RPD || João Cezar de Castro Rocha: A mentalidade bolsonarista

A ascensão da direita, articulada desde meados da década de 1980, primeiramente na caserna e depois no movimento civil, preparou a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018, avalia João Cezar Rocha em seu artigo.
Foto: Allan Santos/PR
Foto: Allan Santos/PR

A ascensão da direita, articulada desde meados da década de 1980, primeiramente na caserna e depois no movimento civil, preparou a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018, avalia João Cezar Rocha em seu artigo

Almejo, neste artigo, caracterizar brevemente a mentalidade bolsonarista por meio da guerra cultural, isto é, a ponta de lança de um projeto autoritário, com base no resgate insensato da Doutrina de Segurança Nacional, no alinhamento cego à matriz narrativa conspiratória do Orvil e na adesão náufraga ao sistema de crenças Olavo de Carvalho.

De fato, a ascensão da direita é anterior à emergência do bolsonarismo, o que favoreceu sua possibilidade de êxito. Em boa parte dos estudos acerca do fenômeno, o efeito é tomado como causa. O bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita, mas, pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias Bolsonaro no segundo turno, em 2018.

Hora, portanto, de analisar esse fenômeno sem preconceitos, destacando a força incomum da presença de um escritor, metamorfoseado em ativista político no reino encantado do universo digital. Refiro-me a Olavo de Carvalho, artífice de uma retórica do ódio que ameaça levar o país a um esgarçamento inédito.

Debruçar-se sobre o fenômeno é fundamental. De imediato, menciono quatro fatores, cuja inter-relação esclarece o caráter orgânico da ascensão da direita nas últimas duas décadas. A redução desse movimento à vocação golpista, atribuída ao impeachment de 2016, tem paralisado a esquerda, que, assim, se revela incapaz de entender a importância de uma juventude de direita, força decisiva na política brasileira dos últimos anos. Pelo menos desde 2002 – muito antes, portanto, de 2013.

A simples enumeração dos elementos ilumina a incompreensão ainda hoje predominante:

1) a ação de Olavo de Carvalho na década de 1990, ampliando o repertório bibliográfico e fortalecendo a musculatura da direita por meio de polêmicas estratégicas contra ícones da esquerda;

2) uma fissura geracional que escapou aos cálculos da esquerda, em geral, e do Partido dos Trabalhadores, em particular. As quatro eleições presidenciais, legitimamente vencidas pelo PT, possibilitaram a associação automática entre establishment, sistema político e campo da esquerda; daí, pela primeira vez na história republicana brasileira, foi possível considerar-se de oposição por ser de direita;

3) o conflito geracional foi agravado pela difusão da tecnologia digital e sua apropriação criativa e irreverente por uma inédita juventude de direita, cuja presença nas redes sociais materializou-se nas multitudinárias manifestações a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff;

4) por fim, a partir de 2013, no princípio timidamente, porém de forma ostensiva já em 2015, a direita começou a disputar as ruas com o campo da esquerda, um desdobramento surpreendente para qualquer analista, pois as ruas pareciam propriedade simbólica dos que estavam à margem do poder, ou seja, antes do triunfo eleitoral do PT, a própria esquerda. Os 14 anos de permanência do PT no Governo Federal alteraram de maneira profunda a ecologia da política brasileira, sem que tal abalo fosse imediatamente perceptível.

Iniciadas em março de 2015 e ampliadas em abril, agosto e dezembro do mesmo ano, as manifestações de rua da direita explodiram em março de 2016, revelando ao país uma organização sólida de grupos conservadores, com destaque para movimentos articulados nas redes sociais, que, com grande desenvoltura, tomaram os céus de assalto, não para defender a revolução, porém, todo o oposto, para derrubar o único partido de esquerda que chegou à Presidência do Brasil.

Em relação aos quatro fatores que terminei de elencar, o último é o mais visível e muitas vezes o único considerado na ascensão da direita. Por isso, ela é reduzida ao ânimo golpista. E esses dois elementos se encontram: a juventude de direita, ativíssima nas redes sociais, formou sua visão de mundo primariamente por meio do sistema de crenças Olavo de Carvalho, apreendido por meio das mesmas redes sociais — e, aqui, a redundância é o sal da terra.

Para dizê-lo de forma direta: desde meados dos anos 1980, como uma reação à distensão implementada pelo general Ernesto Geisel, na década anterior (1974-1979), e sobretudo à redemocratização, conduzida aos trancos e barrancos pelo general João Batista Figueiredo (1979-1985), um movimento subterrâneo de direita foi articulado, inicialmente na caserna e, posteriormente, na sociedade civil.

O Orvil é o modelo narrativo adotado pelo bolsonarismo. Trata-se de documento-chave que oferece o relato de uma permanente “ameaça comunista”, fortalecendo o discurso da atual extrema-direita no Brasil, pois se trata do livro de cabeceira da família Bolsonaro. Ele foi um livro preparado pelo Exército entre 1986 e 1989, cujo objetivo era denunciar a “ameaça comunista”. A ascensão da direita, um movimento de duas décadas, explodiu em 2015 e 2016, porém sua intensidade foi preparada lentamente por meio da criação de uma linguagem própria, saturada de clichês anticomunistas com ressonâncias anacrônicas da Guerra Fria, ademais do recurso a uma moldura narrativa com base nas tentativas de tomada do poder por parte da esquerda brasileira, “naturalmente” em acordo com o movimento comunista internacional, numa vasta trama de proporções apocalípticas. O próprio subtítulo de Orvil, tentativas de tomada do poder, revela o sentido das teorias conspiratórias que presidem a mentalidade bolsonarista, autêntica matriz de suas obsessões. Por fim, não se negligencie o milagre às avessas da proliferação de teorias conspiratórias involuntariamente dadaístas.

Nas páginas finais do Orvil, o inimigo comum das próximas décadas é identificado: “Entende-se que o ‘partido de Lula’ é o principal resultado da luta da classe operária”.[1] Decifre-se a esfinge: sem um alvo determinado, como manter grupos diversos reunidos num mesmo projeto? Nesses casos, a diferença é subsumida na miragem de um adversário tentacular, convertido em inimigo útil, nada inocente, que assegura a coesão do movimento.

A mentalidade bolsonarista pode então completar-se: trata-se de reduzir o outro ao mero papel de adversário, inimigo a ser eliminado. Por isso, muito mais importante do que somente derrotar o Messias Bolsonaro é superar o próprio bolsonarismo.

*João Cezar de Castro Rocha é professor Titular de Literatura Comparada da UERJ e ensaísta.

Privacy Preference Center