RPD || Lilia Lustosa: Leni Riefenstahl, genial ou monstro?

Foto: Reprodução
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Obra de Leni Riefenstahl, uma das mais controversas diretoras da história, é apropriada para refletirmos sobre até que ponto a excelência da arte (ou do esporte) pode se sobrepor aos direitos humanos fundamentais, avalia Lilia Lustosa, em seu artigo

Um dos registros cinematográficos esportivos de maior importância na história do cinema foi escrito, realizado e montado pela alemã Leni Riefenstahl, entre 1936 e 1938, época em que o Partido Nazista comandava a Alemanha. Trata-se de Olympia, documentário que registrou para a prosperidade os Jogos Olímpicos de Berlim, realizados em 1936, no neoclássico Estádio Olympia, construído especificamente para o evento. Um agigantado teatro greco-romano capaz de abrigar um público de até 100 mil espectadores. 

Encomendado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), mas financiado pelo Ministério da Propaganda de Goebbels e pelo próprio Partido Nazista de Hitler, que sonhava com um filme-vitrine para o regime nacional-socialista, Olympia foi e é, até hoje, um filme controverso, que entrou para a história como um dos melhores documentários de todos os tempos. Isso, porque o registro de Leni revolucionou a maneira de filmar práticas desportivas, seu modelo é usado e repetido, atualmente, mundo afora. Múltiplas câmeras para os saltos ornamentais (incluindo subaquáticas), valas cavadas na terra para colocar os olhos dos espectadores na altura das pernas dos competidores, câmera lenta para registrar com precisão cada parte do movimento, enquadramentos ousados e originais que mostraram, como nunca, os maiores atletas, daquele 1936, em ação.  

A diretora alemã comandou, com firmeza e talento, uma equipe de 23 cinegrafistas (todos homens), que tinham ordem para filmar todas as 129 modalidades presentes nos jogos, evitando, assim, perder qualquer possível quebra de recorde. Como resultado, 400 quilômetros de negativos e cerca de 250 horas de filme rodado, o que lhe rendeu dois anos de trabalho de edição e um documentário de quase 4 horas de duração, dividido em duas partes, para facilitar a exibição. Nem todas as imagens que o compõem foram, no entanto, registradas em tempo real. Leni, que tinha o culto à beleza como seu leitmotif, preocupava-se tanto com a estética de sua obra que regravava várias cenas posteriormente aos fatos, convocando os atletas para “atuarem” em seu documentário.  

Perfeccionista por natureza, Leni foi laureada pelo COI, em 1948, com uma medalha de ouro por seu Olympia. No entanto, a origem dos recursos utilizados e os propósitos de seus financiadores foram e continuam sendo questionados e condenados por diversos críticos de cinema e espectadores, em todo o mundo. Suas imagens ao lado do Führer e a própria admiração que ele nutria por ela nos levam a questionar até que ponto Leni compactuava com os ideais nazistas. Em seus depoimentos, porém, a cineasta sempre declarou estar ali apenas exercendo seu ofício, jamais tendo se filiado ao Partido de Hitler, afirmando, ainda, desconhecer as atrocidades impostas pelo regime. A seu favor, usava também o argumento de ter filmado a reação insatisfeita do Führer à vitória do afro-americano, Jesse Owens, e de não ter cortado nem essa nem outras cenas que desmistificavam a “superioridade da raça ariana”. Mas seria mesmo possível que ela ignorasse o que estava acontecendo em seu país? Ou será que simplesmente escolhia não enxergar a realidade, colocando sua arte em primeiro lugar, acima das vidas de tantas pessoas inocentes? 

Leni pode ter sido absolvida pelos diversos tribunais em que foi julgada, no entanto, a história parece jamais tê-la liberado. Sua carreira de cineasta encontrou ali, praticamente, um ponto final. Após deixar o campo de concentração francês, onde ficou por 4 anos, a cineasta nunca mais conseguiu financiamento para suas produções, partindo rumo ao continente africano, onde passou a fotografar a tribo Nuba, no Sudão.

Publicou dois livros que foram, por sua vez, massacrados por antropólogos, que a acusavam de reproduzir uma imagem estereotipada dos núbios, e pela crítica especializada, que insistia que sua estética permanecia “nazista”. Já no fim da vida, buscando afastar-se, ainda mais, dos olhos da civilização, a cineasta decidiu filmar embaixo d’água. Aprendeu a mergulhar aos 70 anos e realizou seu último filme longe de qualquer traço de humanidade. Impressões Subaquáticas (2002) foi lançado no dia em que completava 100 anos de vida. Naquela imensidão azul, Leni parece ter encontrado a paz. Será?  

Em tempos olímpicos, a história de Leni Riefenstahl me parece bastante apropriada para refletirmos sobre, até que ponto, a excelência da arte (ou do esporte) pode se sobrepor aos direitos humanos fundamentais. Seria possível (e justo) separar o artista (ou o atleta) do ser humano? A obra, da ideologia de quem o faz? A estética, da ética? 


Saiba mais sobre o autor

*Lilia Lustosa é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne e doutoranda nesta mesma instituição de ensino superior.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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