação que pedia intervenção militar e "um AI-5" na frente do quartel-general do Exército fez a crise política inserida na pandemia do coronavírus subir de patamar.

Como se isso fosse possível, notou um governador de populoso estado ainda no princípio do embate com a Covid-19. A agressividade estava na conta, mas Bolsonaro ainda consegue chocar alguns, a começar por integrantes da cúpula militar da ativa que trocaram mensagens durante o domingo (19).

A escolha minuciosa do local e da data, o Dia do Exército, colocou as Forças Armadas ante um impasse que juravam querer evitar desde que pactuaram apoio tácito ao pleito presidencial de Bolsonaro no segundo turno de 2018. Agora, os fardados terão de se posicionar sobre as intenções de seu comandante nominal.

Bolsonaro foi claro em sua fala: quer uma ruptura ao estilo Hugo Chávez, de "povo no poder", desde que, claro, o poder seja exercido por ele. Olimpicamente isolado dos outros Poderes, seus instrumentos para tal missão são parcos.

Congresso, apesar dos planos mirabolantes de atração do centrão decantados, está fora de alcance. O Supremo Tribunal Federal, que não engole a família Bolsonaro direito desde que o filho Eduardo chutou a necessidade de um "cabo e um soldado" para fechá-lo, idem.

Fritar de forma desastrada Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde só levou a outros titulares da Esplanada a certeza de que o próximo poderá ser um deles ou delas.

Logo, nada mais natural que dobrar seu apelo aos militares que, aos poucos, aceitaram serem abduzidos para dentro de seu governo na crença de que poderiam ditar os rumos de um capitão que saiu pelas portas dos fundos do Exército no fim dos anos 1980, insubordinado nato que era.

Para um general ouvido, o presidente apenas quis tensionar o ambiente em um momento de fragilidade, conforme seu estilo. Para o oficial, da cúpula da ativa, as Forças Armadas não farão nada que fira seu papel constitucional.

Outro oficial, de um setor Marinha mais afastado do governo, preferiu a comparação com a tentativa frustrada de autogolpe de Jânio Quadros em 1961, que redundou na renúncia do presidente.

Tal sentimento é compartilhado por governadores de estado, que passaram a tarde trocando impressões sobre o insólito acontecimento deste domingo. Dois deles afirmaram categoricamente que Bolsonaro quer dar um golpe, embora duvidem das condições objetivas para tal.

A união da classe é, como já foi dito, inédita. No sábado, o Fórum Nacional dos Governadores divulgou carta defendendo os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), dos ataques recebidos durante a semana de Bolsonaro.

Os sinais da tibieza bolsonarista são claros. As carreatas em favor das ideias intervencionistas foram mínimas, em termos de adesão. Não houve uma mobilização popular comparável, digamos, à Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964, para ficar num exemplo extremo.

A família do presidente, essa novidade na vida política nacional, ajudou, postando ao longo do dia em redes sociais apoios dos mais bizarros e ameaçadores: a cereja foi dada pelo vereador Carlos, replicando um vídeo de pessoas atirando em apoio a Bolsonaro. Não é preciso nem semiótica para entender a mensagem.

Se a frustração popular com as limitações da quarentena é compreensível, não havia uma multidão na rua. Havia, sim, as mesmas franjas que pediam "SOS Forças Armadas" nos atos pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016.

São pessoas que acham correto buzinar na frente de hospitais com pessoas morrendo da mesma doença que eles negam a gravidade, sob inspiração de Bolsonaro. Mesmo quem quer encerrar as limitações, sem necessariamente fazer parte do grupo, são só 22% da população, mostrou o Datafolha.

Assim como não há empresariado em massa a favor do governo central. Novamente, a pergunta fica: e os militares?

Não há uma ordem unida entre as Forças, para começar. Não se vê um integrante da Força Aérea com destaque no governo, até porque o "homem do vermífugo", o astronauta-ministro Marcos Pontes, não é considerado da cota fardada apesar de ser militar.

A ativa, após angaraiar prestígio ao governo cedendo quadros, tenta ao longo da crise do coronavírus se distanciar da politização fomentada por Bolsonaro contra governadores, João Doria (PSDB-SP) à frente.

E as manifestações, públicas ou não, têm sido no sentido de que a Constituição será soberana. Bom, em 1964 isso também era argumento, mas os tempos são outros.

A classe política está se sentindo empoderada, para usar o clichê. Depois de ter sido escorraçada pelas urnas em 2018, a instabilidade de um presidente acuado a colocou em evidência. Pesquisas internas de partidos mostram, contudo, que Congresso e Judiciário continuam com suas imagens no chão.

É com isso e com o fato de que as Forças Armadas são ainda vistas com respeito que Bolsonaro conta. A ala militar dentro do governo, o líder Fernando Azevedo (Defesa) à frente, acreditava que seria possível moderar o chefe e conduzir o manejo da emergência sanitária.

Este domingo provou, pela enésima vez, que isso é impossível. Pior, Bolsonaro colocou os fardados em xeque no tabuleiro da política. Isso adensa a crise a um novo nível, e a perspectiva não é das melhores para o isolado mandatário.


Ricardo Noblat: Aos cuidados do general Mourão - balanço do AI-5 e o que é ditadura

Modesta contribuição para aumentar os conhecimentos do vice-presidente

O general Hamilton Mourão refere-se ao Ato Institucional nº 5, baixado há 51 anos pelo governo Costa e Silva, como “o grande instrumento autoritário que os presidentes militares tiveram à mão”. Mas não reconhece que houve um golpe no país em 1964, nem uma ditadura que se estendeu por 21 anos.

“Discordo do termo ditadura para o período de presidentes militares”, argumenta. “Para mim foi um período autoritário, com uma legislação de exceção, em que se teve que enfrentar uma guerrilha comunista, que terminou por levar que essa legislação vigorasse durante 10 anos”.

Seria interessante, sugere, que se pesquisasse quantas vezes o AI-5 foi utilizado efetivamente durante os 10 anos que ele vigorou. Porque muitas vezes, segundo ele, “se passa a ideia que todo dia alguém era cassado ou afastado. E não funcionou dessa forma. É importante ainda que a História venha à luz de forma correta”.

O Congresso foi fechado duas vezes com base no AI-5. A primeira sob a alegação da necessidade de se “combater a subversão e as ideologias contrárias às tradições de nosso povo”. A segunda, em 1977, porque o general Ernesto Geisel disse que o MDB havia estabelecido no Congresso a “ditadura da minoria”.

Enquanto vigorou, o AI-5 permitiu que o governo cassasse o mandato de 110 deputados federais, 162 estaduais, sete senadores, 22 prefeitos e 22 vereadores eleitos por pouco mais de seis milhões de pessoas. Três ministros do Supremo Tribunal Federal foram aposentados e 500 pessoas perderam seus direitos políticos.

No que diz respeito aos direitos do cidadão comum, o AI-5 suprimiu as garantias civis. Qualquer pessoa podia ser presa sem autorização judicial. O habeas corpus deixou de existir para os processados por crime “contra a segurança nacional”. Os acusados passaram a ser julgados por tribunais militares.

Censurou-se a imprensa. Militares passaram a dar expediente nas redações dos maiores jornais para impedir a publicação de notícias que desagradassem ao governo. Espetáculos musicais, peças de teatro, filmes também ficaram sujeitos à censura prévia, assim como novelas de televisão e exposições de arte.

Sob o pretexto de se combater a corrupção permitiu-se o confisco de bens de suspeitos mesmo sem culpa formada. Estudantes considerados subversivos foram expulsos de universidades e proibidos de estudar por três anos. Houve intervenção em sindicatos e as greves foram proibidas. Mas não foi o pior.

O AI-5 estimulou a prática de torturas em delegacias, quartéis e aparelhos clandestinos de repressão que se disseminaram pelo país. Oficiais do Exército, reunidos em auditório, assistiram a aulas de tortura. Segundo levantamento da Human Rights Watch, cerca de 20 mil pessoas foram torturadas entre 1964 e 1985.

Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade registrou que entre 1946 e 1985 pelo menos 434 pessoas foram mortas ou desapareceram por razões políticas, a maior parte delas durante a ditadura de 64. Algo como 6.300 integrantes das próprias Forças Armadas foram presos, cassados ou demitidos

Ao preferir chamar de “período autoritário” o que foi uma ditadura por qualquer ângulo que se a examine, o general Mourão lembrou que o regime militar teve que enfrentar “uma guerrilha comunista”. De fato. Descoberta em 1972, acabou dizimada em 1975. Guerrilheiros que se renderam foram executados.

Ninguém gosta de recordar maus tempos. O 51º aniversário do mais cruel dos atos de força da ditadura militar de 64 passaria em branco se recentemente o deputado federal Eduardo Bolsonaro, e depois dele o ministro Paulo Guedes, da Economia, não tivessem insinuado que uma nova versão do AI-5 poderia ser adotada.

A maioria dos brasileiros é contra a volta da ditadura. Nas escolas militares ensina-se que não houve ditadura militar. As Forças Armadas juram respeito à Constituição. O governo que temos hoje é o que mais reúne partidários de um regime autoritário desde a redemocratização do país em 1985. Portanto, temei e vigiai.


Míriam Leitão: Sexta-feira 13, 51 anos depois

AI-5 faz 51 anos e deveria ser assunto pacificado, mas voltou à pauta em função do sonho autoritário dos que hoje ocupam posição de poder

Numa sexta-feira 13, há exatamente 51 anos, o AI-5 caiu sobre o país como um viaduto. O Brasil era outro. Dos brasileiros de hoje, 76,21% não haviam nascido. São 160,2 milhões de brasileiros nascidos depois daquele dia. Pelo tempo passado e pela renovação populacional, esse deveria ser um assunto esquecido e pacificado. Mas o AI-5 foi um dos assuntos mais falados no país este ano, em função do estranho sonho autoritário de pessoas que hoje ocupam posição de poder.

Há vários mitos sobre a ditadura que andam sendo repetidos numa demonstração de que é preciso voltar a falar do assunto. Os militares chegaram dizendo que ficariam pouco tempo e ainda hoje alguns grupos defendem que o regime foi brando. Não existe ditadura suave e a dinâmica do caminho autoritário é incontrolável.

O general Castello Branco dizia que o regime seria temporário e ele durou 21 anos. O primeiro Ato Institucional foi apresentado como sendo o único e houve 17. O AI-5 duraria um ano, durou 10. O SNI seria apenas um pequeno serviço de inteligência e, como registra Elio Gaspari, virou um “monstro” na definição do seu próprio criador, Golbery do Couto e Silva. No final tinha seis mil funcionários, escritórios em cada ministério, em cada órgão estatal, envolveu-se em inúmeras maracutaias, do garimpo na Amazônia às negociatas com café.

O país não estava “indo para o comunismo”, mas sim vivendo um governo de muita instabilidade e que se aproximava do seu final. No ano seguinte haveria uma eleição em que se enfrentariam Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, com grande chance de vitória do primeiro. Os dois se juntaram depois na Frente Ampla, que incluiu também João Goulart, uma aliança impensável entre o golpista Lacerda e o presidente deposto. Eles passaram por cima das diferenças pela causa comum do retorno à democracia. A frente foi proscrita pelo governo no interminável ano de 1968.

Na economia, a ditadura começou fazendo um plano anti-inflacionário e de ajuste das contas públicas. Através do PAEG, a inflação foi reduzida com um mecanismo de correção salarial pela média dos 24 meses anteriores e que levou a uma redução de salário real. Após o ajuste, o país acelerou o crescimento do PIB. Se o país estava crescendo, isso deveria ter desanuviado o clima político, mas a direita no poder decidiu radicalizar.

A coincidência entre o melhor momento da economia e o pior período da repressão é até estranha. O crescimento acelerado, em qualquer país, produz uma taxa maior de aceitação do governo. O PIB cresceu em média 11,2% de 1968 a 1973, segundo André Lara Resende no livro “130 anos da República”. Os militares queriam mais que apoio, ambicionavam a unanimidade. Para calar todas as vozes discordantes foi disparada a violência desmedida do Ato Institucional que fechou o Congresso por quase um ano, estabeleceu a censura prévia contra alguns órgãos de imprensa, suspendeu todas as garantias constitucionais, cassou parlamentares, expulsou estudantes e professores das universidades e expandiu a máquina de tortura e morte.

O crescimento do país era desigual. Segundo Pedro Ferreira de Souza, a parcela da riqueza nacional apropriada pelos brasileiros que estavam entre os 1% mais ricos subiu de 17,7% para 25,8% entre 1964 e 1970. Oito pontos percentuais em seis anos.

O tempo de forte alta do PIB é apenas uma parte dos 21 anos. Ficou restrito ao final dos 60 e começo dos 70. Houve o período de recessão, inflação, dívida externa e bagunça fiscal. “Quando, na segunda metade dos anos 1970, os desequilíbrios das contas externas e as pressões inflacionárias reapareceram, agora combinados com a correção monetária, estava montado o quadro para quase duas décadas de estagnação e aceleração inflacionária”, escreve Lara Resende.

Não deveria ser preciso dizer que o AI-5 abriu um tempo maldito que jamais pode provocar saudosismo nos governantes. Mas também não deveria ser preciso dizer que torturador não é herói e que presidentes não falam, com naturalidade, sobre instrumentos de tortura. Não deveria ser necessário dizer que os problemas da democracia só podem ser corrigidos com mais democracia. Contudo, ainda é preciso lembrar como foram terríveis aqueles dias, aqueles anos, que começaram numa sexta-feira 13, há 51 anos.
Postado por Gilvan Cavalcan


Fernando Gabeira: Saudades do Brasil

Uma medida do AI-5 foi pôr censores nos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar a rede?

No dia em que o Flamengo se tornou campeão da Libertadores, cruzei no avião com um homem vestido com a camisa do time. Apenas nos olhamos, mas nos sentíamos unidos pela mesma tensão e esperança. Naquele momento, senti uma estranha saudade do Brasil. A seleção brasileira já não empolga como antes; o lugar foi momentaneamente ocupado pelo Flamengo.

Mas o futebol não era meu objeto de saudade, mas sim a política. Vim me perguntando na viagem de Natal para o Rio como era difícil encontrar essa sensação de unidade nacional, sobretudo em tempo de paz.

Quando digo unidade, não quero dizer unanimidade. Mas algo que congregue as pessoas para além de suas escolhas singulares. A última vez que senti isso foi no movimento pelas Diretas. A partir daí, a sensação foi escapando aos poucos.

É um pouco ingênuo acreditar nessa possibilidade. A política americana em alguns momentos conseguiu unificar os dois grandes partidos pontualmente, em temas bem definidos. Hoje, com Trump, esse sentimento deve estar se esvaindo também lá. Digo também lá porque aí as perspectivas são de confronto, com os atores se pintando para a guerra.

O Chile é uma espécie de arma que os contendores escolheram para o seu duelo. De um lado, a esquerda pedindo manifestações como a chilena; de outro, o governo de extrema direita acenando com o AI-5 e preparando-se para uma repressão sem limites, camuflada sob um nome bastante complicado: excludente de ilicitude, cuja tradução real é liberar a porrada.

Dentro desse quadro radical, uma tênue centelha do passado comum reaparece nas reações que surgem sempre que se fala de novo no AI-5. Elas têm sido rápidas e bastante amplas no mundo relativamente restrito dos que se interessam por política. Mostram não só um vigor democrático, mas apontam para uma unidade nacional contra estados de exceção.

Tenho várias razões pessoais para não acreditar num novo AI-5. A principal delas é ser velho o suficiente para conhecer as condições daquela época e as que existem hoje.

Uma das medidas do AI-5 foi introduzir pequenos grupos de censores dentro dos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar a rede? Não me refiro apenas às dificuldades técnicas, mas aos gigantescos transtornos culturais e econômicos.

Naquele tempo, vivíamos numa Guerra Fria simbolizada pelo Muro de Berlim. Embora o governo ainda respire os ares da Guerra Fria, e o muro não tenha caído para uma parcela da esquerda, a verdade é que os tempos são outros.

O movimento pelas Diretas, com seu potencial unificador, foi basicamente contra um resquício da ditadura. Qualquer novo ato ditatorial, creio eu, poderá reviver seu espírito, uma vez que, apesar de todas as divergências, estamos de acordo em preservar o sistema democrático.

É possível olhar o que se passou no Chile de forma diferente: estudar o que aconteceu e buscar soluções menos dramáticas. O número de pessoas que ficaram cegas parcial ou totalmente supera duas centenas.

O ultraliberalismo tende a trazer enormes dificuldades para a vida das pessoas. Sem sensibilidade política, não há chances de racionalizar a economia. Da mesma forma, os governos de esquerda tendem a quebrar o país com a ilusão de que dinheiro cai do céu.

Uma ampla frente contra o fantasma da ditadura está no horizonte imediato, pois ela se manifesta toda vez que falam de AI-5. Mas ela ainda não é articulada o bastante para intervir na base da instabilidade. Propor uma agenda social aos liberais e uma racionalização econômica à esquerda.

Não deixa de ser estranho falar sobre AI-5 nesse começo de dezembro. Não é que me sinta aprisionado na máquina do tempo. Mas era como se conversasse com sua tela, com pessoas que ainda estão com a cabeça em 13 de dezembro de 1968.

Para não ficar triste, posso entender isso como uma maravilha da tecnologia, estar voltando atrás para dizer: não pensem nisso, vocês vão durar pouco tempo. E os adversários não serão mais os gatos pingados do passado, mas multidões enérgicas como a torcida do Flamengo.


El País: Atentados de direita fomentaram AI-5

Cinquenta anos depois do ato que sepultou as liberdades democráticas no país, a Pública obtém documentos que provam que foi a direita paramilitar, e não a esquerda, que deu início a explosões de bombas e roubos de armas

Por Vasconcelos Quadros, da Agência Pública

Documentos inéditos, guardados há meio século nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM), jogam luzes no cenário que levou ao recrudescimento da ditadura militar, com a edição do AI-5 (Ato Institucional número 5) em dezembro de 1968. Depoimentos de personagens, relatórios oficiais e uma infinidade de papéis anexados a processos que somam cerca de 10 mil páginas, ao qual a Pública teve acesso, demonstram que o AI-5 fez parte de um plano para alongar a ditadura com atentados a bomba em série, preparados no final de 1967 e executados até agosto do ano seguinte por uma seita esotérica, paramilitar e de extrema direita.

Até esse momento, episódios de ação armada da esquerda, que também ocorreram, eram apontados como causa para a decisão dos militares de endurecer o regime.

Comandadas por um líder messiânico a serviço da linha dura do governo militar, as ações terroristas da direita, que chegaram a ser atribuídas, equivocadamente, às organizações de esquerda, segundo apontam as investigações, tiveram como estratégia aquecer o ambiente como preparação do “golpe dentro do golpe”, o que daria ao regime uma longevidade de mais 17 anos.

Na cadeia de comando do grupo se destacam um general da reserva Paulo Trajano da Silva, que se dizia amigo pessoal do então presidente-ditador Artur da Costa e Silva, e, na linha de frente do plano, um complexo personagem, Aladino Félix, conhecido como Sábado Dinotos, líder da seita, mentor e também autor dos atentados.

Trecho do depoimento do General Paulo Trajano da Silva sobre sua ligação com o então presidente Costa e Silva.ampliar foto
Trecho do depoimento do General Paulo Trajano da Silva sobre sua ligação com o então presidente Costa e Silva.

Formado por 14 policiais da antiga Força Pública (como era chamada à época a Polícia Militar de São Paulo), todos seguidores fanáticos de Aladino Félix, o grupo executou 14 atentados a bomba, furtou dinamites de pedreiras e armas da própria corporação, além de praticar pelo menos um assalto a banco, plenamente esclarecido. Foram os pioneiros do terrorismo, e os responsáveis pela maioria das ações terroristas registradas no período – um total de 17 das 32 contabilizadas pelos órgãos policiais.

Primeiros atentados foram da direita

A evidência de que foi a direita quem tomou a frente nas ações que serviram de pretexto para o fechamento do regime aparece pela primeira vez num relatório do delegado Sidney Benedito de Alcântara, assistente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), sobre o inquérito em que a polícia esclarece os crimes a partir de prisões ocorridas em meados de agosto de 1968. Com data de 18 de dezembro, cinco dias depois da edição do AI-5, o delegado afirma que os atentados da direita “começaram bem antes do atual terrorismo de esquerda”, numa referência ao início da fase mais acirrada dos conflitos armados que marcaram a fase mais dura da repressão política.

Pela cronologia das investigações, os paramilitares começam furtando dinamites, no final de dezembro de 1967, armas no Quartel-General (QG) da Força Pública em 16 de janeiro de 1968, e executam explosões de bombas entre 10 de abril até 19 de agosto, com atentados em série, o último deles dois dias antes de o grupo ser desbaratado.

Os alvos principais dos atentados, cuja autoria o grupo de Aladino Félix assumiria, foram justamente os órgãos que depois centralizariam a repressão contra a esquerda em São Paulo: o II Exército, cujo QG ainda funcionava na rua Conselheiro Crispiniano, o prédio do Dops, instalado então no largo General Osório, e o QG da Força Pública, na praça Júlio Prestes, todos na região central.

O grupo explodiu também bombas na Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), no oleoduto de Utinga, em prédios onde funcionavam os setores de alistamento da PM (era Força Pública) e de varas criminais da capital (Lapa e Santana) e em pontilhões e trilhos que davam acesso à estrada de ferro que ligava o litoral e os subúrbios da região metropolitana ao centro da capital.

Explosão de bomba na entrada do prédio da Bolsa de Valores de São Paulo.ampliar foto
Explosão de bomba na entrada do prédio da Bolsa de Valores de São Paulo.

As ações de esquerda, porém, que mais tarde se alternariam com as da direita, se iniciaram apenas em 19 de março de 1968, com a explosão de uma bomba que feriu três estudantes na biblioteca do consulado dos Estados Unidos, no Conjunto Nacional, na avenida Paulista. O atentado mais grave, que matou o soldado Mário Kozel, sentinela do QG do II Exército, já funcionando no Parque Ibirapuera, só ocorreria em 26 de junho do mesmo ano.

O general Silvio Corrêa de Andrade, chefão da Polícia Federal em São Paulo, chegou a sustentar à época, em entrevistas, que o governo não tinha dúvidas sobre quem estaria por trás de todos os atentados. “Sabemos de onde partiu o golpe: foram os homens da esquerda. Mas acabaremos por agarrá-los”, disse ele.

Perícia realizada em metralhadora, pistola e munições apreendidas em poder de Aladino Felix e seu bando indica que as armas pertenciam à Força Pública.ampliar foto
Perícia realizada em metralhadora, pistola e munições apreendidas em poder de Aladino Felix e seu bando indica que as armas pertenciam à Força Pública.

O mesmo general se mostraria surpreso quando o grupo de Aladino Félix acabou se revelando através de uma investigação criminal de rotina, à revelia dos órgãos de informação do governo federal, que mirava apenas descobrir os autores do roubo a uma agência do Banco Mercantil e Industrial (BMI) de Perus, ocorrido no dia 1º de agosto de 1968.

Maconheiros e malandros

O delegado Ruy Prado de Francischi, lotado na 40ª DP, em Vila Santa Maria, na zona norte, rastreando os passos de “maconheiros e malandros”, conforme consta no relatório do Dops, recolheu informes sobre a quadrilha que roubou o BMI. O delegado descobriu que os assaltantes, com os rostos cobertos por lenços (estilo copiado dos filmes de faroeste, então a coqueluche de Hollywood), haviam rendido o vigia e funcionários da agência com armas furtadas do QG da Força Pública, em 16 de janeiro, de onde haviam sido levados uma metralhadora INA, três pistolas Walther e 13 revólveres Taurus.

Identificados, presos e conduzidos ao xadrez do Deic, os quatro assaltantes, todos já fichados à época por crimes comuns, depois de intensas sessões de tortura, contaram que o mentor do roubo havia sido o soldado da Força Pública Jessé Cândido de Moraes, o segundo homem na hierarquia do grupo. Preso no dia 21 de agosto, e também submetido a variados tipos de sevícias, o policial citou, pela primeira vez, o nome de Aladino Félix como um dos destinatários do dinheiro roubado.

Autor de livros sobre ufologia e de profecias bíblicas, místico venerado por um séquito, Aladino Félix tinha servido como militar na Segunda Guerra e era reconhecido por relevantes serviços prestados ao golpe de 1964, além de manter contatos com autoridades do regime militar. Como um delator de luxo, fornecia informações sobre as ações das organizações de esquerda e supostas conspirações contra o governo envolvendo oficiais da Força Pública.

Detido um dia depois de Jessé, em 22 de agosto, Aladino Félix foi levado para o Deic. Lá, também torturado, conforme atestaria um laudo pericial da própria polícia, mas longe da influência das autoridades federais, descreveu em detalhes, num manuscrito de 25 páginas em folhas de caderno espiral, todos os atos praticados por seu grupo nos oito meses que antecederam sua prisão. Aladino Félix, abandonado pelo governo, que perdeu o controle sobre sua prisão, passa a contar por que organizou o grupo. De acordo com ele, a motivação básica das ações era levar o regime a assumir medidas ditatoriais agudas. Num dos trechos do manuscrito, Aladino Félix afirma que recebia ordens da Casa Militar do Palácio do Planalto, chefiada à época pelo general Jayme Portella, e de fontes do Ministério da Justiça através da Polícia Federal.

Trecho do depoimento manuscrito de Aladino Félix, assumindo a autoria do roubo de armas e apontando sua conexão com o alto comando da Presidência da República
Trecho do depoimento manuscrito de Aladino Félix, assumindo a autoria do roubo de armas e apontando sua conexão com o alto comando da Presidência da República

Poderia ser apenas bravata, mas um dos papéis apreendidos em seu escritório, no 21º andar do edifício Martinelli, não deixa dúvida sobre as relações de Aladino Félix/Dinotos com o escritório central da Polícia Federal (PF), em Brasília:

“Prezado senhor Dinotos,

Recebi sua carta e desde já aceite meus agradecimentos pelas informações nela contidas.

Encaminhei imediatamente cópia das informações ao meu Diretor, tendo ele ficado também impressionado e levará o assunto às autoridades superiores.

Esperando contar com a valiosa cooperação que o senhor vem prestando, aguardo novas notícias”.

A carta, datilografada numa folha com o brasão da República e timbres do Ministério da Justiça e Polícia Federal, é assinada pelo inspetor Firmiano Pacheco, com data de 8 de maio de 1968, portanto três meses antes de Aladino Félix e seu grupo serem presos.

Carta mostra a relação com altas patentes do governo; foi publicada, à época, no Jornal Última Hora.
Carta mostra a relação com altas patentes do governo; foi publicada, à época, no Jornal Última Hora.

A onda de atentados era de pleno conhecimento do governo, que tinha consciência, segundo Aladino Félix, de que o regime entrara numa fase de desgaste e estava em meio a uma forte crise quatro anos depois do golpe. “Brasília queria que nossas ações continuassem até dezembro de 1968 ou janeiro de 1969”, escreve no manuscrito, entregue à polícia em 27 de setembro de 1968. Todos os integrantes de seu grupo, ouvidos em inquéritos civis e militares, reafirmariam que a motivação era levar o regime a editar medidas de exceção.

Aladino Félix sustenta que, diante de pressões que só aumentavam, o governo concordara com a linha dura do regime. “Para evitar a reformulação dos planos revolucionários, a única forma proposta e aceita pelo governo federal, através do general Paulo Trajano, foi a ação terrorista”, escreve no mesmo manuscrito. Segundo Félix, “o terrorismo foi então como uma saída de emergência para o governo federal, pois não podia agir contra tantos implicados na trama e nem lhes convinha dar-lhes a liberdade para reassumir as rédeas que lhes foram arrancadas pela revolução de março de 1964”.

Trecho do depoimento escrito por Aladino Felix, aponta a sua conexão com o alto comando da Presidência da Republica e até quando deveria atuar.
Trecho do depoimento escrito por Aladino Felix, aponta a sua conexão com o alto comando da Presidência da Republica e até quando deveria atuar.

Todos os integrantes do grupo contaram, depois de presos, que no caso do furto das armas Trajano participou dos detalhes do planejamento e, diante da possibilidade de identificação dos autores, garantiu que “acertaria” com a Polícia Federal um jeito de evitar que fossem encontradas impressões digitais. Disseram que o general ainda forneceu um álibi caso surgissem suspeitas sobre o sumiço dos envolvidos no dia da ação: todos estariam com ele, Trajano, numa caçada no Mato Grosso.

O general Paulo Trajano

Apontado por Aladino Félix como o homem que deu a ordem para o furto das armas no QG da Força Pública e do atentado a bomba no antigo QG do II Exército, Trajano expressa espontaneamente no depoimento que prestou no dia 2 de setembro de 1968, no inquérito aberto pelo II Exército para investigar o envolvimento do general com o grupo, um desejo de que, cem dias depois, se revelaria profético: “O governo federal deveria aproveitar o momento para endurecer o regime, acabando de vez com a desordem reinante no país”, disse.

Documentos referentes à explosão de bomba jogada do alto de um prédio para atingir o Quartel General do 2o. Exército. Duas funcionárias de uma loja ficaram feridas.
Documentos referentes à explosão de bomba jogada do alto de um prédio para atingir o Quartel General do 2o. Exército. Duas funcionárias de uma loja ficaram feridas.

Ao Dops, que assumiu o caso assim que o grupo se responsabilizou pelos atentados terroristas, o general Trajano conta que havia relatado o furto das armas ao então chefe da PF no Rio (Guanabara à época), general Luiz Carlos Reis de Freitas. Afirma que, assim que soube do furto das armas na casa de Aladino Félix, chegou a comentar com Freitas que o episódio serviria para “desnortear” oficiais da Força Pública que, segundo versão nunca comprovada, conspiravam contra o governo.

Explosão de bomba no Quartel General da Força Pública de São Paulo danifica portas dos cinco andares do prédio e janelas.
Explosão de bomba no Quartel General da Força Pública de São Paulo danifica portas dos cinco andares do prédio e janelas.

A mesma história foi contada por Aladino Félix em seu relato-confissão. Segundo ele, os oficiais da Força Pública preparavam uma rebelião para derrubar Costa e Silva. O movimento teria sido gestado na França, através de contatos do ex-presidente Juscelino Kubitschek com Charles de Gaulle, numa articulação que envolvia, no Brasil, os dirigentes da Frente Ampla liderada por Carlos Lacerda e apoiada por outros líderes cassados pela ditadura. O levante ocorreria no dia 25 de janeiro, com o assassinato do presidente e do ex-governador Abreu Sodré. Nesse dia, diz, Costa e Silva estaria na capital, participando das comemorações em homenagem ao aniversário da cidade. Lacerda também estaria em São Paulo, num evento no Teatro Municipal, de onde daria a senha para desencadear a rebelião, que seria seguida por levantes na Brigada Militar gaúcha e nas PMs de Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Bahia.

Explosão ocorrida dentro de um carro Aero Willys estacionado no Largo General Osório, em frente a sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-SP).
Explosão ocorrida dentro de um carro Aero Willys estacionado no Largo General Osório, em frente a sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-SP).

No início de janeiro, segundo as investigações, Aladino Félix e Trajano se encontrariam várias vezes. O general diria que ouvira e acreditara na conspiração e, como era amigo de Costa e Silva, que anos antes havia sido seu comandante no Segundo Batalhão de Infantaria do Exército em São Paulo, decidiu informar o governo. No depoimento, diz que Aladino Félix teria se passado como aliado dos conspiradores e chega a afirmar, numa versão que a própria polícia acha delirante, que viu um primo e homem de confiança de Lacerda, Paulo Bucker Lacerda, “confabulando” com o místico no escritório deste.

O general sustenta que, convencido dos riscos que o regime e o presidente corriam, procurou a chefia da Polícia Federal do Rio de Janeiro (à época Guanabara). De fato, dias depois, ele e Aladino Félix foram ao Rio e detalharam o que sabiam – este colocou tudo num relatório datilografado. A PF passou a tratar como informação real e a repassou ao chefe da Casa Militar do Palácio do Planalto, general Jayme Portella. Costa e Silva, então, cancelou a viagem a São Paulo.

No dia 27 de janeiro, com Marinha e Aeronáutica de prontidão, o Exército cercou e fez uma série de incursões pela capital paulista, mas nada de anormal foi registrado. Só em março os jornais noticiariam que um golpe havia sido abortado e apontavam o principal responsável pelo desmonte dessa rebelião: Aladino Félix. Era aplaudido pela direita e, em entrevistas, chegou a afirmar que enviou, sim, um bilhete que chegara às mãos de Costa e Silva.

Nos meses seguintes, as ações da direita e da esquerda se alternariam. A VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) colocaria a bomba na sede do Estadão, que à época estava instalado na rua Major Quedinho, no centro da capital, e roubaria um paiol de armas no Hospital Militar do Exército. Por outro lado, os paramilitares dariam curso aos atentados em série. Num só dia, 19 de agosto, véspera das primeiras prisões por causa do roubo ao BMI, explodiriam as bombas no Dops e nas varas distritais criminais da Lapa e de Santana.

Os terroristas e o militar

Com o esclarecimento do roubo ao BMI, vieram à tona o furto das armas e os demais atentados. Trajano admitiu, em depoimento ao Dops, que foi informado e viu as armas furtadas na casa de seu amigo Aladino Félix, mas negou que soubesse das demais ações.

Depoimentos e acareações feitas pela polícia colocam o general, no entanto, na cena em que se planejou o furto: todos disseram que, consultado sobre a ação, o general pediu um tempo para responder, e que só teria dado a ordem de execução depois de conversar com o comando da PF no Rio.

Documentos referentes à explosão de bomba jogada do alto de um prédio para atingir o Quartel General do 2o. Exército. Duas funcionárias de uma loja ficaram feridas.
Documentos referentes à explosão de bomba jogada do alto de um prédio para atingir o Quartel General do 2o. Exército. Duas funcionárias de uma loja ficaram feridas.

Um dos militares do grupo, o sargento Rubens Jairo dos Santos, diretamente envolvido em várias explosões de bomba, aponta o dedo direto para o amigo do presidente: “O general Trajano deu a ordem para colocar a bomba no QG do II Exército”, afirmou o militar em depoimento. O objetivo, segundo ele, era assustar e alertar o então comandante da força, general Syseno Sarmento, sobre a continuidade da conspiração entre oficiais da Força Pública, mesmo depois de “abortado” o “plano” de assassinar o presidente.

O delegado do Dops tachou de “evasivas” as respostas do general nas acareações e afirmou que os que o acusaram de envolvimento no furto se comportaram de maneira firme e convincente. Mas, em relação à suposta conspiração contra Costa e Silva ter motivado o comportamento do general, o delegado Sidney Benedito de Alcântara se mostra mais crédulo. Em seu relatório, ele diz que o general Trajano “queria ser solidário a Costa e Silva, com quem servira na vida militar e de quem recebeu valiosos apoios”. Reconhece, no entanto, ser implausível que um militar experiente se deixasse iludir por teorias conspiratórias que o teriam feito assumir “conduta terrorista”. No final do relatório, repete o que imagina ter passado pela cabeça do líder da direita ao ordenar os ataques aos seus seguidores: “O governo ver-se-á na contingência de adotar represálias, impondo um regime de força, desviando, dessa forma, o Brasil do abismo a que está caminhando”.

Poupado pela Justiça Militar de São Paulo, que nem sequer o considerou investigado, Trajano se tornaria alvo de um inquérito só mais tarde, aberto inicialmente no Rio e, depois, transferido para o II Exército, em São Paulo. Foi preso em setembro no QG da Segunda Divisão do II Exército até que concluísse seu interrogatório, algo como uma prisão provisória nos dias de hoje. Mesmo acusado de terrorismo, foi solto alguns dias depois por decisão unânime dos ministros do STM, entre os quais votou contra a decretação de prisão preventiva o general Ernesto Geisel, que em 1974 sucederia o general Emílio Garrastazu Médici, chefe do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) no período dos atentados da direita.

O SNI e a farsa

As suspeitas de que a cúpula do regime militar sabia dos atentados da direita em São Paulo são reforçadas por um relatório do SNI de agosto de 1969. Numa retrospectiva sobre o papel da Força Pública, então com 36 mil homens livres do “micróbio vermelho” e, portanto, “força antirrevolucionária” a favor do regime, o agente diz que o grupo de Aladino Félix tinha a intenção de levar todo o arsenal dos 350 homens que integravam o antigo Departamento da Polícia Militar e que a autoria do atentado ao QG da Força Pública foi encoberta por oficiais graduados da corporação, supostamente mancomunados com as ações paramilitares.

O agente informa que o soldado Jessé, que classifica como “lugar-tenente” de Aladino Félix, e os sargentos Rubens Jairo dos Santos e Juarez Nogueira Firmiano, que participaram da maioria dos atentados, chegaram a ser presos no mesmo dia em que o petardo explodiu no QG da Força Pública, em 10 de abril de 1968, destruindo um dos elevadores. Os três foram soltos, frisa o agente do SNI, sem nem sequer serem investigados.

“No dia seguinte ao da explosão, após o término do expediente, o major Edson [Edson Isaac Corrêa] desceu à prisão e os colocou em liberdade por ordem do cel. Vilela [José Vilela dos Santos, então comandante do Estado Maior da Força Pública]. É evidente que tais elementos, se pressionados, iriam revelar o plano e para que isso não acontecesse, os oficiais tomaram aquela atitude”, escreve o agente do SNI.

O responsável pelo inquérito policial-militar (IPM), capitão Cid Benedito Marques, orientado por superiores para “nada investigar”, passou então a ouvir pessoas que o agente denomina de “trouxas”. O depoimento de Aladino Félix nesse IPM foi só para cumprir tabela: o místico negou que soubesse de qualquer detalhe e foi dispensado com as honras de sempre. “Referido IPM encontrou sérios obstáculos para nada apurar, somente vindo à tona mais tarde [os atentados], com a descoberta pela Polícia Civil do terrorista Sábado Dinotos”, afirma o agente do SNI.

“Será que é cego?”

No IPM da Força Pública há outras evidências de que entre os arapongas que integravam os órgãos de informação do governo as ações do grupo eram um segredo de Polichinelo. A mulher de um dos soldados envolvidos, Alice Moreira, revela, em depoimento prestado no início de maio, que algumas reuniões de planejamento das ações ocorreram em sua casa.

Alice afirma que Aladino Félix sempre estava presente, se apresentava como judeu anticristão e anticomunista, falava de discos voadores, religião – parte de um proselitismo esotérico que a polícia chamou de “isca dourada” – e, no que de fato interessava, encerrava suas palestras com um discurso político radical, pregando a destruição de estabelecimentos públicos. Alice diz ter tomado conhecimento, nessas reuniões, de que as armas furtadas estavam com o líder do grupo.

Há, ainda, nos autos do mesmo IPM outros indícios que jamais poderiam ter sido menosprezados numa investigação rigorosa: um bilhete que, embora anônimo, já esclarecia, em abril, de onde partiam os atentados. O autor se dirige ao capitão Cid Benedito Marques e vai ao ponto: “Será que é cego? Onde está a sua experiência de soldado? Não vê que o plano terrorista que se desenvolve em São Paulo está estreitamente ligado ao cidadão Aladino Félix e que os maiores terroristas, seus seguidores, na maior parte, são da Força Pública?”, diz o signatário, que se apresenta como amigo secreto do capitão e assina com o curioso pseudônimo de “Altos Significados”. Os quatro meses seguintes seriam marcados por intensos atentados a bomba praticados pelo grupo.

Apontado por Aladino Félix como um dos conspiradores que pretendiam derrubar Costa e Silva, o capitão acabou afastado do IPM. As investigações só seriam retomadas mais tarde por outro oficial, quando o delegado Francischi já havia destrinchado as ações do grupo a partir do roubo ao BMI, em agosto.

Ao concluir seu relatório, no dia 30 de maio de 1968, o capitão Cid apontava “Sábado Dinotos e seus sectários” como suspeitos das ações terroristas, “atividades essas”, ele faz questão de destacar, “que já são do conhecimento do II Exército, DOPS e Polícia Federal”. Não há registro de qualquer procedimento aberto pelos órgãos federais até a prisão do grupo.

“Com um pouco mais de chance, teria o cap. Cid desbaratado ainda no início todo o grupo terrorista e, o que é melhor, teria evitado uma série de atentados terroristas”, escreve, em 12 de outubro de 1968, o tenente-coronel Raul Humaitá Villa Nova, no relatório que encerraria o IPM da Força Pública.

Conforme demonstra a cronologia dos episódios relatados nos autos, o grupo surgiu como força paramilitar no final de 1967, executou as primeiras ações em janeiro, intensificou os atentados de abril a agosto e só seria descoberto, por acaso, pelo vínculo com um roubo comum. O caso, como se viu, foi esclarecido com o uso da tortura por um setor da Polícia Civil, o Deic, que reprimia os crimes contra o patrimônio, mas não se vinculava à polícia política. As investigações deixam claro que, apesar das fortes evidências sobre a autoria dos atentados, a extrema direita agiu com intensidade e desenvoltura até a prisão de Aladino Félix, em 22 de agosto.

O grupo foi investigado durante cinco anos, de 1968 a 1973, em três inquéritos civis (um deles tocado pela Polícia Federal, tão pífio que não chegou a nenhuma conclusão), dois IPMs, um processo da Segunda Auditoria da Justiça Militar paulista e, ainda, duas apelações, que tramitaram no STM e, finalmente, no Supremo Tribunal Federal (STF).

“Gênio e louco”

Quando a história do terrorismo veio à tona, o conceito do homem que “salvara” a vida do presidente e evitou a “contrarrevolução” virou de pernas para o ar. De lúcido e paparicado colaborador do regime militar, Aladino Félix passou a ser tratado como um doido. A polícia o descreve depois como um místico que falava ter sido contatado por alienígenas e que se apresentava como o ungido que reunificaria as 12 tribos de Israel, enfim, um Messias.

À exceção do general Trajano, que o conhecia havia cinco anos e intermediou os contatos de Aladino Félix com as altas fontes do governo, todas as outras autoridades militares ouvidas no IPM do II Exército passaram a descrevê-lo como excêntrico. “Imaginação fértil e fantasiosa”, disse, em 23 de outubro de 1968, o coronel Edgard Barreto Bernardes, da PF, designado para averiguar as denúncias sobre o plano de assassinato de Costa e Silva.

“Pessoa com ideia fixa sobre subversão, atentados e conspiração”, acrescentou o então chefe da PF no Rio, coronel Florimar Campello. O diretor-geral da PF, general Luiz Carlos Reis de Freitas, afirmou que era um “lunático esperto e oportunista em busca de notoriedade”. O delegado Alcântara o perfilaria como misto “de gênio e de louco”.

Concatenadas, as declarações das autoridades, todas prestadas no mesmo dia, em depoimento que consumiu menos de uma lauda datilografada, levavam à desconstrução de Aladino Félix. O governo só não conseguiria explicar por que teria acreditado nos delírios de um místico a ponto de determinar a manobra militar em janeiro de 1968 para inibir uma suspeita história de golpe.

Como a imprensa já estava sob censura, as mesmas autoridades que acreditam no seu relato em janeiro e eram informadas diariamente pelo SNI nem se deram ao trabalho de esclarecer por que passaram a tratá-lo como lunático só sete meses depois da primeira investigação. Já no primeiro relatório sobre o caso, o delegado Alcântara afirmava que Aladino Félix “realmente” tinha contatos com autoridades do governo federal até ser preso.

Crime e perdão

Em 30 de setembro de 1970, a Segunda Auditoria da Justiça Militar de São Paulo afastou Trajano do processo por achar que “não era o caso” de investigá-lo. Os quatro conselheiros, acatando o relatório do juiz Nelson Machado Guimarães (o único civil da turma e cuja atuação ficou marcada por sentenças implacáveis e duras com militantes da esquerda), consideraram que não havia provas sobre os atentados e condenaram Aladino Félix e o soldado Jessé Cândido de Moraes, pela Lei de Segurança Nacional, a cinco anos de reclusão por “terrorismo”, apenas com base no furto das armas. Os demais envolvidos foram condenados a penas mais baixas, entre um e três anos.

Com a abertura de IPM contra o general Trajano, detentor de foro privilegiado, o processo subiria para o STM. Lá, inconformado com a sentença, o advogado do grupo, Juarez de Alencar, sustentou toda a linha de defesa no perfil dos réus e nos objetivos políticos dos atentados que, segundo ele, haviam sido desvirtuados no inquérito policial. Disse que Aladino Félix e os militares “estavam convictos, na sua posição de homens de direita, e de defensores da Revolução de Março, da absoluta legalidade revolucionária de suas ações”.

Alencar lembra que Trajano, “companheiro e amigo” de Costa e Silva, deu ao regime “notícia indiscutível da intentona”, argumentou que “quem está com o governo não pode ser condenado pelo próprio governo” e pediu não apenas a absolvição de todos, mas também que os militares liderados por Aladino Félix fossem perdoados, reincorporados à Força Pública e promovidos.

Foi atendido quase plenamente. Em outubro de 1970, seguindo parecer da procuradora Mary do Valle Monteiro no recurso de apelação, os ministros do STM absolveram todos os demais acusados e reduziram a pena de Aladino Félix para oito meses. O STM descartou os atentados a bomba e os demais crimes, fixando a pena só pelo furto das armas, procedimento bem diferente do aplicado pela mesma justiça aos militantes da esquerda armada.

Aladino Félix permaneceu preso, aguardando um exame de sanidade mental solicitado pelo Conselho Permanente de Justiça, este convencido pelos argumentos de que se tratava de um doido. O general Paulo Trajano da Silva, já absolvido, também estava livre de desconfortos.

Conclusão do laudo psiquiatríco realizado em Aladino Felix, também conhecido como “Sabado Dinotos”, durante o período em que esteve preso.
Conclusão do laudo psiquiatríco realizado em Aladino Felix, também conhecido como “Sabado Dinotos”, durante o período em que esteve preso.

Semi-imputável

O laudo assinado por dois psiquiatras forenses, José Roberto Belelli e Carlos Roberto Hojaij, o define como detentor de personalidade egocêntrica, com inteligência acima da média e domínio pleno dos temas sobre os quais era instado a falar, mas, no final, corrobora a tese das investigações: “Não se trata de doente mental. Trata-se de portador de perturbação da saúde mental cuja capacidade de entendimento ao tempo dos fatos era apenas parcial”, dizem no documento encaminhado no dia 7 de outubro de 1971.

A procuradora Mary Valle Monteiro, que antes considerara que o processo inteiro era “tudo loucura”, já esperava o resultado. “A conclusão de que é fronteiriço não nos decepciona. É um semi-imputável”, afirma, pedindo a confirmação da sentença de oito meses de reclusão, plenamente acatada pela turma do STM, conforme despacho do ministro Lima Torres, em 12 de janeiro de 1972. “É, no mínimo, um lunático”, acrescentou o ministro. Inconformado com o estigma de débil mental, Aladino Félix recorreu ao STF.

Sem que nenhum fato novo tenha ocorrido, o recurso de apelação dormitou 21 meses no STF até que o relator, ministro Rodrigo Alckmin (tio do presidenciável tucano Geraldo Alckmin) encerrasse o caso no dia 9 de outubro de 1973, com um despacho de cinco linhas, em que negava provimento à apelação. Aladino Félix e os demais envolvidos já estavam em liberdade e o país, mergulhado na ditadura, vivia sob o AI-5 os horrores dos anos de chumbo.

Aladino Félix amargou uma longa temporada atrás das grades. Foi preso pela primeira vez em 22 de agosto de 1968, mas teve a prisão relaxada em 17 de outubro pelo juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo, responsável pelo processo relacionado ao roubo ao BMI de Perus. A soltura, na verdade, foi um cochilo dos militares responsáveis pelo IMP do II Exército, que empreenderiam uma verdadeira caçada para prendê-lo novamente nove meses depois. No dia 15 de setembro, ele conseguiu escapar pela porta da frente da Casa de Detenção, no Carandiru, mas acabou preso novamente uma semana depois.

Ironicamente, foi levado para o Presídio Tiradentes, onde teve de conviver com presos políticos de esquerda. Estava entre os detentos contados num mutirão do Judiciário destinado a avaliar o cumprimento de penas no final de 1971. Só seria solto definitivamente em janeiro de 1972, depois de cumprir, em regime fechado, mais de três anos de cadeia, dois anos e quatro meses a mais do que o tempo previsto na sentença definitiva.

Aladino Félix morreu aos 68 anos, em circunstância prosaica (complicações geradas por medicamentos que havia ingerido para uma simples cirurgia de hérnia), no dia 11 de novembro de 1985, ano em que o país, já livre da ditadura, ingressava na redemocratização e ele mergulhava no ostracismo.

*Colaborou Ivan Seixas.

*Pesquisa iconográfica e edição de imagens Paula Cinquetti.


José Murilo de Carvalho: 'AI-5 acarretou círculo vicioso de violência nunca antes visto no país'

Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Um dos mais importantes historiadores brasileiros, José Murilo de Carvalho afirma que o AI-5 acarretou um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país.

O Ato Institucional número 5, editado pelo governo militar há 50 anos, representou o início da fase mais dura da ditadura. Concedia ao presidente, entre outros arbítrios, poderes para fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos. Só foi extinto dez anos depois, no último dia de 1978, em meio ao processo de abertura política.

"As medidas do AI-5 afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia", afirma Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de livros como "A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho" e "Os Bestializados".

Ele pondera, contudo, que o regime militar passou por fases distintas de repressão e apresentou resultados positivos na economia, o que em parte explica o saudosismo de grupos que pedem nova intervenção militar. Uma história mais isenta do período ainda está para ser escrita, diz.

O que significou o AI-5 no contexto do governo militar?
Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime. O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, a mesma que, no ano seguinte, promoveu o que se chamou na época de golpe dentro do golpe, isto é, a substituição de Costa e Silva, ele próprio um dos líderes dessa linha, mas afastado por razões médicas, e de seu vice, o civil Pedro Aleixo, por uma junta militar puro sangue.

As medidas do AI-5 afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia. Entre 1968 e 1978, houve claramente uma ditadura militar. A dificuldade é dar nome aos anos que precederam e seguiram essa ditadura.

Na época, falou-se em ditabranda para a distinguir de ditadura. Mas como medir isso? O que seria uma ditabranda?
Apesar da dificuldade, creio ser importante, para melhor entendimento do período como um todo, registrar que ele teve uma dinâmica interna, como, aliás, qualquer época histórica.

Podemos indicar essa dinâmica traçando o percurso de algumas variáveis socioeconômicas ao longo dos 21 anos que durou o governo militar. A violência e o arbítrio, por exemplo, percorreram uma curva de tipo sino, isto é, cresceram de 1964 até 68-69, atingindo seu ápice, e começaram a decrescer a partir de 1978-79, quando foram suspensos os efeitos dos atos adicionais, foi aprovada a anistia e ressurgiram as greves operárias.

A curva do crescimento econômico seguiu padrão semelhante: começou baixa, atingiu um auge de 14%, no período mais violento, e começou a cair nos últimos anos.

A curva da inflação teve formato oposto, o de U, isto é, começou no alto, caiu e retomou a subida ao final.

Um exame das interrelações dessas três curvas pode ajudar a entender a dinâmica sociopolítica do período.

Na reunião do Conselho de Segurança Nacional, Pedro Aleixo, então vice-presidente, foi o único a se opor explicitamente à radicalização do regime. Tivesse ele mais apoio, teria sido possível evitar o AI-5?
Dificilmente. A decretação do AI-5 foi uma vitória da linha dura militar, que só seria desafiada mais tarde pelo general Geisel.

Opositores civis não tinham qualquer condição de alterar o curso dos acontecimentos. Mesmo porque havia muitos civis, políticos ou não, apoiando o governo. O redator do AI-5 foi o ministro da Justiça, Gama e Silva, um professor de direito, ex-reitor da USP.

O discurso de Marcio Moreira Alves contra os militares e a decisão da Câmara de negar a licença para processá-lo foram, de fato, preponderantes para o AI-5 ou apenas pretextos para uma medida que seria tomada de qualquer maneira?
Serviu de pretexto. A oposição se fortalecia e ameaçava o regime. Em junho de 1968, houve a Passeata dos 100 Mil no Rio de Janeiro.

O senhor acha que Costa e Silva teria mesmo revogado o AI-5 em 1969, como se diz, se não tivesse sofrido o derrame?
É o que se dizia na época. Mas, em 1964, Costa e Silva foi o principal representante do grupo militar mais radical e contribuiu decisivamente para que a intervenção militar se afastasse do padrão anterior de 1945, 1954 e, mesmo, de 1961, quando o poder foi devolvido aos civis depois do golpe.

Qual foi a pior marca do AI-5?
Ele aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país. A repressão atingiu prioritariamente intelectuais, jornalistas, estudantes e artistas, além de lideranças sindicais.

O pior legado do AI-5 foi a divisão da sociedade brasileira em grupos antagônicos, foi o divórcio entre Forças Armadas e alguns setores da sociedade, foram os ferimentos que, ficamos agora sabendo, ainda não cicatrizaram. Talvez seja necessário que decorra mais uma geração para que uma história mais isenta do período seja escrita.

Hoje muitos negam que tenha havido uma ditadura militar no país, entre eles, o presidente eleito Jair Bolsonaro. Alguns grupos pedem intervenção militar. Por que isso ocorre?
Quanto à primeira parte, é difícil dizer que não houve ditadura diante de fatos como o fechamento do Congresso, a extinção dos partidos, a censura à imprensa, as cassações de mandatos e de direitos políticos, as demissões arbitrárias, inclusive de juízes do STF, as prisões, a tortura, as mortes de prisioneiros políticos. Se isto não é ditadura, o que seria? O máximo que se pode dizer é que o período passou por fases distintas de repressão, como foi sugerido.

Quanto à segunda, é preciso repetir que o período militar ainda não é história, ainda vive na memória de muitos, sobretudo dos que foram suas principais vítimas. Mas é preciso admitir que haja também memórias positivas em alguns setores da população. É preciso lembrar o grande crescimento econômico da época, a urbanização acelerada, a grande criação de empregos, as muitas medidas de caráter social, como o BNH, o Mobral, o INPS.

Em matéria de direitos, a ditadura dos militares copiou a de Vargas: tirou direitos civis e políticos, criou direitos sociais. E, naturalmente, houve a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol em 1970. A Folha publicou recentemente resultados intrigantes de uma pesquisa sobre a memória da ditadura.

Eles indicavam que a visão negativa do regime era maior na geração que se seguiu a ele do que naquela que o viveu. Como explicar isso?


Folha de S. Paulo: AI-5 também agradou aos militares moderados, diz historiador

Por Naief Haddad, da Folha de S. Paulo

A versão de que o Ato Institucional número 5 foi decretado para agradar à chamada linha dura (os militares mais radicais) do governo Costa e Silva é corrente entre grande parte dos historiadores do país. Para o professor de história da USP Marcos Napolitano, não é bem essa a realidade.

De acordo com ele, a tomada das decisões extremas que compõem o AI-5, como o fechamento do Congresso Nacional, foi conveniente tanto para a linha dura quanto para a ala moderada das Forças Armadas.

Não houve, portanto, divisão entre os militares a respeito do decreto de 13 de dezembro de 1968, diz o autor de "1964 - História do Regime Militar Brasileiro" (editora Contexto). "O AI-5 foi um ponto de encontro de todos os militares no encaminhamento de uma crise que, em última instância, ameaçava as Forças Armadas no poder", afirma Napolitano.

"Houve esse ponto de convergência e, a partir daí, foram editados mais 12 atos institucionais. Alguns desses eram muito duros e aprofundaram o que havia sido gestado no AI-5."

Editado em setembro de 1969, o AI-13, por exemplo, determinou que o Poder Executivo poderia "banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à Segurança Nacional".

Napolitano também se opõe a outra versão sobre esse período que tem se consolidado nas últimas décadas, a de que a luta armada de esquerda só se organizou depois do AI-5."Estamos numa época de "fake history", não é? Sou contra", brinca. "Já havia um projeto de guerrilha, o terrorismo de esquerda, antes desse ato institucional."

Napolitano lembra que, ao longo de 1968, ocorreram atentados feitos pela extrema direita clandestina. "É o que chamamos de estratégia de tensão. Provoca-se um atentado para culpar o outro [no caso, a esquerda] e criar um clima de pânico na sociedade."

Em "A Ditadura Envergonhada", o primeiro volume da sua série de livros sobre o regime militar, o jornalista Elio Gaspari contabiliza 32 atos terroristas saídos da direita, sem vítimas fatais. Mas também é fato, pondera Napolitano, que aconteceram ações armadas de esquerda nos meses de 1968 que antecederam o AI-5.


O Globo: 50 anos do AI-5 - Colunistas  relembram o dia em que a ditadura recrudesceu

Míriam Leitão, Fernando Gabeira, Zuenir Ventura e Ancelmo Gois contam onde estavam e como viveram o 13 de dezembro de 1968

Por Miguel Caballero e Fernanda Krakovics, de O Globo

Na noite de 13 de dezembro de 1968, tendo a seu lado o ministro da Justiça, Gama e Silva, no Palácio Laranjeiras, o locutor Alberto Curi leu em cadeia nacional as oito páginas do Ato Institucional Nº 5.

Era o ato que representou uma inflexão do regime militar no Brasil. O documento de oito páginas conferia ao presidente da República autoridade para cassar mandatos parlamentares e fechar o Congresso.

Era facultado ao governo ainda nomear interventores para dirigir estados e municípios, demitir qualquer funcionário público e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão.

A censura prévia na imprensa e nas expressões artísticas e a suspensão do habeas corpus para crimes de motivação política completaram o cenário do período mais antidemocrático da história brasileira.

Era o endurecimento do regime em reação ao acirramento do clima político em 1968. Cinquenta anos depois, quatro colunistas do GLOBO contam onde estavam e como viveram aquele momento histórico.

» Ancelmo Gois

A locução do AI-5 pelo rádio no Colégio Estadual de Sergipe e a fuga de barco antes da prisão

Ouvi pelo rádio a leitura do AI-5. Estava na sala do grêmio estudantil do Colégio Estadual de Sergipe, em Aracaju. Tinha 20 anos, e na hora eu tremi. Sabia que estaria entre os visados pela repressão. Eu trabalhava no jornal “A Gazeta de Sergipe”, e militava no movimento estudantil. Àquela época, em Aracaju, nos inspirávamos no que acontecia no Rio. Quando se organizavam grandes passeatas aqui, nós fazíamos lá também, como nos protestos contra a morte de Édson Luís.

Fui ouvindo a possibilidade de se fechar o Congresso, o fim do habeas corpus, e a primeira decisão foi fugir. Naquela noite, dormi na casa de um amigo, e no dia seguinte já traçamos um plano. A família de outro amigo tinha uma propriedade na caatinga, distante um pouco de Aracaju, e lá havia um casebre, num lugar ermo, no mato, aonde só se chegava a pé. Decidimos ir para lá.

Mas antes havia um problema. Aracaju, naquela época, só tinha uma saída. Se você quisesse ir para João Pessoa ou para o Sul do país, a estrada para sair da cidade era a mesma. O pai de um colega, que tinha um jipe, saiu da cidade e verificou que de fato o Exército tinha instalado um controle na estrada.

Ele saiu e foi nos buscar em outro ponto do litoral, afastado da cidade, para onde nós fomos de barco. Éramos cinco líderes do movimento estudantil, entre eles a mulher com quem me casaria e com quem estou até hoje, Tina Correia.

Ficamos por cinco dias escondidos. Decidi voltar para casa no dia 18, e no mesmo dia foram me prender. Fiquei 40 dias no 28º Batalhão de Caçadores, em Aracaju, onde dividi cela com outro colega secundarista, Tonico, um deputado cassado, Durval Militão, e um rato. Não fui torturado.

Fui absolvido na 6ª Região Militar, graças, em parte, à ajuda de Dom Eugenio Salles, na época Arcebispo Primaz do Brasil, e à atuação da brava da advogada Ronilda Noblat.

» Zuenir Ventura

“Imaginávamos alguma reação da ditadura, mas não se esperava algo tão drástico”

Lembro que naquele dia eu estava na casa do (cineasta) Leon Hirszman, na Urca, que era perto de onde eu morava. Assistimos pela televisão à transmissão da leitura do AI-5. Fui dormir na casa de um amigo nosso, chamado Carlos Mariani, onde julgávamos ser um lugar mais seguro, ele era de uma família de banqueiros.

Aconteceu pela primeira vez aquilo que chamaríamos de “arrastão”, uma palavra que tempos depois passou a designar também ondas de violência comum. A polícia saiu prendendo todo mundo. A sensação era de que a todo mundo estava sendo preso. Juscelino (Kubitschek) foi preso na escadaria do Municipal, onde tinha ido ser paraninfo de uma formatura.

Lembro que nos ligávamos, uns para a casa dos outros, alertando para ter cuidado, procurar algum lugar mais seguro.

À época, eu trabalhava na revista “Visão”, que ficava bem perto do Calabouço, onde havia o restaurante universitário onde o estudante Edson Luís foi assassinado. Da janela da “Visão”, eu vi onde tudo começou.

Depois as coisas foram acirrando, houve confrontos com a polícia no velório e na missa de sétimo dia, depois houve a Passeata dos Cem Mil. Imaginávamos alguma reação da ditadura porque o clima vinha se endurecendo. Mas não se esperava que fosse tão drástico.

A censura começou antes. Já no dia do AI-5, os jornais saíram censurados.

Foi uma noite de terror. Tempos depois, o (escritor Carlos Heitor) Cony me contou que, ao ser preso, ouviu a conversa entre dois militares naquela noite: “Vamos ter muito trabalho esta noite, vamos fuzilar Juscelino e Lacerda”. Ele morreu inconformado de nunca ter conseguido apurar por que desistiram daquele plano.

» Miriam Leitão

“Cheguei à juventude em um país sob o AI-5. Em 1972, eu estava presa”

Eu tinha 15 anos, mas era uma adolescente muito politizada. Morava no interior, em Caratinga, Minas Gerais, mas seguia o noticiário e vinha acompanhando o movimento estudantil.

A gente tentava furar a censura, e percebeu que a situação estava ficando mais tensa. Era possível perceber. Eu me lembro claramente desse dia. O AI-5 marcou a minha vida radicalmente. A partir daí, começou um período no qual eu desabrocho, chego à juventude em um país sob o AI-5. Deu no que deu: em 1972, eu estava presa.

A gente tinha um grupo de amigos em Caratinga, de adolescentes, e começou a discutir muito sobre o que ia acontecer no Brasil. Era um momento de pessimismo —você ter pessimismo aos 15 anos de idade...

O AI-5 pegou a minha geração e passou o trator por cima. Todos os meus amigos daquele grupinho de Caratinga, que se reunia, trocava livros, conversava, todo mundo foi preso. Não naquele momento, mas ao longo dos anos 70, quando chegou na universidade.

Alguns foram para Brasília, foram para lugares diferentes, fazer cursos diferentes, Química, Sociologia, Jornalismo. Eu fui para Vitória. Mas todo mundo acabou preso.

Não foi uma lei qualquer, era uma lei presente. A gente não podia fazer reunião. As reuniões da UNE eram encontros clandestinos. A UNE era um perigo de vida. Era assim, esse tipo de maluquice.

Não foi uma coisa abstrata, que aconteceu em Brasília e atingiu os governantes. Atingiu todo mundo que tentou ter algum tipo de participação, ter voz ativa, entender o que estava se passando, todo mundo foi atingido de uma forma ou de outra. Era uma lei concreta.

» Fernando Gabeira

Frieza da população nas ruas e o impacto da censura na imprensa

Dois aspectos me marcaram muitos nos dias seguintes à promulgação do AI-5. Primeiro, uma reação com certo distanciamento da população em relação àquele agravamento do regime. Já nos dias seguintes ao ato, fizemos uma série de panfletos de contestação à medida, denunciando os abusos e ilegalidades do texto. A ideia era distribuí-los nas ruas.

Lembro de não haver uma repercussão como imaginávamos. As pessoas, nas ruas, não se mostravam interessadas. Havia uma reação de certa frieza.

Nós fomos às ruas panfletar nas semanas anteriores ao Natal, e até hoje tenho para mim que isso influenciou nesse distanciamento.

Por outro lado, no campo profissional a repercussão para mim foi muito maior, embora eu já exercesse uma militância política.

À época, eu chefiava ao departamento de Pesquisa do “Jornal do Brasil”. Não tenho lembranças específicas do dia 13 de dezembro, provavelmente eu estava na redação, mas me recordo bem das semanas seguintes.

A partir daquele dia, a censura foi interiorizada nos jornais. Isso foi um impacto muito grande para todos que trabalhavam na imprensa. Os jornais passaram a trabalhar sob análise prévia dos militares.

Pessoalmente, fui me tornar alvo mais direto da repressão violenta do regime militar mais tarde, após o episódio do sequestro (Gabeira estava entre os que participaram do sequestro do embaixador americano no Brasil, em setembro de 1969. Charles Elbrick foi libertado em troca da soltura de presos políticos da ditadura).


Folha de S. Paulo: Decretado há 50 anos, AI-5 mudou para sempre as linguagens artísticas do país

Lançamentos reveem anos de repressão durante a ditadura e ascensão do conservadorismo hoje

Por Maria Luísa Barsanelli, da Folha de S. Paulo

Ainda que rodeada de incertezas, a classe artística permanecia em grande parte tranquila nos primórdios do regime militar brasileiro.

Castello Branco, primeiro general-presidente, era tido como intelectual e amante das artes, em especial das cênicas, da qual era assíduo frequentador. Pôs à frente do Serviço Nacional do Teatro uma crítica e estudiosa de renome, Bárbara Heliodora, e o conselho da Companhia Nacional de Teatro agregou de Carlos Drummond de Andrade a Décio de Almeida Prado.

“Quem iria desconfiar que um governo chefiado por um presidente tão bem-intencionado em relação ao teatro iria se transformar num inimigo dessa atividade?”, questionava o crítico Yan Michalski em “O Teatro sob Pressão” (1985).

O que se seguiu ao mandato de Castello Branco, findo em março de 1967, foi uma escalada de repressão que levou ao mais opressivo ato institucional do regime, o AI-5, decretado há exatos 50 anos.

O ato, que institucionalizou a ditadura e deu ao então presidente, Arthur da Costa e Silva, poderes de fechar o Congresso Nacional, moldou as criações artísticas. A censura, até então pontual, passa a ser uma máquina de Estado, minando trabalhos e perseguindo artistas, alguns dos quais recorreram ao exílio.

No período antes do decreto, as artes brasileiras viviam uma ebulição e modernização de linguagem, mas o que uns viam como experimentação interessante foi visto por outros como “ameaças a Deus, à família e à propriedade —à liberdade, enfim”, escreve o jornalista A. P. Quartim de Moraes no recém-lançado “Anos de Chumbo: o Teatro Brasileiro na Cena de 1968”.

Entre as reações da classe estava o espetáculo “1ª Feira Paulista de Opinião”, produzido pelo Teatro de Arena.

Reunia dramaturgos como Lauro César Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos e Augusto Boal, além dos compositores Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Todos respondiam à questão: O que pensa o Brasil de hoje? “Basta criticar as plateias de sábado —deve-se agora buscar o povo”, dizia Boal sobre a obra. Ela teve 84 cortes da censura, mas os artistas decidiram encená-la na íntegra, em desobediência civil.

“De certo modo, o próprio movimento de resistência deu pretextos para que o movimento de repressão aumentasse”, diz Quartim de Moraes.

Capa do programa da 1ª Feira Paulista de Opinião, realizada pelo Teatro de Arena em junho de 1968, em São Paulo

Capa do programa da 1ª Feira Paulista de Opinião, realizada pelo Teatro de Arena em junho de 1968, em São Paulo - Reprodução

O decreto do AI-5, que vigorou por dez anos, só fez aumentar a censura. Visto como maldito, o dramaturgo Plínio Marcos tinha sempre os trabalhos vetados. Conta-se que, certa vez, irritado com um censor, perguntou-lhe o porquê da reprimenda.

“Porque suas peças são pornográficas e subversivas”, respondeu. “Mas por que são pornográficas e subversivas?”, contestou o autor. “São pornográficas porque têm palavrão. E são subversivas porque você sabe que não pode escrever com palavrão e escreve.”

Chico Buarque passou por algo semelhante, e nos anos 1970 assinou músicas por meio de um heterônimo. Com o nome Julinho da Adelaide conseguiu liberação para lançar “Acorda Amor”, “Jorge Maravilha” e “Milagre Brasileiro”.

A 10ª Bienal de São Paulo, em 1969, acabou boicotada por artistas devido à censura às obras de arte e à agressividade instalada pelo governo.

O espetáculo "Roda Viva", montado pelo Teatro Oficina, também é lembrado pela repressão, em 1968. Em São Paulo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth Escobar. Cenários e camarins foram destruídos, e parte do elenco, como a atriz Marília Pêra, foi espancada pelo grupo paramilitar. Já em Porto Alegre soldados foram ao hotel onde os artistas estavam hospedados, agrediram o elenco e o embarcaram num ônibus de volta a São Paulo.

São fatos históricos hoje vistos com distanciamento, mas que retornam ao debate num momento em que muitos questionam se vivemos um retorno à censura.

O assunto vem sendo debatido em encontros e seminários, entre eles um simpósio organizado no mês passado pela USP que costurava paralelos entre o clima de 50 anos atrás e o de hoje, com uma ascensão do conservadorismo e de movimentos extremistas.

“Melhor seria se este livro não precisasse existir”, escreve a crítica de arte Luisa Duarte na abertura de “Arte Censura Liberdade”, antologia organizada por ela e lançada agora.

O livro, diz a autora, é uma reação a ataques sofridos por artistas, em especial no ano passado, que teve casos como a interdição da mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre, e agressões ao coreógrafo WagnerSchwartz, que foi chamado de pedófilo após uma performance em que seu corpo nu podia ser manipulado pelo público —ele foi tocado, na perna e na mão, por uma uma criança.

Os conflitos, opina Duarte, teriam a ver com o momento político e ainda com as conquistas de minorias.

Nos 19 textos do volume, discute-se a chamada guerra cultural —disputa política que ganha corpo no campo das artes— e se o meio artístico não estaria se isolando e deixando de dialogar com a população.

Por fim, “Arte Censura e Liberdade” tenta “apontar uma possibilidade de sair de uma enrascada”, segundo a autora. “Tomara que o país não necessite de um livro desses daqui a dois anos.”

Anos de Chumbo: o Teatro Brasileiro na Cena de 1968

A. P. Quartim de Moraes. Edições Sesc. R$ 54 (191 págs.) e R$ 27 (ebook)


Arte Censura Liberdade – Reflexões à Luz do Presente

Luisa Duarte (org.). Editora Cobogó. R$ 46 (264 págs.)

CENSURA EM NÚMEROS

84
cortes foram feitos pela censura no espetáculo ‘1ª Feira Paulista de Opinião’, do Teatro de Arena

33 dos 36
livros da escritora de romances eróticos Cassandra Rios foram vetados

48
canções de Taiguara, registradas entre 1970 e 1974, foram proibidas