RPD || Hernan Chaimovich: A Bandeira Mapuche e as manifestações no Chile

Bandeira do povo indígena Mapuche foi um símbolo que fortaleceu ainda mais o registro da convulsão social que tomou o Chile desde o ano passado e já resulta na aprovação de processo constituinte em novembro de 2020.
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Bandeira do povo indígena Mapuche foi um símbolo que fortaleceu ainda mais o registro da convulsão social que tomou o Chile desde o ano passado e já resulta na aprovação de processo constituinte em novembro de 2020

Uma parte da população que ainda se interessa, no Brasil da pandemia e do Bolsonaro, pelo que sucede em volta de nosso país, está sendo pouco esclarecida pelo fenômeno social ímpar em curso no Chile. Não é que a situação do Chile seja fácil de entender, embora os meios de comunicação teimem em simplificar, daí se equivocarem. Como exemplo, menciono o fato de que o consistente uso da bandeira Mapuche como símbolo nas manifestações pouco tem a ver com a batalha contra o capitalismo agressivo que, sustentado pela Constituição de 1980, afeta a grande maioria da população chilena.

Em uma das manifestações mais populosas que, de certa forma, mostraram o peso do comoção social chilena no ano passado, mais de um milhão de cidadãos clamando por mudanças profundas no sistema institucional, em uma praça central de Santiago. A foto abaixo mostra que, além das bandeiras chilenas, outra flâmula se destaca.[1]

Trata-se da bandeira do povo Mapuche, chamada de Wenüfoye (canelo del cielo), um dos símbolos mais usados pelos manifestantes no Chile. Com início em outubro de 2019, os protestos de parte significativa da sociedade chilena já resultam na aprovação, por ampla maioria, de processo constituinte em novembro de 2020.

Antes de analisar como e por que este símbolo passa a ser protagonista em um movimento social muito mais amplo, é necessário descrever sinteticamente sua origem e significado. No peso simbólico desta flâmula, consta o reconhecimento da existência do povo Mapuche, que, apesar de perseguido, conseguiu resistir ao aparato estatal que, desde a conquista espanhola no século XVI, tentou persistentemente eliminá-lo, ou assimilá-lo. Wenüfoye é, pois, um símbolo de rebeldia, um grito que não aceita a institucionalidade existente, um estandarte de luta.

O guerreiro-poeta espanhol do século XVI Alonzo de Ercilla y Zúñiga (1533 – 1594), depois de viajar ao Chile, onde participou na guerra contra os indígenas araucanos (denominados hoje Mapuches), escreveu um poema épico, chamado La Araucana.[2] Nele, o autor rompe com uma tradição dos conquistadores ao enaltecer a coragem e a capacidade militar dos adversários. Ercilla confere aos Mapuches a dignidade e a humanidade que os conquistadores, e a religião que os acompanhava, lhes negavam. [3] Segundo Ercilla, o conceito de liberdade, e não a pátria, seria para os Mapuches um bem supremo, e a afronta a sua liberdade e sentido de justiça os levaria à guerra contra os espanhóis. Os conquistadores espanhóis nunca conseguiram dominar o território Mapuche, e, em um fato inédito, assinam o tratado de paz “El Pacto de Quilin” em 1641. Nesse tratado, os espanhóis reconhecem a independência Mapuche e o rio Biobío como fronteira natural entre ambos os povos. Apesar deste tratado, e durante toda a colônia, os embates entre espanhóis e Mapuches são frequentes, e nunca os indígenas abandonam sua luta.

Nos primeiros anos depois da independência em 1810, os republicanos chilenos se voltam para o passado heroico dos Mapuches, chamados de “índios chilenos”, para demonstrar simbolicamente que eles seriam a semente de um povo valente amante da liberdade, justamente o povo chileno.

Esta visão durou pouco na República independente, pois o poder, formado por criollos (a denominação dos estratos dominantes na época) compreendia somente a burguesia mercantil, mineradora ou terratenente. Este conjunto dominante visava construir e expandir um estado-nação cujas fronteiras deviam se estender até o sul do Chile, território ao sul do rio Biobío, terra dos Mapuches. Muito cedo esta imagem do “índio valiente” desaparece do imaginário nacional para considerar o Mapuche um povo bárbaro, miserável, que se podia pilhar. Esta visão, de uma ou de outra forma, persiste até hoje, especialmente porque a resistência contra as consequências das políticas do liberalismo selvagem na região deu origem ao movimento Mapuche revolucionário, nas décadas pós-Pinochet.

Wenüfoye, símbolo complexo que representa os Mapuches como povo, nasce em outubro de 1992. A própria denominação Mapuche já pressupõe algo a respeito da relação com o território, pois “mapu” se traduz como gente, e “che”, como terra. Grupos representantes da diversidade de territórios ocupados pelos Mapuches no sul do continente americano (lafkenche, nagche, wenteche, nagche do Chile e inclusive puel mapu da Argentina) se reuniram e incorporaram nesta bandeira as propostas provenientes das distintas etnias Mapuches.

A bandeira é altamente simbólica, e o artista Jorge Weke, indígena que participou na reunião de criação de Wenüfoye, em entrevista dada em 2003, assim os descreve:

«El color negro y blanco representan el equilibrio o la dualidad entre el día y la noche, la lluvia y el sol, lo tangible y lo intangible, etc. El azul representa la pureza del universo; el verde nuestra mapu, el Wallmapuche o territorio de asentamiento de nuestra nación. Y el rojo la fuerza, el poder, la sangre derramada por nuestros ancestros. Al medio el kultrung y todos sus significados ya conocidos y en el extremo inferior y superior la representación de los kon«.

Em outras fontes, se percebe que “Cultrún (kultrung ou kultrug), o tambor Mapuche; em sua superfície plana, que representa a superfície da Terra, o desenho circular da cosmovisão Mapuche é traçado: os quatro pontos cardeais e entre eles o sol, a lua e as estrelas; símbolo do conhecimento do mundo. Guemil (ngümin), cruz escalonada ou estrela – semelhante à “cruz andina” ou chacana – ou losango com borda em ziguezague: representa a arte da manufatura, da ciência e do conhecimento; escrevendo prompt de comando.[4] “

O que a sociedade chilena vê hoje na Wenüfoye? Talvez mais democracia e resistência. Mas, também, um símbolo de libertação, de autorreconhecimento, de acreditar na unidade na diversidade, de respeitar e valorizar as contribuições que cada segmento pode aportar na construção de uma sociedade mais justa. É palpável que um novo contrato social é efetivamente necessário. Da mesma forma, é notável que a sociedade dita “de baixo” é mais multicultural do que a classe dominante, ou “de cima”. É por isso que Wenüfoye se tornou o principal emblema do gérmen de uma nova sociedade que nasceu, e da luta pela democratização da cena política do país.

*Hernan Chaimovich é brasileiro, nascido no Chile, Professor Emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.

[1] Foto de Suzana Hidalgo tomada na manifestação da Praça Baquedano, Santiago, Chile (Plaza Dignidad) em 27/10/2019.

[2] Disponível na Biblioteca Digital Hispánica [http://bdh.bne.es].

[3] Leandro José Nunes (2010) Uma análise da Obra “La Araucana e a sua Crítica ao Colonialismo”, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Uberlândia.

[4] Esta Nota se inspira em artigo do Fernando Paraican https://www.ciperchile.cl/2019/11/04/la-bandera-mapuche-y-la-batalla-por-los-simbolos.

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