Revista Política Democrática Online || Lilia Lustosa: Por uma praia sem filtros

Decisão do presidente Jair Bolsonaro, determinando que todas as produções candidatas a receber financiamentos do governo deverão passar doravante por um “filtro”, mostra que o mar cinematográfico brasileiro não está pra peixe
Foto: Agência Brasil
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Decisão do presidente Jair Bolsonaro, determinando que todas as produções candidatas a receber financiamentos do governo deverão passar doravante por um “filtro”, mostra que o mar cinematográfico brasileiro não está pra peixe

Nem a onda de prêmios importantes recebidos por filmes brasileiros neste ano em Cannes serviu para acalmar a tempestade que se vinha formando no meio cinematográfico de nosso país. Nem Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que levou o prêmio máximo do júri, nem A vida invisível de Eurídice Gusmão (2019), de Karim Aïnouz, ganhador do prêmio Un Certain Regard, foram capazes de diminuir a vontade do presidente Jair Bolsonaro de controlar o conteúdo do que é financiado pelos cofres públicos.

Definitivamente, o mar cinematográfico brasileiro não está pra peixes, muito menos pra surfistas! Que diga Marcus Baldini, diretor de Bruna Surfistinha (2011), filme que virou símbolo do que não pode mais ser financiado pelo governo brasileiro. Bruna Surfistinha, baseado em O Doce Veneno do Escorpião: o diário de uma garota de programa, e que tem como um dos autores de seu argumento o próprio Karim Aïnouz, conta a história real de Raquel Pacheco, uma menina de classe média que foge de casa aos 17 anos para tornar-se prostituta. Estrelado por Deborah Secco em 2011, o filme foi um sucesso de bilheteria, levando 2,2 milhões de espectadores às salas de cinema do país. Além disso, gerou 500 empregos diretos e indiretos, rendendo R$ 20 milhões em bilheterias e R$ 10 milhões em impostos para o Estado brasileiro. O montante investido pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) foi de R$ 557.963, com retorno de 54,18% desse valor (fonte: FSA).

Apesar do retorno financeiro relativamente alto dessa obra (para os padrões nacionais), segundo o presidente Bolsonaro, “em respeito às famílias brasileiras”, filmes como esse não mais serão financiados pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE), já que, para ele, dinheiro público não pode ser usado para “filme pornográfico”. Aliás, o presidente determinou que todas as produções candidatas a receber financiamentos do governo deverão passar doravante por um “filtro”. O recente caso da suspensão do edital de chamamento a projetos de séries para a TV Pública comprova não se tratar apenas de uma fala retórica de nosso presidente. Com linha de crédito do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e participação da ANCINE e da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o edital tinha entre as categorias de investimento uma dedicada à diversidade, com temas LGBT.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

 

Para Onyx Lorenzoni, Ministro da Casa Civil e hoje responsável pelo Conselho Superior de Cinema (CSC), o “filtro” deve ser principalmente financeiro. Segundo ele, a atual política pública de incentivo ao cinema não tem medido os resultados obtidos, gerando obras sem relevância para a economia do país. Até que aí ele pode ter um ponto! É preciso de fato preparar de uma vez por todas o terreno para que as produtoras brasileiras se tornem independentes, que sejam capazes de se retroalimentar, de fazer girar a economia, sem interferência do Estado. Mas para isso é preciso, antes de mais nada, que haja público para o filme brasileiro, o que implica redução do preço das entradas para produções nacionais e, sobretudo, aprimoramento da distribuição dessas obras, que, até hoje, têm de se espremer nas brechas das programações dos Multiplex, dominados pelos filmes norte-americanos. Questão antiga, tão batalhada pelos cinemanovistas nos anos 60, levada a sério pela Embrafilme nos anos 70/80, interrompida nos anos 90 pelo Governo Collor, e jamais resolvida por governo algum.

Nossa indústria cinematográfica, apesar de seus tantos anos de existência, ainda engatinha, necessitando até hoje de políticas de reserva de mercado e de incentivo financeiro do Estado. Etapa que já poderia ter sido vencida, houvéssemos nós nos planejado melhor, nos organizado melhor e, sobretudo, acreditado no potencial do cinema brasileiro anos atrás.

Depois de o Cinema Novo ter fracassado no quesito diálogo com o público (apesar de ser o responsável pelo primeiro passo rumo à descolonização do nosso cinema), os filmes dos anos 70/80 conseguiram repetir a façanha do período da Chanchada, atraindo a atenção e simpatia dos brasileiros. Na época da Embrafilme (1969-1990), tivemos o período de melhor desempenho da história do cinema nacional, a produção brasileira chegando a ocupar a faixa de 30% do mercado até 1984. Tínhamos linhas de financiamento e reserva de mercado para produções brasileiras (chegando a 140 dias de exibição obrigatória de filmes nacionais), e, consequentemente, público nas salas de cinema. Esse poderia ter sido o início da consolidação da nossa indústria cinematográfica, para estarmos agora com uma indústria robusta, independente, diversificada. Mas não soubemos tirar proveito dessa maré positiva. Faltaram vontade política, habilidade financeira e competência empresarial.

Interessante lembrar que essa fase mais produtiva da nossa indústria cinematográfica foi justamente o período da chamada Pornochanchada, um subgênero da Chanchada, só que mais picante! Filmes que exaltavam a sensualidade e a sexualidade brasileiras, bem-humorados, por vezes debochados, mas que nem por isso deixavam de retratar a realidade de nossa sociedade. Filmes que tinham o aval e o financiamento do governo brasileiro, em pleno período de ditadura militar, e que enchiam as salas de cinema do país. Filmes que certamente não passariam pelo “filtro Bolsonaro”. Talvez pelo “filtro Lorenzoni” (será?), já que seus números eram excelentes, sendo inegável seu retorno financeiro para o Brasil. Dizem as más línguas que essa flexibilidade da censura com relação à “moral” dos filmes em plena ditadura acontecia justamente para distrair o povo de coisas realmente graves, que eram, portanto, omitidas por nossos governos. Pode ser. Mas foi a melhor fase do cinema brasileiro em termos de produção.

E o que dizer do que está acontecendo hoje no Brasil?

Numa época de presumível democracia como a que vivemos, parece que estamos presenciando uma censura ainda mais pesada do que aquela dos anos de chumbo. Pelo menos no que diz respeito às questões “morais” presentes nos filmes. Mas quem garante que não virão em seguida os “filtros” de conteúdo político, ideológico, religioso? O tal “filtro” de resultado financeiro de Lorenzoni parece ser por enquanto o menos relevante.

Foto: Reprodução

 

Diante de tal quadro, nos questionamos se filmes como Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto, uma das maiores bilheterias de todos os tempos (10,7 milhões de espectadores), mas que mostrava uma jovem e sensual Sonia Braga na cama com dois homens, passariam pelo “filtro Bolsonaro”. E que dizer de A Dama do Lotação (1978), de Neville d’Almeida, um dos maiores clássicos da Pornochanchada? Filme que levou 6,5 milhões de espectadores às salas de cinema, estrelado pela mesmíssima Sonia, e que conta a história de uma mulher recém-casada que, violentada pelo marido na noite de núpcias, decide adotar o prazer da traição como vingança, entregando-se a desconhecidos com quem esbarra no ônibus. Não, esse certamente não passaria pelo “filtro”! E Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues (3,1 milhões de espectadores), que mostra uma escrava usando seus atributos femininos para conseguir sua alforria? E Eu te amo(1981), de Arnaldo Jabor (3,4 milhões de espectadores), que aborda temas como prostituição e homossexualidade? E Toda Nudez será castigada (1973), do mesmo Jabor (1,7 milhões de espectadores)? Certamente, não. Nem os bons números parecem ser suficientes para abrir os buracos do “filtro” da “moral e dos bons costumes” impostos pelo presidente.

Em um momento em que vemos o cinema brasileiro retomar o prestígio internacional – o que gera automaticamente, aumento de prestígio nacional (colonizados que somos!) – e que deveríamos estar aproveitando o momentum para (re)conquistar o público brasileiro e dar continuidade à Retomada iniciada em meados dos anos 1990, vemos tudo desmoronar outra vez! As ameaças de extinção da ANCINE, caso os tais “filtros” não sejam implementados, lembram-nos o fim drástico da Embrafilme e o consequente quase-fim do cinema brasileiro. Encontramo-nos, então, diante de uma espécie de “(não) vale a pena ver de novo”, em que tememos uma vez mais pela sobrevivência do cinema brasileiro.

Em época de tsunamis, os surfistas têm duas opções: ou se recolhem, aguardando o retorno da calmaria para poder voltar a pegar suas ondas; ou, criam coragem, mergulham de cabeça e tentam furar a onda gigante! Minha aposta é nos corajosos!

 

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