1917

Antonio Fausto: Ascensão e crise do movimento sindical no Brasil

A organização dos trabalhadores brasileiros, em Sindicatos, tem início nos primeiros anos do Século XX, derivada do movimento anarquista, trazido pelos imigrantes, que durante meio século (1880/1930) chegaram a quatro milhões de pessoas, a maioria estabelecida no Estado de São Paulo, de onde saíram muitos militantes e dirigentes socialistas revolucionários, influenciados pela revolução russa de 1917.

A produção em bases capitalistas, no Basil, começou no último quartel do século XIX com o surgimento  do mercado de trabalho assalariado,  possibilitado pela abolição da escravatura e a deterioração das estruturas tradicionais. A fabricação têxtil foi durante muitos anos o principal ramo da indústria nacional, que cresce e se diversifica em várias regiões do País.

Três séculos e meio de dominio do escravismo e de outros sistemas arcaicos,  exploração sem limites legais e  opressão social das camadas despossuídas, escravos e pobres livres  foram mutilados moral e fisicamente. A falta de instrução mínima, analfabetismo mesmo,  tradições e costumes primitivos foram obstáculos à exploração da mão-de-obra existente. Daí que os fazendeiros de café e os industriais principiantes preferissem contratar operários-imigrantes.

A primeira etapa da formação do sistema foi concluída ao fim da Primeira Guerra Mundial e com ele se consolida a organização dos trabalhadores em entidades sindicais. Já em 1903, no Rio de Janeiro, ocorrem duas grandes greves, com a participação de cerca de 25 mil operários. Em 1908, foi criada a Confederação Operária Brasileira-COB, a primeira Central Sindical nacional, de influência anarco-sindicalista. Em São Paulo (1917/1919), duas greves gerais (foto acima, greve em 1917), abrangendo cem empresas industriais e milhares de trabalhadores.

Durante quarenta anos, a organização sindical do proletariado brasileiro ocorre no quadro da República oligárquica (1889/1930), cujo traço profundamente repressivo norteou a relação do Estado com as classes subalternas da Sociedade. Desde o início da República, até os anos 20 do Século passado, leis de exceção foram eliminando progressivamente as liberdades previstas na Constituição de 1891, a primeira do regime republicano.

"O desterrro será um instrumento largamente utilizado para reprimir as classes subordinadas, a revolta contra a vacina, de 1904, as lutas contra a carestia, as greves dos anos dez e as rebeliões tenentistas a partir dos anos vinte.

O Código Penal de 1890  considerava reincidente o "vadio ou vagabundo" que não encontrasse ocupação dentro de quinze dias a partir da pena, e o infrator seria recolhido a colônias penitenciárias em ilhas marítimas, nas fronteiras do território nacional ou em presídios militares. Se fosse estrangeiro seria deportado. Entre 1907 e 1915, 342 (trezentas e quarenta e dois) deportações, grande parte de militantes operários. O desterrro será um instrumento largamente utilizado para reprimir as classes subordinadas, a revolta contra a vacina, de 1904, as lutas contra a carestia, as greves dos anos dez e as rebeliões tenentistas a partir dos anos vinte.

Também houve conquistas sociais, formuladas em lei, tais como definição da jornada de trabalho, descanso semanal, regulamentação do trabalho feminino, férias remuneradas e previdência social, estabilidade no emprego dos dirigentes sindicais, ainda que aplicadas parcialmente ou desconsideradas na maior parte do  País e somente efetivadas a partir da Revolução de 1930, acrescidas do salário mínimo e de outros benefícios, enfeixados na Consolidação das Leis do Trabalho-CLT,  em favor somente dos trabalhadores urbanos.

No período de 1930/1945, uma ditadura,  o governo dirigido pelo presidente Getúlio Vargas (foto acima. Arquivo Nacional) alternou benefícios sociais e trabalhistas com violações da liberdade e autonomia sindical, utilizando o Ministério do Trabalho  e uma legislação intervencionista. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, retorno ao Estado de direito, uma Constituição de muitas disposições democráticas, e do próprio presidente Vargas, por via eleitoral direta, em 1950, substituindo um remanescente do Estado Novo, que arrochou salários e reprimiu violentamente as manifestações dos trabalhadores e de suas organizações sindicais. Em Maio de 1954, o salário mínimo, congelado desde 1943, foi dobrado pelo Presidente,  ao preço de uma crise político-militar provocada pelo Manifesto dos Coronéis das Forças Armadas, contrários à medida, resultando na queda do então Ministro do Trabalho, João Goulart.

A partir de meados da década de cinquenta, no governo Kubitschek (1956/1960), intensificou-se a presença do capital estrangeiro. Indústria automobilística, construção naval e demais ramos manufatureiros datam dessa época, ao abrigo da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito-SUMOC, embrião do Banco Central, com ampla disponibilização de privilégios aos capitais dos países desenvolvidos. Aumentaram igualmente os  investimentos estatais, construção de Brasília, de autoestradas, modernização dos portos e ferrovias, centrais elétricas e siderúrgicas. Recrudescimento da inflação, da espiral preços/salários e da dívida externa.

A industrialização acelerada gerou muitos empregos, também o agravamento da situação material de grande parte da população, bastante aumentada pela migração interna  campo/cidade, a par do desemprego urbano resultante das novas tecnologias. A grande conquista social do período foi a lei 3807/60, 26/08/1960, Lei Orgânica da Previdência Social, que consolidou e deu mais consistência jurídica á legislação previdenciária existente.

Em Setembro de 1961, chega ao poder o governo João Goulart (foto acima. Arquivo Nacional), como desfecho de uma crise político-militar de enormes proporções que, por muito pouco, nao levou o País a uma guerra civil. Desde o início da era Kubitschek e em decorrência dos grandes investimentos acima relatados, a economia ganhou escala e com ela o movimento sindical e associativo das massas populares, agora em clima de orientação nacionalista, democrática, liberdade e autonomia - frente ao Estado - das organizações dos trabalhadores, mais na prática que inscritas em leis.  Surgem novas categorias profissionais, crescem as já existentes, despontam o sindicalismo rural, as associações de camponeses pobres, de profissionais liberais e de funcionários públicos.

A concentração e o verticalismo ministerialista perdem terreno, com o surgimento de entidades horizontais, conselhos estaduais de categorias estratégicas, mais enraizamento nos locais de trabalho. Até mesmo uma central sindical bastante representativa, o Comando Geral dos Trabalhadores-CGT, embora ao arrepio da legislação vigente. Greves e manifestações se multiplicaram, algumas abusivas, prejudicando a população. Também os excessos e postulações utópicas, peculiares a todo movimento de massas, que desgastavam o governo democrático e incentivavam o golpismo civil-militar, vindo a efetivar-se em Março/Abril de 1964. Além de correções salariais mais ou menos favoráveis aos trabalhadores, destacou-se como conquista trabalhista a criação do Décimo Terceiro Salário.


REFORMA DA ESTRUTURA SINDICAL, DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONALIZADOS E SINDICALISMO DE ESTADO

As forças político-militares, que assumiram o poder em Abril de 1964, desencadearam repressões em massa contra seus adversários,  cassação dos direitos políticos de centenas de personalidades, milhares de pessoas foram presas e demitidas do serviço público civil e militar. Grande número de sindicatos foi colocado sob  intervenção  do Ministério do Trabalho. Foram proibidas as greves. Elevaram-se as tarifas dos serviços essenciais, eliminados subsídios para importação do trigo e aumento  dos impostos indiretos, reduzindo de imediato o poder aquisitivo dos salários. De 1964 a 1967 o salário mínimo diminuiu vinte por cento em termos reais, vindo a ser aumentado somente em 1975. Ainda assim, foi trinta e nove por cento inferior ao  de Janeiro de 1963, no governo deposto. O regime militar também registrou êxitos econômicos e crescimento que não se revelaram sustentáveis e conduziram a seu esgotamento e retorno ao Estado de direito democrático.

A partir de 1978, os trabalhadores organizados em Sindicatos retornaram á cena política. A greve numa fábrica de automóveis em São Paulo abrangeu, rapidamente,  toda a indústria metal-mecânica do Estado, com mais de duzentos mil operários. No ano seguinte, incorporaram-se ao movimento categorias do funcionalismo público e dos assalariados agrícolas. No período de 1978/1980, houve mais de quatrocentas paralisações, o direito de greve foi reconquistado na prática e prosseguiu pelas décadas seguintes. Aumentou a filiação sindical, atingindo contingente significativo da população  economicamente ativa.

A organização em sindicatos expandiu-se bastante, difundiu-se largamente pelo meio rural, diversificou-se, incorporando amplos setores das classes médias urbanas e de profissionais liberais. Os anos oitenta viram nascer legalmente as centrais sindicais. Houve mudanças legislativas, com abolição do estatuto padrão, que subordinava inteiramente o movimento laborativo ao Estado. A Constituição de 1988 foi o corolário desse processo de democratização e reforma, também de continuidade da subordinação aos Poderes do Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário.  Desde sempre, a necessidade de reconhecimento oficial pelo aparelho de Estado é o elo fundamental da estrutura sindical, a unicidade, as contribuições dos trabalhadores e a tutela da Justiça do Trabalho.

Os anos oitenta, a década perdida, foram marcados pela estagnação do crescimento, pela instabilidade das políticas econômicas do governo,  das regras de correção salarial e dos mecanismos de controle da inflação, que redundaram na queda do poder aquisitivo dos salários, no crescimento  da terceirização das relações de trabalho, informalidade e  trabalho precário, superando largamente o contrato  formal e o asseguramento dos direitos sociais.

"Persistência do peleguismo e do sindicalismo de negócios, que embora tenham perdido a direção das entidades mais importantes, ainda controlam a esmagadora maioria dos sindicatos oficiais."

O sindicalismo de Estado, no Brasil, nasceu com os primeiros governos populistas, a partir da Revolução de 1930 e da ditadura do Estado Novo. A Constituição de 1988 consagrou a liberdade e autonomia sindical e os próprios direitos sociais foram elevados á condição de normas constitucionais, um avanço sem precedentes no ordenamento jurídico vigente no País, embora com exclusão de mais da metade da força de trabalho.

Uma nova onda de populismo e atrelamento ao Estado ressurge com os governos petistas, a partir de 2003, culminando na destinação de parte expressiva do ainda existente Imposto Sindical às Centrais Sindicais, que evoluiram para perto de uma dezena, com intensa proliferação de sindicatos de "carimbo", levando um presidente da CUT a declarar ser mais fácil fundar um sindicato que uma pequena empresa, e mais lucrativo.

Em agosto de 1981, em Praia Grande, Estado de São Paulo, realizou-se a I Conferência Nacional da Classe Trabalhadora - CONCLAT. Presentes 1091 entidades sindicais e 5036 delegados. O meio rural participa com 348 sindicatos, 17 federações e uma Confederação, a CONTAG. Em 1983 é fundada a CUT, em 1984, a CGT, as duas primeiras centrais sindicais nacionais, legalmente constituídas, pelo menos no plano político, ante o esgotamento do regime militar e o retorno ao Estado de direito, no ano seguinte.

Em que pesem todos os avanços, o movimento sindical  continuou a conviver com antigas e novas distorções. Baixo índice de sindicalização e de organização nos locais de trabalho, à exceção de algumas poucas categorias, manipulação política na distribuição de cartas sindicais pelo governo, forte instrumentação do assistencialismo, continuismo e prorrogação de mandatos,  adiamento de eleições,  mediante alterações estatutárias, aparelhamento partidário e  formação de clientelas eleitorais. Persistência do peleguismo e do sindicalismo de negócios, que embora tenham perdido a direção das entidades mais importantes, ainda controlam a esmagadora maioria dos sindicatos oficiais.

Convivência submissa com o baixo grau de escolaridade dos trabalhadores, em torno de cinco anos, excessiva rotatividade,  conduzindo ao achatamento dos salários, desigualdade social e crescente pobreza de massas, burla da legislação trabalhista e previdenciária com a pejotização dos titulares de remunerações mais elevadas. Rebaixamento de grande parte das aposentadorias e pensões  para um salário mínimo e seu entorno, obrigando a maioria dos beneficiários a continuarem no mercado de trabalho, realimentando o desemprego das novas gerações de trabalhadores.

Foto: Altemar Alcantara/Semcom/Manaus

A pandemia do Coronavirus há quase um ano,já ultrapassando mais de duzentos mil mortos, a maioria de idosos, agravou todas as contradições da Sociedade.  O desemprego, incluídos os desalentados, atinge vinte milhões de trabalhadores, um quinto da força de trabalho, somente atingido na Grande Depressão dos Anos Trinta do século passado. Com tendência de alta em face das novas tecnologias, que automatizam e simplificam processos e subutilizam instalações físicas.

O fim do auxílio emergencial e as pressões inflacionárias remetem à pobreza e indigência milhões de trabalhadores, que poderão corresponder a 30,8%  da população, segundo pesquisador da Uerj. O movimento sindical e associativo dos trabalhadores brasileiros tem um peso político, na Sociedade, que deve ser exercitado no sentido de agilizar a vacinação em massa da população, negligenciada pelo governo, o restabelecimento de alguma forma de ajuda aos desempregados e informais e a retomada do crescimento da economia, com investimentos públicos e privados e reformas estruturais.

*Antonio Fausto é administrador e ex-dirigente sindical

Obras de referência: 1) Estratégias da Ilusão - Paulo Sérgio Pinheiro - Companhia das Letras - 1991. 2) Brasil, Passado e Presente do Capitalismo Periférico -  A. Karavaev - Edições Progresso - 1987. 3) O Sindicalismo Brasileiro Nos Anos 80 - Armando Boito Jr. (org) - Editora Paz e Terra - 1991 4) Brasil: Uma Biografia - Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling - Companhia das Letras - 2015.


Henrique Brandão: 1917 - O plano-sequência como protagonista

É difícil falar hoje em dia de cinema, dado que o grande thriller atual no Brasil é a postura irresponsável do presidente na condução da quarentena – quase um filme de terror – e, também, a sua conduta política, cada vez mais radical e estreita, sempre em direção à direita, deixando a nu suas reais intenções políticas e os interesses pessoais por trás dos movimentos que faz. Muitos fãs que apostaram neste roteiro macabro já se decepcionaram e pedem a devolução dos ingressos, alguns até com manifestação de apupos pelas janelas de suas casas. Outros, que nunca gostaram do canastrão escalado para o papel principal e tampouco dos atores coadjuvantes, seguem torcendo o nariz para esta chanchada que deixaria os geniais Oscarito e Grande Otelo envergonhados, tal a tacanhice das ideias expostas. Os próximos dias serão de grande suspense.

O que estamos assistindo não é um filme, mas uma sucessão de episódios cujo desdobramentos são ainda imprevisíveis na vida real. Já na telinha nossa de cada dia a que estamos sujeitos por conta da pandemia, é possível assistir filmes – e séries – melhores do que a conjuntura nos tem reservado.

Uma boa dica que estreou esta semana no Now é “1917”, filme que concorreu ao Oscar de 2020. Indicado em 10 categorias, acabou levando três estatuetas, sendo a mais importante delas a de fotografia – realmente exuberante – conferida a Roger Deakins, um veterano de indicações.

O filme tem um tênue fio condutor, apesar de ter concorrido à categoria de roteiro original. Dois soldados na Primeira Guerra Mundial (1914-18), recebem ordens de um general para entregar uma carta a um coronel que se encontra no front, avisando que aborte um ataque aos alemães, pois o aparente silêncio dos germânicos trata-se na verdade de uma emboscada.

A Primeira Guerra teve enormes baixas: 17 milhões de pessoas morreram no conflito. Os soldados muitas vezes passavam meses entrincheirados, em condições insalubres, e avançavam muito pouco em suas posições. É neste cenário que começa a, digamos assim, “corrida de obstáculos” dos jovens combatentes por entre as trincheiras da Tríplice Entente no norte da França.

Assim como os protagonistas de posse da carta saem em disparada serpenteando os tuneis repletos de soldados, a câmera que os acompanha na ação também não para: registra as imagens como se ela em si fosse um terceiro mensageiro, enfrentando lado a lado as peripécias e surpresas que a dupla encontra pelo caminho. Este é o grande diferencial do filme, realizado como um único plano sequência, mas também seu calcanhar de Aquiles. A “mise-em-scène” é excelente: centenas de figurantes são estrategicamente posicionados por onde a câmera passa, numa encenação naturalista de poucos diálogos e muita ação que mobiliza uma estrutura enorme para que tudo aconteça conforme a história avança. Deste ponto de vista, irrepreensível.

Nos dias de hoje não precisa ter frequentado escola de comunicação para saber que cinema é imagem em movimento. Todo mundo sabe, mesmo que não formule teoricamente, já que nosso código de mensagens é cada vez mais audiovisual. Cinema é linguagem.

No início do cinema não era a câmera que se movimentava, mas o personagem. Buster Keaton, com suas alucinadas correrias e Chaplin, na figura de Carlitos, o adorável vagabundo que vive fugindo da polícia, sempre derrapando ao dobrar uma esquina, são exemplos clássicos.

O desenvolvimento tecnológico permitiu trilhos que evitavam a trepidação durante os movimentos e câmeras mais leves possíveis de serem carregadas e que dispensavam o uso do tripé. O cinema ganhou mais dinâmica: os “travellings” e a câmera na mão passaram a fazer parte da linguagem. Mais recentemente, o trilho foi ficando para trás com o advento do “steadicam”, um estabilizador de câmera inventado em 1974, em que o fotógrafo entra dentro de uma estrutura de contrapesos que estabiliza a imagem. Hoje, tudo ficou mais leve e portátil.

O primeiro filme comercial a usar o “steadicam” como linguagem creio que foi ‘O Iluminado”, de Stanley Kubrick, baseado em obra de Setphen King, com seus “travellings” aterrorizantes pelos enormes corredores de um gigantesco hotel vazio no inverno, enquanto o personagem de Jack Nicholson enlouquece.

Planos-sequências são algo comum no cinema. São vários os exemplos. Talvez o mais famoso seja o de abertura de “A Marca da Maldade” (1958), de Orson Welles, uma obra-prima. Hitchcock filmou “Festim Diabólico” sem cortes, em planos-sequências até onde os chassis dos negativos permitiam. Filmou em ambiente fechado, o que facilita o ensaio dos atores.

A novidade de “1917” é realizar um filme inteiro quase que em locação ao ar livre, com centenas de figurantes. Algumas sequências ocorrem somente entre os dois soldados, ou nos tuneis das trincheiras ou em uma fazenda francesa. É uma façanha. E retrata muito bem, com direção de arte impecável, as condições terríveis da “guerra de posição”, como ficou conhecida a tática empregada do avanço lento e progressivo das posições estratégicas na Primeira Guerra.

O problema pela ousadia do uso do plano-sequência do início ao fim do filme é que ele, por privilegiar o meio ambiente em que a ação se desenvolve, acaba por distanciar o espectador da emoção do personagem. Ele sobrevive a tiros, bombas, granadas, explosões, cadáveres em profusão, corpos em putrefação, incêndios, ratos famintos, amigos mortos, civis em condições degradantes, sodados mutilados. Apesar do cenário tétrico que a Primeira Guerra engendrou, a sensação de dever cumprido ao final do filme, quando o personagem consegue afinal descansar, se sobrepõe aos horrores da carnificina que vivenciou. Seu esgotamento psicológico é imenso, mas tem pouco espaço. Sua “corrida de obstáculos” terminou.

Tecnicamente o filme é incontestável. A direção das cenas que envolvem centenas de pessoas, sua coordenação de movimentos, merece aplausos. Só por isso o filme merece ser visto. Uma aula de como o cinema avança impulsionado pelos avanços tecnológicos, superando marcos referencias e permitindo o desenvolvimento da linguagem.

Recomendo.


O Globo: Lições ainda não aprendidas da Revolução Russa 

Apesar do fracasso do movimento que tomou o poder em 1917, a alma autoritária do bolchevismo ainda encanta políticos brasileiros ditos de esquerda

A força da efeméride do centenário da Revolução Russa, neste mês de outubro, inundou os meios de comunicação no mundo de reportagens e análises. De forma merecida. A ruptura de séculos da monarquia czarista, no decorrer de 1917, retirou a Rússia de uma longa hibernação e a tornou um símbolo da promessa de um novo tempo em que haveria justiça e igualdade social.

Não deu certo, mas, mesmo como eixo de um império, o soviético, mantido sob a força das armas, a Rússia, polo aglutinador da União Soviética, e o comunismo continuaram a ser referência para forças políticas no Ocidente, não apenas partidos comunistas. O aceno da igualdade tornou-se mais forte que os anseios milenares de liberdade.

Mesmo hoje, conhecidos os massacres de dezenas de milhões, de forma direta ou pela fome, por Josef Stalin e Mao Tsé-Tung, a versão stalinista chinesa, ainda há quem se deixe seduzir por propostas que fazem a concessão de permitir que um Estado opressivo controle a sociedade, em troca de um suposto igualitarismo e da hipotética erradicação da miséria.

Cuba, um parque temático stalinista caribenho, demonstrou que o máximo que se consegue é uma distribuição igualitária da pobreza, garantidas algumas necessidades básicas. Exceto a liberdade. Claro, a elite cubana tem outro padrão de vida. Poderia ter sido diferente se a Constituinte eleita na Rússia, em novembro de 1917, com a mobilização também de forças democráticas, os mencheviques, não tivesse sido fechada à força em janeiro de 1918 pelos bolcheviques de Lenin. Iniciou-se um longo inverno, encerrado apenas em 1989, quando a demolição do Muro de Berlim marcou a dissolução da União Soviética.

A centralização de tudo no deus Estado pareceu, em alguns momentos, ser melhor escolha que o livre mercado e a democracia. Houve avanços tecnológicos trombeteados pela propaganda soviética. O Ocidente, depois da quebra de 1929, adotou alguns mecanismos de regulação do capitalismo. Mas os soviéticos, ao contrário do que faria a China de Deng Xiaoping, ao usar mecanismos das economias de mercado, não se ajustou, e todo o sistema ruiu, em meio à baixa produtividade, à burocracia, à ineficiência.

A própria realidade atual da Rússia é um atestado da condenação histórica da revolução bolchevique. Basta lembrar que a Rússia que emergiu do comunismo é um Estado também autoritário, com um regime autocrata e seus braços semiclandestinos de inteligência e polícia política, atuando também no exterior, e governada por um Vladimir Putin que faz as vezes de czar. Os russos continuam imperialistas e expansionistas, vide a Crimeia.

Na essência, foi este modelo de Estado hipertrofiado que inspirou constituintes brasileiros da Carta de 1988, um ano antes da queda do Muro. Este é o pano de fundo da falência fiscal brasileira. E a alma autoritária do bolchevismo ainda encanta políticos brasileiros ditos de esquerda. Neste aspecto, o Brasil ainda não rompeu o Século XXI.

 


Luiz Sérgio Henriques: 1917 

Papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos

Os cem anos da revolução bolchevique provavelmente não nos darão – ainda! – a trégua necessária para pôr em perspectiva acontecimentos que estiveram no cerne da “segunda guerra europeia dos 30 anos” e, mais do que isso, lançaram ondas de choque por toda parte – não em último lugar, sobre o vasto mundo então colonial. E talvez não seja para menos: o comunismo histórico, assim como várias outras correntes do século passado, foi intensamente vivido como uma das tais religiões laicas em choque de vida e morte, com sua vontade de assaltar os céus e torná-los uma realidade imediatamente terrena.

Impossível recapitular, mesmo sumariamente, as vicissitudes do “primeiro Estado operário”, surgido entre os escombros da guerra de 1914 e da guerra civil subsequente. Um Estado operário erguido, ainda por cima e contraditoriamente, num país de ampla base rural e costumes autocráticos profundamente enraizados. A dirigir isso que hoje parece uma tarefa irrealizável estiveram o leninismo e, depois, o stalinismo: modalidades militarizadas da política não exatamente iguais, mas, ambas, com um déficit fatal de pensamento democrático ou, caso se queira, com uma visão jacobina de democracia avessa às conquistas do liberalismo, o que daria uma fisionomia despótica à construção do socialismo soviético.

Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da 2.ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, identificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à democracia e a escolha da violência revolucionária como método privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.

O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavelmente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democracias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.

Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemônicas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capacidade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressivas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, entendido como contínua reproposição de confronto com o outro campo, sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso; o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.

Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e conflituosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por um marxista singular, não era só um método de produção revolucionário ou uma nova concepção de fábrica, implantada pelo fordismo, mas uma matriz de comportamentos individuais e um projeto de sociedade mais racional. No entanto, para a maior parte dos marxistas, a falsa percepção de catástrofe iminente impediu a compreensão do modo como o capitalismo se autorreformava e seguia adiante com êxito, especialmente quando o idioma liberal era falado com sotaque universalista. Sirvam como exemplo algumas experiências já dos anos 1930, como o New Deal rooseveltiano, e as do segundo pós-guerra, quando as social-democracias, secundadas em alguns casos por poderosos partidos comunistas, capitanearam as modificações que desaguaram na “era de ouro” do capitalismo reformado.

Difícil fazer um balanço equilibrado da trajetória comunista. No poder, o modelo bolchevique produziu estruturas autoritárias ou, reconheça-se, totalitárias, que afinal se mostraram frágeis e ruíram. Fora do poder, deve-se admitir que aquela trajetória teve luzes às vezes intensas. O próprio Ingrao, cuja capacidade autocrítica destacamos, constatou a ação positiva dos comunistas na organização de uma classe – a dos trabalhadores, mas não só – e na sua integração à sociedade inclusiva, ampliando regras e valores da democracia – rigorosamente, um bem coletivo.

Eric Hobsbawm convidou-nos a uma visão livre de uma das muitas ironias que a História, essa dama caprichosa, acabou por nos reservar: o fato de a revolução russa, que parecia encarnar o mais temido dos fantasmas, na verdade ter salvado duplamente a civilização “adversária”. Na guerra, aniquilando Hitler; na paz, estimulando, até pelo medo de algum novo evento revolucionário, sua reforma e sua capacidade de se expandir além da feição original. Descartado cabalmente o método da violência, o papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos nesta hora difícil.

* Luís Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci