7 de setembro

Eugênio Bucci: A publicidade ilegal do golpe de Estado

A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal é a propaganda. Não é de liberdade que se trata

Eugênio Bucci / O Estado de S. Paulo

Devemos garantir a liberdade de expressão aos que falam abertamente em destruir a liberdade de expressão dos demais? A resposta é sim. O espetáculo grotesco desse falatório fanático nos dá náuseas, mas a resposta é sim. Enquanto estamos discutindo ideias e formulando críticas, o debate público se resolve por si e nenhuma vírgula pode ser barrada.

Isto posto, vem a pergunta que de fato interessa: então, quer dizer que um grupo semiclandestino de endinheirados, ignorantes e fascistas, armados de carabinas e de supercomputadores até os dentes repaginados e branqueados, pode fazer publicidade massiva do golpe de Estado? Esse é o debate crucial. A liberdade de imprensa, ou de expressão, não está em discussão aqui.

Essas falanges digitais, rurais e enchapeladas, fardadas ou não, essas milícias que veneram a ditadura, a tortura e a censura costumam se refugiar sob o manto da liberdade, mas isso é apenas cortina de fumaça. Discuti-las pelo prisma da liberdade de imprensa ou de expressão é cair na armadilha que elas armaram – e é um erro de método. Não é de liberdade que se trata. Os indivíduos têm o direito de expressar seu pensamento, mas esses destacamentos são organizações profissionalizadas industriando a implosão da ordem democrática, justamente a ordem que nos garante a liberdade de falar o que nos vai ou vem à cabeça.

Qualquer um pode dizer na imprensa ou na internet o que quiser, e disso não abrimos mão. O nosso desafio, porém, não passa por aí, mas por perceber que a liberdade de expressão e de imprensa não inclui a licença de praticar atos – muito mais do que palavras – que atentem contra os direitos fundamentais dos demais. Não estamos discutindo limites à liberdade de expressão. O que precisamos discutir, isso sim, são os limites que se estabelecem – e precisam se estabelecer – contra atos ilegais que se realizam além da liberdade de expressão.

A democracia já encontrou fórmulas eficazes para resolver esse tipo de impasse. Vejamos um exemplo corriqueiro, elementar. Um cidadão tem todo o direito de ir a público dizer que, em sua opinião, todas as drogas deveriam ser descriminalizadas. Esse cidadão é livre para declarar em qualquer lugar, a qualquer hora, que, no seu modo de ver, é razoável e necessário liberar de uma vez a maconha, o LSD, a heroína, a cocaína. Está no seu direito. Fora disso, o mesmo cidadão não tem o direito de, em nenhuma hipótese, publicar nos jornais anúncios da maconha fornecida pelo fulano, que está à venda no site tal, a preço de ocasião. A mesma democracia que garante a plena liberdade de expressão e de imprensa restringe, com toda a legitimidade, a publicidade de substâncias não autorizadas pela lei.

Tudo muito simples, óbvio, irrefutável. Fazer publicidade de uma substância ou de uma prática ilegal não faz parte das garantias postas pelo princípio da liberdade de expressão. A imprensa tem liberdade para publicar todas as ideias, boas ou más. O ramo comercial da publicidade não desfruta a mesma liberdade. As empresas têm é o direito de anunciar seus produtos e serviços – desde que sejam produtos e serviços devidamente legais. A rigor, a publicidade comercial não é propriamente um capítulo da liberdade de expressão, mas uma extensão acessória de um negócio comercial, regulada conforme as normas próprias desse negócio.

Para resumir, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não são a mesma coisa que direito de anunciar. As primeiras são garantias fundamentais e não podem sofrer restrições do poder; o segundo é um direito regulado e só pode ser exercido dentro dos termos da lei que disciplina aquele mercado específico.

Tanto é assim que em vários países democráticos não se aceita publicidade de bebidas alcoólicas para públicos infantis ou adolescentes e nem por isso alguém vai dizer que a liberdade de expressão tenha sido violada. Repita-se: liberdade de expressão não é igual ao direito de anunciar. A democracia diferenciou as duas categorias, por justas e sábias razões. A gente pode e deve criticar as autoridades, até mesmo com dureza, mas ninguém pode fazer publicidade, sobretudo quando financiada de forma obscura com recursos de origem mais obscura ainda, de atos criminosos contra as sedes dos Poderes da República ou contra a integridade física de seus representantes.

Vejamos outro caso. Um sujeito desmiolado pode dar uma entrevista jurando que pinga com limão combate a pandemia. Mas será que uma associação de profissionais tem o direito de promover o consumo de remédios ineficazes como se fossem a panaceia, numa campanha publicitária paga por empresas que têm interesse econômico na fabricação e na venda dessas substâncias? Isso pode?

A ameaça que paira sobre a democracia brasileira não decorre de um abuso da liberdade de expressão, mas de uma forma disfarçada de publicidade (paga) antidemocrática. A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal não é o jornalismo, mas a propaganda milionária. O pesadelo não são os autoproclamados patriotas, mas os patrimoniotas.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-publicidade-ilegal-do-golpe-de-estado,70003821442


Malu Gaspar: República dos bananas

Encontro de governadores acabou girando em torno das ameaças à democracia feitas pelo presidente Jair Bolsonaro

Malu Gaspar / O Globo

Quando os governadores se reuniram na segunda-feira, a partir de Brasília, um pedido de impeachment do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, enviado ao Senado por Jair Bolsonaro, esperava na gaveta por uma resposta do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Em São Paulo, um coronel da ativa, comandante de sete batalhões com 5 mil homens da Polícia Militar em 78 municípios do estado era afastado pelo governador João Doria (PSDB).

Ele se manifestara politicamente, o que é vedado aos militares, atacando o STF e o próprio Doria e insuflando, nas redes sociais, a participação em atos bolsonaristas previstos para 7 de setembro. O risco de ruptura ocupava as mentes de figuras de proa do Judiciário, do Legislativo e até do Executivo. Daí por que o encontro de governadores que previa discutir temas mais práticos, como a reforma tributária, acabou girando em torno das ameaças à democracia feitas por Bolsonaro. Mal se começou a discutir a ideia de uma carta conjunta contra os arroubos golpistas do presidente, a coisa desandou.

O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), apelou para a abertura de um diálogo com o presidente. O mineiro Romeu Zema (Novo) completou:

— (Se) ficar mandando pedra mais uma vez, nós vamos cair nessa vala da polarização de que estamos só seguindo caminhos opostos e cada vez mais distantes.

Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, apoiou. Não adiantou o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), apelar, dizendo que “o silêncio pode significar a omissão dos bons” ou mesmo conivência. Nem lembrar que, passado o golpe de 1964, “todos os governadores sofreram, sem exceção, inclusive os que haviam apoiado a ruptura antidemocrática”.

Ao final, a carta enfática em defesa da democracia virou um pedido de reunião com Jair Bolsonaro. Ele, porém, deu de ombros. Por meio de seus ministros palacianos, já mandou dizer que só se encontrará com governadores aliados, porque não quer dar palco para os outros fazerem proselitismo em cima dele. Ou seja, mandou a proposta de diálogo para a “vala da polarização”.

No Senado, no dia seguinte, o procurador-geral da República, Augusto Aras, protagonizou um espetáculo. Disse que bate, sim, no presidente da República, mas listou uma série de apurações internas que não deram em nada. Para justificar por que afinal não aplicou sequer uma multa a Bolsonaro por não usar máscara e promover aglomerações na pandemia, Aras lançou uma pérola:

— Não tenho dúvida da ilicitude, de que há multa, mas também não tenho dúvida de que, num sistema em que vige o Direito Penal despenalizador, falar em crime pode ser extremamente perigoso.

Ora, o que pode haver de perigoso em aplicar a lei? Se o próprio procurador-geral da República opinou em processos no STF a favor de multas e sanções para quem desrespeitasse a obrigatoriedade do uso da máscara? Talvez a melhor resposta esteja no termo “perigoso”. Para Aras, é perigoso afrontar o “sistema e criminalizar a política”, mesmo que os políticos cometam crimes.

Os governadores voltaram a seus dilemas locais, buscando formas de monitorar e evitar maiores problemas no 7 de setembro. O procurador-geral da República saiu do Senado reconduzido, alisado e bajulado indistintamente por governo e oposição. Pelo menos o senador Rodrigo Pacheco rejeitou o pedido de impeachment do ministro Moraes, como esperado. Com seu gesto, jogou água na fervura da crise, mas sabemos que o alívio só dura até a próxima provocação.

A raiz do problema, porém, permanece. Parece que se estabeleceu um consenso tácito — em estrato relevante da classe política e do próprio sistema de Justiça — de que realmente é perigoso seguir a lei no Brasil. Que é perigoso se posicionar a favor da democracia. Que é melhor não irritar o presidente da República para não causar ainda mais tumulto.

Parecem confortáveis numa espécie de acomodação bem abrasileirada, em que as mesmas pessoas que num dia garantem não haver risco de golpe, no dia seguinte afirmam que afrontar Bolsonaro seria “perigoso”. Vamos ignorá-lo, sugerem alguns. Vamos contê-lo, promete o Centrão, que a cada semana recebe uma prova de que não está dando muito certo. Só não vamos provocar o maluco. É perigoso.

Enquanto isso, Bolsonaro segue seu jogo, que — admitamos — é transparente e aberto. E que dificilmente chegará ao almejado golpe, mas fará muito estrago no caminho. Vai ver estamos esperando muito de nossas lideranças políticas, e quem está certo é o presidente, que obviamente confia estar comandando não uma República de bananas, mas sim a República dos bananas.

Fonte: O Globo


Aumenta a tensão política no país, mas Bolsonaro amarga três nãos

Um deles foi dado pelo comandante do Exército, na solenidade do Dia do Soldado realizada ontem em Brasília

Blog do Noblat / Metrópoles

O presidente da República, que diz jogar dentro das quatro linhas da Constituição, mas que só tenta alargá-las para sentir-se mais confortável e – quem sabe? – reeleger-se ano que vem, colheu mais três reveses e num único dia.

Dois foram “nãos” diretos, e um indireto. Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, recusou o pedido de Bolsonaro para abrir um processo de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Pacheco arquivou o pedido por falta de fundamentos jurídicos, por não ver razões para tanto, e porque ainda diz acreditar no entendimento entre os Poderes da República. O senador é aspirante a candidato à sucessão de Bolsonaro.

O ministro Edson Fachin, do STF, arquivou ação impetrada pelo presidente para barrar inquéritos abertos pelo Supremo sem ouvir antes o Ministério Público. O tribunal, no ano passado, por unanimidade, deliberou que isso é possível, sim.

O terceiro “não” a Bolsonaro, esse indireto, foi dado pelo general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, comandante do Exército, na solenidade em homenagem ao Dia do Soldado. Estava previsto um discurso do presidente, que preferiu cancelá-lo.

O Dia do Soldado coincide com a data de nascimento do marechal Duque de Caxias, o patrono do Exército. O que disse o general Paulo Sérgio está na contramão das falas de Bolsonaro hostis à democracia. Frases do general:

“[Um Exército] forte, capaz e coeso, respeitado nacional e internacionalmente”;

 “[Um Exército] sempre pronto a cumprir a sua missão, delegada pelos brasileiros na Carta Magna. A defesa da pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem”;

“[Um Exército] historicamente reconhecido por suas virtudes cívicas, éticas e morais, que Caxias soube tão bem praticar!”;

[Um Exército dotado do] “espírito patriótico, pacificador e conciliador do Duque de Caxias”;

[Um Exército que tem] “compromisso com os valores mais nobres da pátria e com a sociedade brasileira, em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento”.

O que Lula acalenta para as eleições de 2022 em Pernambuco

Quando Monteiro estava indo da direita para a esquerda, ela veio ao seu encontro

José Múcio Monteiro, ex-presidente do Tribunal de Contas da União, é um nome cotado por Lula para o governo de Pernambuco nas eleições do ano que vem. Ele foi ministro das Relações Institucionais no segundo governo do ex-presidente.

Ex-filiado à ARENA (1966-1979), ao PDS (1980-1991), ao PFL (1991-2001), ao PSDB (2001-2003) e ao PTB (2003), Monteiro assim explicou certa vez sua mudança de posição:

– Eu sonhava sair da direita e ir para a esquerda, mas quando estava indo ela veio.

O sonho de Lula para Pernambuco seria montar uma chapa ampla para as eleições locais que reunisse nomes do PSB, que há quase 16 anos governa o Estado, PT, PC do B e quem mais concorde em apoiá-lo para a sucessão de Bolsonaro.

O nome de Monteiro, se depender só de Lula, seria um deles.

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/aumenta-a-tensao-politica-no-pais-mas-bolsonaro-amarga-tres-naos


Tensão sobre o 7 de setembro gera troca frenética de telefonemas

Braga Netto, PGR e ministros do Supremo trocaram uma série de telefonemas para garantir que o Dia da Independência do Brasil transcorra dentro da normalidade

Bela Megale / O Globo

Após a operação da PF que mirou o cantor Sérgio Reis, além do caminhoneiro Zé Trovão e outros oito alvos, autoridades de Brasília trocaram uma série de telefonemas preocupados sobre como será o dia 7 de setembro. Na tarde de sexta-feira, horas depois de a operação ser deflagrada, o ministro da Defesa, Braga Netto telefonou duas vezes para membros da cúpula da Procuradoria-Geral da República (PGR) para externar sua preocupação. O general também procurou integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). O tema das conversas era o mesmo: garantir que o Dia da Independência do Brasil transcorra dentro da normalidade. As convocações para a data aumentaram após a deflagração da operação.

Ligações ainda foram feitas entre os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e a PGR, além de integrantes do governo. Foi Moraes quem acatou o pedido da PGR para realizar buscas em endereços de pessoas que articulavam manifestações antidemocráticas para o dia 7 de setembro.

As conversas sobre medidas para garantir alguma estabilidade sobre as manifestações ainda aconteciam, quando Bolsonaro fez questão em jogar mais lenha na fogueira. O presidente apresentou o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bela-megale/post/tensao-sobre-o-7-de-setembro-gera-troca-frenetica-de-telefonemas-entre-braga-netto-pgr-e-ministros-do-supremo.html


Eliane Brum: 7 de Setembro: Morte

Brasil chega ao Dia da Independência com um genocida no poder e negacionistas do genocídio em todas as partes

Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um Governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.

Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis. Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. Ele é o resultado, como já escrevi, de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, em um julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.

Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.

O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas. Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui. O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas “a lei de todos nós”. E esclareceu quem são “nós”: “O Brasil de verdade”.

O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como “falsos brasileiros”. Ao contrário. Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.

Bolsonaro não apenas leva os generais de volta ao Governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Ele também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários. Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os “inimigos da pátria” eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. Os opositores, como ele disse, devem ser levados à “Ponta da Praia”, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: “cada vez mais humanos iguais a nós”. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: “nem para procriadores servem”.

De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar “brasileiros de verdade” apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um “mau militar”, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria. Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado “gabinete do ódio”, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como “nós”.

Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética. Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.

Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus. Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.

A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, em um caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.

Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o “mercado”, essa entidade pronunciada com reverência. Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso.

Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. E agora, quando não há mais desculpa? Quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment? Quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para se aproximar do MDB? Quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal? Quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo? Quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro? Quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido em uma das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar? Quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial? Quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer “encher a boca” do repórter “de porrada”? Esta pergunta aqui:

“Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”

Agora, quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro. Esta e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta:

“Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?

A pauta anticorrupção como justificativa para votar em um homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de Setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema direita no poder. Dilma Rousseff (PT) foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado “pedaladas fiscais”. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia (DEM) acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.

Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente “tocando a vida”, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.

Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.

Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.

Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, “tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil”. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.

Neste 7 de Setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é “apenas” incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu Governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.

A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. Neste 7 de Setembro, há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19, inumeráveis. Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. Talvez a pergunta mais importante deste 7 de Setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?

Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Cristovam Buarque: Comemoração incompleta

Daqui a cinco anos, o Brasil ingressará no terceiro centenário de sua história como país independente. Neste 7 de setembro, aos 195 anos de nossa independência, é possível comemorar o que nossos antepassados conseguiram.

Atravessamos quase 200 anos consolidando um imenso território soberano e unificado por redes de transporte, de comunicações, de distribuição de energia, a economia brasileira está entre as maiores do mundo no valor do produto, passamos de 200 milhões de habitantes. Não há dúvida de que temos que comemorar os primeiros dois séculos.

Mas se, no lugar de olharmos para a história, olharmos ao redor, a festa perde seu brilho. Comemoramos um elevado PIB, o oitavo do mundo, mas 84º por habitante, por causa de nossa baixa produtividade.

Igualmente grave, nossa economia se concentra em bens agrícolas e minerais ou indústrias tradicionais, porque somos um país de baixa capacidade de inovação.

Do ponto de vista social, carregamos a vergonha de sermos campeões em concentração de renda, temos formidáveis ilhas de riqueza e um trágico mar de pobreza.

Chegamos ao nosso terceiro século divididos tão brutalmente que podemos nos considerar um sistema de apartação, um país onde a população está dividida e separada por “mediterrâneos invisíveis” intransponíveis.

Somos um país integrado fisicamente e desintegrado socialmente. Por isso, somos hoje, em parte, campeões de violência urbana com mais de cem mil mortos por ano, 50 mil assassinatos e 45 mil vitimados por acidentes de trânsito.

Na política, apesar de comemorarmos o aniversário com um sistema democrático e instituições funcionando, em nenhum outro momento tivemos uma classe política tão desacreditada.

As promessas foram descumpridas, a corrupção se alastrou, os partidos se desfizeram, as finanças públicas foram quebradas, as estatais arrombadas, as corporações dividiram o país em republiquetas sem sentimento nacional.

A sensação é de que o país entra no seu terceiro século desagregando-se, sem coesão social, sem rumo histórico.

O mal-estar se explica por muitas causas, mas certamente a principal está no descaso com a educação de nossa população, desde a primeira infância. Chegamos ao nosso terceiro século com 13 milhões de compatriotas adultos incapazes de reconhecer a própria bandeira da República, por não saberem ler o lema “Ordem e Progresso”.

Além destes, segundo o IBGE, são quase 28 milhões de adultos analfabetos funcionais, apenas um pequeno número de jovens recebe formação necessária para construir a economia e a sociedade do conhecimento que vai caracterizar o século adiante.

Passados dois séculos, ainda somos um país com baixíssimo grau de instrução e com abismal desigualdade no acesso à educação conforme a renda da família.

E não seria difícil fazer com que, bem antes do quarto século, o Brasil conseguisse ser um país com educação de qualidade para todos: os filhos dos mais pobres em escolas com a mesma qualidade dos filhos dos mais ricos; uma sociedade que não dispensaria um único talento intelectual de sua população. Sem isso, certamente não teremos o que comemorar quando o quarto centenário chegar.

 

 

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/09/comemoracao-incompleta.html