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Luiz Sérgio Henriques: A filósofa e o autocrata

Agnes Heller adverte que a democracia liberal é nossa única chance de sobrevivência

Talvez não seja vezo, vício, muito menos viés o que tem garantido no debate corrente a fortuna do termo “ideologia”, especialmente no seu mau sentido, aquele segundo o qual, se não formos capazes de um esforço severo e constante, terminaremos por ver o mundo com lentes deformadas ou mesmo de ponta-cabeça. A acreditarmos em Agnes Heller, filósofa de sólida formação marxista e há décadas influenciada pelo liberalismo político, passamos rapidamente de uma sociedade de classes para uma sociedade de massas, em que, se as classes obviamente não desapareceram, foram fortemente redefinidas e deixaram de ser percebidas como o motor único ou mesmo principal do comportamento político.

Neste contexto de massas, ideologias tóxicas de novo tipo, manipuladas por aventureiros, tomam a cena, insuflam atitudes irracionais e servem de escora para modalidades inéditas de tiranos e tiranias. As palavras de Heller, registradas por Le Nouvel Observateur e reproduzidas por O Globo, provêm de um dos vários laboratórios atuais dessas perigosas experiências, a sua Hungria natal. Nela, com efeito, Viktor Orbán, personagem com quem nos familiarizamos já no primeiro dia do ano, com sua presença na posse do novo presidente, radicaliza o projeto de democracia iliberal, oposto ao liberalismo não democrático que, segundo ele, assinalaria uma Europa extenuada, sem cultura e sem alma, termos afins aos do nosso ministro das Relações Exteriores.

A “democracia cristã” do autocrata húngaro nada tem que ver com grupos e correntes da mesma denominação que, no segundo pós-guerra, reuniram partes muito expressivas de eleitores influenciados pelo catolicismo, muitas vezes em confronto aberto, mas institucionalmente regulado, com setores do mundo laico, fossem eles liberais ou socialistas. Conflitos ásperos à parte, a velha democracia cristã incorporava amplos contingentes populares à vida do Estado democrático, vitalizando-o e tornando-o mais representativo, transformando-o, por conseguinte, na arena por excelência da disputa política civilizada. Nessa arena preciosa, resultado de longo e cruento percurso histórico, o conflito, então, poderia ser produtivo para todos, tal como provado por décadas de políticas de bem-estar social que não se restringiram à Europa ou aos Estados Unidos de Roosevelt, mas deixaram marcas por toda parte, até no Brasil.

A nova “democracia cristã”, ao contrário, gostaria de generalizar ideias fora de lugar e de tempo – ideologias, exatamente –, como, em particular, o recurso demagógico a egoísmos nacionais e a extremado conservadorismo de valores. O primeiro de tais recursos choca-se, evidentemente, com os traços de uma época em que o gênero humano, provavelmente pela primeira vez, deixa de ser construção mais ou menos abstrata dos filósofos e passa a ser realidade imediata para cada indivíduo, em qualquer canto que esteja. Difícil contornar essa evidência apontando o dedo contra “globalistas”, uma vez que cada país se vê às voltas com fenômenos de todo tipo que escapam às próprias fronteiras. A interdependência, por isso, é o horizonte do nosso tempo para o bem ou, certamente, para o mal, se não soubermos construir os instrumentos capazes de governá-la.

O conservadorismo de valores assenta-se, no caso de Orbán, e não só nele, numa religião singularmente reativa aos processos de modernização e secularização, além de amputada da dimensão solidária e fraterna que nos acostumamos a encontrar nos fatos religiosos. Não há aqui nem sombra de períodos marcados pelo ecumenismo ou pelo “diálogo” com os não crentes, mas, ao contrário, espírito de cruzada a ser invocado na perspectiva de uma guerra de civilizações. Imigrantes são mal-vindos, as religiões que trazem maculam a pureza dos valores locais, o multiculturalismo próprio de uma vida cosmopolita deve ser desprezado. E não é complicado, para demagogos, explorar ressentimentos incrustados no senso comum e produzir tiradas em série contra o “politicamente correto”, denunciado como insuportável “ditadura” de minorias, quando, nos casos melhores, ele é sinal de atenção e reconhecimento de sujeitos e realidades antes invisíveis.

Viktor Orbán, como dizíamos, não está só no mundo. Pertence a uma galeria de personagens autocráticos que pouco a pouco passaram a fazer parte das nossas preocupações cotidianas. Alguns deles, mais agressivos, certamente por agirem em contextos de tradições democráticas mais frágeis, chegaram a concretizar os elementos iliberais com que sonharam. Outros, como Trump ou Salvini, mesmo implementando políticas regressivas, veem-se constrangidos ou limitados por aquilo que se tem chamado de “regras não escritas da democracia”, as quais, materializando amplo consenso em torno das instituições, impedem que as liberdades morram, para aludir ao livro conhecido de Levitsky e Ziblatt. E não se entende muito bem por que o Brasil, segundo palavras recentes do presidente Bolsonaro, deva se aproximar de países, como esses, ideologicamente vizinhos. Só haveria perdas reais e ganhos imaginários, a não ser que a realidade passe a ser percebida de cabeça para baixo.

A voz da outra Hungria, a de Agnes Heller, adverte-nos que a democracia liberal é a nossa única chance de sobrevivência, ainda que nem todas as suas promessas tenham sido cumpridas nem tenham sido exploradas todas as dimensões da liberdade. Mas nenhuma hipótese de mudança social poderá doravante cancelar o regime de liberdades “liberais”, ao contrário do que políticas puramente classistas do passado admitiram e promoveram, com resultados em geral negativos ou até catastróficos. E não há “populismo dos povos” a ser contraposto ao “populismo ideológico” dos grupos de extrema direita. Mas essa é uma outra frente de combate ideal que se deve travar no âmbito dos progressistas. Incessantemente, aliás.

 


Folha de S. Paulo: Desafio é domar essência nacionalista da Europa, diz filósofa Ágnes Heller

De passagem por Buenos Aires, onde recebeu um título de doutora honoris causa da Untref (Universidade Nacional Três de Fevereiro), a filósofa húngara Ágnes Heller, 88, disse que teme o crescente sentimento nacionalista na Europa.

Por Sylvia Colombo, de Buenos Aires

Para ela, a região "não tem a tradição democrática nem o sistema de pesos e contrapesos que os Estados Unidos possuem".

Sobrevivente do Holocausto, ela é professora emérita da New School, em Nova York, e divide seu tempo entre os EUA e Budapeste. Discípula do filósofo marxista Georg Lukács, tem um campo de atuação variado, que inclui textos sobre ética, Shakespeare e teoria política.

Folha - Há quem pense que existe um contexto nos EUA e na Europa que permita o ressurgimento de algo similar ao nazismo. Está de acordo?
Ágnes Heller - As coisas não podem se repetir de forma concreta, mas sim em sua essência. Erram os historiadores que pensam que se aprende algo com a história e não se volta a errar. A única coisa que se aprende com a história é que nunca se aprende nada com ela. Embora um contexto possa apontar uma tendência, são decisões políticas que realmente dão direção ou rompem tendências. O futuro está sempre aberto.
Quando me perguntam o que vai acontecer à União Europeia ou ao mundo, minha capacidade de responder tem uma limitação, que é marcada pela ação dos atores políticos.
Por exemplo?
O 'brexit'. É um evento histórico baseado na estupidez de um indivíduo. Se David Cameron não propusesse o plebiscito, não estaríamos incluindo o 'brexit' numa cadeia de acontecimentos que parece apontar para uma onda reacionária. Eu classificaria o 'brexit' como um acidente.

O 'brexit', a eleição de Trump e o ressurgimento dos nacionalismos europeus fazem parte de uma tendência?
Não acho fácil conectar essas coisas. Porque a Europa é uma parte diferente do mundo e, principalmente, diferente dos EUA. Nos EUA, há um sistema de pesos e contrapesos e há uma tradição democrática. Na Europa, a tradição democrática é de pouco alcance e apenas em certos lugares.

A Europa ainda é regida pela lógica dos Estados-nação, onde a religião é o nacionalismo. Todos os países europeus, exceto a Suíça, têm no nacionalismo sua principal identidade. Se você perguntar a um europeu quem ele é, ele não vai dizer que é europeu, nem mesmo que é humano, mas sim responderá que é francês, alemão ou húngaro.

Até o século 18, a religião era a identidade básica. A partir do 19, o nacionalismo foi se impondo de forma cada vez mais intensa. Isso trava a formação de uma tradição democrática, de um sistema de pesos e contrapesos, como nos EUA.

O que se pode fazer, então, para evitar casos como o da crise da Catalunha?
É preciso educação e debate para saber como lidar com o nacionalismo, porque ele não vai acabar. É a essência da cultura europeia. O desafio é domá-lo.
Se você é orgulhoso de seu país por conta do futebol, ou de um compatriota que ganha o prêmio Nobel, está bem. Mas se esse orgulho gera ódio com relação a outros, então pode virar algo perigoso. Aí são necessárias a atuação do Estado, por meio de políticas públicas de educação, e da própria sociedade, para que seja consciente sobre o modo como administra esse sentimento.

O que a sra. sente quando vê atos de neonazistas e o ressurgimento de uma extrema direita que se mostra abertamente racista?
A extrema direita tem o nacionalismo como elemento básico, e desde o princípio do século 20 é racista. Ela nunca desapareceu e é necessário sermos vigilantes. Mas o racismo não é exclusivo da extrema direita.

Há, em setores da esquerda, um sentimento antissemita que é bastante racista. Na Inglaterra isso se vê muito, o Partido Trabalhista é muito mais racista que o Conservador no que diz respeito ao antissemitismo. As críticas mais duras contra os judeus vêm da esquerda e estão envoltas também em um ódio passional e nada racional.

Não se odeia os turcos pelo que fazem com os curdos como se odeia os judeus pelo que fazem com os palestinos. E isso você nunca sabe que desenlace pode ter, porque depende da reação de cada país.

Que essas coisas estejam no ar, que exista um contexto, é preocupante, mas não significa que teremos um conflito, porque isso depende das decisões dos atores políticos.

Na Argentina há um debate sobre o número de mortos na ditadura. O que há por trás desse tipo de discussão, que também ocorre com relação ao Holocausto?
Não gosto de comparar cadáveres, mas isso ocorre na Argentina, acontece na Europa quando se insiste em comparar quantos foram os mortos de Hitler contra quantos foram os mortos de Stálin. Como sobrevivente e como filósofa, creio que não tem sentido. Se duas pessoas inocentes foram mortas por um Estado, a gravidade é a mesma.

Dito isso, é preciso reforçar que o Holocausto é um caso especial. Não por conta dos números, porque outros mataram mais do que 6 milhões. A característica mais específica do Holocausto é que determinou-se que uma parte da nação, uma parte da população da Alemanha e da Europa, tinha de ser exterminada por uma questão racista e discriminatória. Isso se aplica a qualquer lugar em que o Estado matou.

Se houve assassinato de civis usando o aparato do Estado por razões políticas isso é imoral, qualquer que seja o número. Um corpo é um corpo. E fazer política com corpos ou usando corpos como justificativa não é ético.

Há uma frustração dos sobreviventes dos campos de concentração com a falta de interesse pelos relatos do que ocorreu?
Muitos intelectuais que sobreviveram a campos de concentração, com poucas exceções, cometeram suicídio. Mas há algo em comum entre os que sobreviveram aos campos de concentração. Todos saíram com um trauma e é muito difícil falar diretamente sobre experiências traumáticas porque, se estão próximos no tempo, as pessoas que viveram esse tempo não querem ouvir, não querem sentir-se cúmplices.

Apenas passados 15 ou 20 anos após o Holocausto, quando os sobreviventes encontraram uma maneira de viver com esse passado, isso começou a mudar. Aí sim começou-se a falar e foi possível detalhar o que ocorreu.

O papel do intelectual no debate político mudou com as redes sociais?
Intelectuais devem estar longe das redes sociais. Eles devem influenciar por seus livros, seus escritos, suas participações em congressos acadêmicos, ainda que isso limite o alcance da mensagem. A essa altura, me soa hipócrita que se discuta o papel do intelectual quando nunca se ofereceu de fato um papel para eles na sociedade.