Sérgio Fausto: Presos ao passado, ficaremos sem futuro

A expansão do universo digital não muda apenas as formas de comunicação, o que já não seria pouco. Muda também as formas de produzir e trabalhar. A automação vem de longe, mas entra agora em novo território: máquinas inteligentes conectadas em redes que desconhecem fronteiras físicas. Fábricas altamente produtivas onde não se vê viva alma, veículos sem motoristas e uma crescente gama de serviços desempenhados por softwares que “pensam” e falam não são mais figuras de um mundo futuro. Estão aí, em número crescente. Atividades que se mantiveram ao abrigo da automação tornam-se vulneráveis à substituição do trabalho humano, muitas delas “profissões liberais”, frequentes entre classes médias assentadas.
Foto: Landscape Wallpapers
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A expansão do universo digital não muda apenas as formas de comunicação, o que já não seria pouco. Muda também as formas de produzir e trabalhar. A automação vem de longe, mas entra agora em novo território: máquinas inteligentes conectadas em redes que desconhecem fronteiras físicas. Fábricas altamente produtivas onde não se vê viva alma, veículos sem motoristas e uma crescente gama de serviços desempenhados por softwares que “pensam” e falam não são mais figuras de um mundo futuro. Estão aí, em número crescente. Atividades que se mantiveram ao abrigo da automação tornam-se vulneráveis à substituição do trabalho humano, muitas delas “profissões liberais”, frequentes entre classes médias assentadas.

Os pesquisadores ainda tateiam o terreno. As estimativas a respeito da proporção de ocupações vulneráveis à automação variam. Carl Benedickt Frey e Michael Osborne, em The Future of Employment: How susceptible jobs are to computarisation, publicado em 2013, dizem que 47% dos empregos nos Estados Unidos têm alto risco de ser suprimidos pela automação. Recente trabalho publicado pela OCDE (The Future of Work) afirma que 14% dos empregos nos países-membro são altamente suscetíveis à substituição por máquinas e 32%, à significativa alteração. Também há divergência sobre o quanto a nova onda de “destruição criativa” produzirá de destruição ou criação líquida de oportunidades de trabalho. Tampouco há concordância sobre os ganhos de produtividade resultantes da introdução das novas tecnologias. Sinais claros de que estamos em território que apenas começa a ser conhecido. Num ponto, pelo menos, há convergência: as novas tecnologias favorecem os trabalhadores com mais alto nível de instrução.

Na mais recente edição do World Economic Outlook, abril de 2018, o FMI calcula que a vulnerabilidade à automação de um trabalhador com diploma universitário nos países avançados é duas vezes menor do que a dos que não o têm. A mesma publicação mostra que a automação já é um fator importante da queda da taxa de participação dos homens na força de trabalho nos países desenvolvidos (alguma surpresa que Trump tenha recebido significativamente mais votos dos homens que das mulheres?).

Em suma, a nova onda de progresso técnico empurra as sociedades na direção de maior desigualdade e exclusão. Se isso é um problema para os países desenvolvidos, o que dizer para o Brasil, um dos países mais desiguais do planeta, onde 43% da população economicamente ativa ainda não têm o ensino médio completo e 27% sequer o ensino fundamental completo? Isso a despeito de a escolarização média da população ter aumentado de 3,8 anos para 7,4 anos nos últimos trinta anos.

A redução da desigualdade e da exclusão social nos países desenvolvidos ao longo do século XX foi produto da ação política e sindical, de duas guerras mundiais devastadoras e do fantasma da “revolução comunista”, corporificado, depois de 1917, na União Soviética e sua influência sobre partidos comunistas no Ocidente. Ao contrário do que Marx havia previsto ao final do século XIX, o desenvolvimento do capitalismo não resultou na pauperização da grande massa dos trabalhadores e na concentração da propriedade e da renda em poucas mãos burguesas. Ao invés da revolução, os partidos socialdemocratas europeus abraçaram programas de reformas do capitalismo legitimados pelo voto. A solidariedade social forjada na guerra e o medo da convulsão social espontânea ou dirigida pelos comunistas moveu os “partidos burgueses” em direção ao grande acordo social representado pelo Welfare State.

O que se vislumbra do horizonte do século XXI é bem distinto. A China não exporta revolução (nem está interessada em construir um capitalismo democrático). Quer vencer a competição capitalista global e por isso está engajada na corrida, contra os Estados Unidos, pelo domínio das tecnologias de ponta. Dessa corrida dificilmente resultará uma guerra entre as grandes potências, felizmente. E, se resultar, será travada por supermáquinas comandadas a distância sem o envolvimento de grandes contingentes populacionais. Pode haver uma hecatombe nuclear, mas aí é outra história. Não estão no horizonte nem a solidariedade social provocada pela tragédia da guerra nem o receio da revolução a favorecer por vias tortas pactos sociais produtores de maior inclusão social e melhor distribuição da renda.

Onde ancorar a esperança de um mundo melhor, que o progresso técnico ao mesmo tempo viabiliza e nega à parte importante das sociedades? Na democracia. Com todos os seus defeitos, cada vez mais aparentes, e portanto corrigíveis, é o único regime que obriga quem tem poder a levar em consideração os perdedores e lhes dá meios não violentos para se fazer ouvir.

O maior mérito da socialdemocracia europeia no século XX foi compreender que a democracia não era um meio para tomar o Estado de assalto e sim um projeto político civilizatório que permite reduzir assimetrias de poder e ampliar os níveis de bem-estar geral viabilizados pelo desenvolvimento das forças produtivas. A socialdemocracia rompeu com o marxismo ao optar pelo reforma do capitalismo, mas dele preservou a convicção de que o desenvolvimento tecnológico não apenas não pode como não deve ser bloqueado.

O grande desafio contemporâneo é colocar as novas tecnologias a serviço de uma agenda de aumento geral dos níveis de bem-estar social e da transição para uma economia movida pelo uso sustentável dos recursos naturais. A universalização de programas de renda mínima para proteger os trabalhadores dos efeitos do desemprego estrutural, sem estigmatizá-los, é uma resposta provavelmente necessária, mas insuficiente. Trabalho não é apenas fonte de renda, é fonte de inserção social, autoestima e desenvolvimento pessoal.

O mais importante direito social frente às transformações tecnológicas em curso é o direito à aquisição das habilidades necessárias ao desempenho de funções socialmente valorizadas. Educação e trabalho deixaram de ser duas fases sequenciais da vida. O trabalhador precisa estar preparado para navegar o mar revolto das mudanças tecnológicas. Isso requer aprendizado constante. Mais do que habilidades técnicas específicas, são necessárias habilidades gerais tanto cognitivas quanto sócio-emocionais, cujo desenvolvimento, ao longo da vida, será tanto maior quanto mais cedo forem trabalhadas.

Uma sociedade do conhecimento para todos, desde a primeira infância, que valorize as habilidades técnicas de programação, operação e manutenção de sistemas inteligentes e análise dos dados gerados por eles, mas também as habilidades voltadas aos cuidados do corpo e da mente, ao entretenimento, à fruição artística, à compreensão dos fenômenos sociais e da natureza, e da interação entre ambos.

Bela utopia, da qual o Brasil precisa para se mover e construir seu futuro. Onde buscar inspiração, ou melhor, ideias, experiências, tentativas? A esquerda estatista e retrógrada e os liberais crentes do livre mercado e do Estado mínimo (não são todos) decretaram a morte da socialdemocracia. De fato, ela não goza de boa saúde eleitoral na Europa. Não significa que o pensamento socialdemocrata nos países avançados tenha definhado e que a reinvenção do Welfare State seja uma batalha perdida.

Bons sistemas públicos de saúde e educação, creches e escolas de ensino infantil de qualidade, adequação dos currículos do ensino básico com vistas a facilitar a transição escola-trabalho, reformas dos sistemas previdenciários para ajustá-los a mudanças demográficas, flexibilização das legislações trabalhistas combinadas com políticas ativas de emprego (não apenas proteções temporárias contra o desemprego, mas treinamento e capacitação permanente dos trabalhadores, com participação de empresas, governos, sociedade civil e sindicatos), serviços de apoio ao empreendedorismo, incentivo à economia de baixo carbono, etc.

O fato de que essa agenda combine elementos socialdemocratas, liberais e ambientalistas não é mera coincidência, e mostra que o debate público no Brasil está preso ao passado. Corremos o risco de ficar sem futuro.

* Sérgio Fausto é superintendente Executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University. Membro do GACINT-USP.

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