70 anos

Cacá Diegues: Afinação de novas liras

Não se pode ignorar o espetáculo na TV de Lirinha, músico pernambucano, filmado pela atriz Bárbara Paz

Houve um momento, na segunda metade do século passado, em que a cultura popular brasileira adquiriu tal força de expressão que se tornou a representação mais generosa do que era e do que podia ser o país. Ela não só representava com brilho e pertinência o que aqui se passava, como também se tornou fundadora de novos costumes capazes de nos organizar como nação. A chama incendiou os mais variados formatos de criação, da música ao cinema, das artes plásticas ao teatro, da poesia à ficção, passando pela recuperação de tradições esquecidas que foram reordenadas pela televisão com enorme sucesso. Cada uma dessas manifestações se julgava, naquele momento, o útero de uma nova nação.

De tal modo essa ideia se instalou vitoriosa entre nós, que os sucessivos fracassos políticos, econômicos e sociais dos governos de direita ou de esquerda passavam despercebidos, encobertos pelo que era, para intelectuais e artistas criadores, o “verdadeiro Brasil”. Só muito recentemente nos demos conta dos enganos que os políticos nos fizeram abraçar, em nome de conceitos que não se traduziam, na prática, em bem-estar, justiça e progresso para todos. Éramos prisioneiros da distância ilusionista entre povo e nação.

Não digo que isso esteja mudando. Digo apenas que outro horizonte se forma aos poucos diante de nós, apesar da oposição do governo às manifestações de uma oposição ao governo.
Não se pode ignorar o recente espetáculo na televisão de Lirinha, músico pernambucano, filmado pela atriz e realizadora paulistana Bárbara Paz, na Casa de Francisca, em São Paulo, idealizada por Rubens Amatto, também criador do projeto de “cine lives” (cinema ao vivo, segundo Amatto). O espetáculo contou ainda com a curadoria cinematográfica de Laís Bodanzky e a direção de fotografia de Thais Taverna.

Com o título de “Até o fim, cantar”, Lirinha montou um dos mais belos e intensos espetáculos que se viram ultimamente por aqui. “Perseguido” pela câmera orgânica de Bárbara Paz, vestido numa batina que lhe sobra no corpo, como se um santo e folgado cardeal passeasse pelo carnaval, Lirinha mistura canções, textos e gestos teatrais para nos falar do que sente e pressente, sabendo o que aquilo tudo tem a ver conosco, os que assistimos ao show.

Conheci Lirinha quando ele ainda era a voz do Cordel do Fogo Encantado, banda de Arcoverde, portal do sertão pernambucano. Criei uma cena para eles e chamei-os para uma participação especial em “Deus é brasileiro”, filme que eu então rodava no Nordeste. Lirinha musicou um monólogo de Antonio Fagundes, de modo tão belo, preciso e sucinto que, durante a edição do filme, pensei várias vezes em cortar fora a maravilhosa atuação de Fagundes. Só não o fiz porque Deus ficaria sem voz na cena.

Agora, reencontro Lirinha em forma, maduro e consequente, um sorriso no canto dos lábios quando nos diz, logo de cara: “A nossa sorte é ter coragem”. E ir em frente, acompanhado por pequena banda que vai de pífano nordestino a programação eletrônica. É emocionante vê-lo, no meio desse aparato tão simples e sofisticado, dizer que o lugar onde nasceu é “um rasgo na paisagem”. Tudo isso no ritmo do Brasil de hoje, um país dividido em tanta desigualdade, de todo gênero e natureza. A diferença é que, no passado do século passado, nós queríamos, sem saber que queríamos, que o conjunto de nossas obras substituísse a nação. Hoje, é apenas o mais profundo de um ser humano que nos revela, com tanta densidade, o que vê diante e dentro dele.

Mesmo sentimento que nos provoca um filme como “Breve miragem de sol”, realizado por Eryk Rocha, um de nossos mais brilhantes novos cineastas. Este é um filme sobre dois personagens, bem integrados: um motorista de táxi (empenhado em encontrar o filho pequeno de quem vive separado) e a cidade (por onde ele roda, como quase todos nós, sem destino próprio). Duas imensas e permanentes solidões, uma delas genialmente interpretada por Fabricio Boliveira. Eryk Rocha, surpreendido pela pandemia, não vacilou em perceber o que mudara e, em vez de chorar no vazio e reclamar de sombras, lançou seu filme em nova plataforma, abrindo mão de esperar o convencional garantido. “Breve miragem de sol” estreou há poucos dias no streaming da Globoplay e faz ali um grande e merecido sucesso. Alguma coisa acontece.


Eugênio Bucci: 70 anos na semana que vem

No 70.º aniversário da TV brasileira a carranca do arbítrio ainda rosna

Falarão de Hebe Camargo. Quando foi ao ar o primeiro programa da primeira estação de televisão brasileira, a TV Tupi, na noite de 18 de setembro de 1950, Hebe estava lá, na companhia de Lima Duarte e Lolita Rodrigues. Falarão dos festivais da Record, que no final dos anos 1960 redesenharam as feições do cancioneiro popular. Falarão da estreia do Jornal Nacional, em 1969, e da Copa do Mundo de 1970.

Talvez alguns festejem (deveriam festejar) a novela Gabriela, da Rede Globo, que nos trouxe cores mais verdadeiramente intensas do que aquelas que a gente via nas calçadas, nas beiras de rio, nas tardes compridas do verão da Alta Mogiana. (A TV em cores chegou como uma luz mais que solar: realizou a façanha de empalidecer a natureza.) Encarnada por Sônia Braga, a coloridíssima Gabriela subia no telhado de vestido curtinho, azul e branco, para recuperar uma pipa (raia) e fazer despencar o queixo alheio: do Seu Nacib, de toda a cidade cenográfica e dos pais de família do Brasil de ponta a ponta.

Na semana que vem, quando a televisão brasileira comemorar seu 70.º aniversário, lembranças afetivas e afetuosas encherão as telas eletrônicas. Vai ser bom de (re)ver, desde que não abusem demais das pieguices.

Vai ser bom, mas também vai ser ruim. Dificilmente nós veremos o que nunca vimos na televisão, quer dizer, dificilmente veremos aquilo que a exuberância imagética dos monitores pátrios sempre encobriu. No correr dos primeiros anos da década de 1970, quando este jornal aqui penava sob censura estúpida, a televisão brasileira contornava diplomaticamente os contratempos com a tesoura federal e brilhava solta, via Embratel, envolvendo com seu arco-íris subserviente o bueiro moral e institucional da ditadura militar. Sobre isso não nos falarão em demasia.

A televisão brasileira deu unidade imaginária, festiva e deslumbrada a uma nação desgrenhada pela corrupção dos costumes cívicos, pelo desvio de poder, pelo enriquecimento subterrâneo dos apaniguados, pela ignorância oficializada, pela prática diuturna da tortura política, pelo assassinato de dissidentes e, finalmente, pela ocultação sistemática, disciplinada e industrializada de cadáveres. Isso não vai ser tão realçado na festa da semana que vem. Talvez um ou outro entrevistado faça menção, mas sem alarde. Quando os videoteipes de estimação cintilarem na tela, nós não assistiremos a explicações a respeito do lado triste da história. O que a TV sonegava sonegado seguirá.

Talvez alguém conte que houve um tempo nestas terras em que a telenovela falava mais da realidade que o telejornal. É necessário lembrar. Enquanto os noticiários perfilados vendiam aos telespectadores uma peça de ficção ufanista, as telenovelas traziam cada vez mais cenas de rua, tipos populares, dilemas autênticos dos brasileiros de carne e osso. Para inverter a ênfase da notícia, que era a inflação em escalada vertical, o apresentador trombeteava o “rendimento recorde na poupança”. Na sequência, a novela falava de racismo, de corrupção, até de reforma agrária.

Celebrarão o talento, mas não destacarão que a TV em rede nacional foi o projeto cultural mais caro à ditadura: a integração do País pela imagem. Pode ser que digam que o Brasil ganhou sua identidade moderna apenas com a TV, o que é fato, mas não é provável que expliquem, em rede nacional, que essa identidade imaginária acobertou o prosseguimento dos desmandos e das atrocidades no poder.

O que aconteceu no Brasil foi algo único, difícil de entender e de explicar. Logo depois da queda da ditadura, era comum jornalistas estrangeiros perguntarem aos estudiosos locais: mas como é possível que um país com tantos atrasos sociais e civilizatórios tenha erguido uma televisão tão avançada e tão bem-sucedida? A melhor resposta era: justamente por isso, tudo o que você vê de ultramoderno na televisão brasileira corresponde ao que há de mais arcaico na sociedade que a gerou.

A televisão brasileira é um portento, um feito continental, uma obra que impressiona os céticos mais azedos: seus publicitários são consagrados no mundo inteiro, alguns de seus novelistas podem figurar no panteão dos maiores artistas do nosso tempo, alguns de seus animadores reluziram como gênios da raça (e tome Chacrinha!). Mas tudo isso, cada pedacinho disso, só existiu para tecer um país de mentira sobre a podridão do país de verdade. Não é por acaso que a televisão não transmite cheiro.

Sobre essas coisas tristes não falarão muito, não. Pouco falarão das chagas constitutivas do passado. Principalmente nada dirão sobre a abominável chaga do presente: a triangulação promíscua entre redes de televisão, igrejas triliardárias e partidos políticos. Nada falarão do fundamentalismo ultraconservador que abre as estradas para o galope dos fascistas supostamente liberais. A máquina luminescente que no passado integrou um país para sequestrá-lo de si mesmo agora promove fantasias mais nefastas. Na segunda-feira, em cadeia nacional, o presidente urrou que defende a democracia (então, tá) e elogiou a ditadura militar. Nos 70 anos da TV, a carranca do arbítrio ainda rosna.

*Jornalista, é professor da ECA-USP