Uma concepção de Estado – minimalista, mas, não de todo, seguramente, inexata – está em considerá-lo como síndico do condomínio social. E, daí em diante, obrigado a agir segundo a convenção elaborada em conjunto pelos próprios condôminos.
E vai por aí na vida das nações. Nós, cidadãos, elegemos um Parlamento que se encarrega de elaborar uma Constituição (ou seja, a convenção do condomínio), além de uma série de códigos destina- dos a reger nosso pacto social, além de uma pletora de leis ordiná- rias capazes de criar, regulamentar, ampliar direitos e deveres.
Com isto posto – e especialmente nos dias de agora –, vamo- nos deparar com uma sequência de anomalias que nos dificultam até mesmo definir qual a mais grave. Antes de mais nada, porque esses nossos representantes, por nós eleitos, vieram a subverter todo o conceito básico da ética, que é o bem, substituindo-o pelo bom. E isso, filosoficamente, se define como cinismo.
E nem precisamos esticar muito o assunto. Dia após dia, os jornais nos mostram o que ocorre nas prefeituras mais distantes, assim como nas cidades mais modernas nos estados mais ricos e, mesmo, naqueles onde as desigualdades sociais se fazem mais evidentes.
Vamos mais adiante. O chefe do Poder Executivo, ou seja, o maior responsável por que sejam as leis cumpridas, veio a ser acusado, entre outros crimes, o de chefiar uma organização crimi- nosa para, com ela, assaltar os cofres públicos.
Não foi uma acusação formulada por um desafeto político. Nada disso. A Polícia Federal, diante o destaque daquela evidência, colocou seus profissionais altamente especializados a investigar a matéria. O resultado dessas investigações foi encaminhado, como de praxe, por tratar-se de quem se tratava, à Procuradoria Geral da República. E esta entendeu haver ali material suficiente para denunciar Temer como real dirigente de uma facção criminosa.
E, aí. Como se comportaram nossos parlamentares? Simplesmente impediram que a ação judicial prosperasse e se chegasse ao fim do julgamento. Com isso, diferente do que se divulgou amplamente, os senhores deputados não decidiram se Temer é ou não inocente, mas simplesmente permitiram que, não sendo julgado, prosseguisse como alvo de uma denúncia formal.
E é o que ocorre: a Presidência da República segue ocupada por um réu de um crime ainda não exatamente definido, mas que, seja como for, fragiliza em muito o que deveria ser a respeitável figura do chefe de nosso Poder Executivo.
E é o exato instante em que somos afrontados precisamente por aqueles legisladores que nós mesmos escolhemos e que, em vez de levar adiante a solução do problema, buscam, ao contrário, todo tipo de blindagem capaz de impedir ou, pelo menos, de procrastinar punições. Tudo, em suma, para comprovar seu comprometimento com essa mazorca.
Mas é a outro ponto que queremos chegar. Porque, em momentos assim, surgem vozes aparentemente descompromissadas, a anunciar, na forma usual, que tudo é assim mesmo, porque afinal a corrupção, no Brasil, já nos chegou com a frota de Cabral, sugerindo, com isso, mais a conformação que a revolta.
Só que não foi simples assim. Que houve e segue havendo corruptos e corruptores não nos deixa qualquer dúvida, mas esquecem de dizer que também sempre houve quem procurou agir em sentido contrário,
É o que queremos mostrar que houve.
Nosso Brasil foi descoberto no século 16. Pois, no século 17, o padre Antônio Vieira, com sua oratória inflamada e magnífica, já subia ao púlpito, na catedral maranhense, para deblaterar contra os desmandos das autoridades encasteladas no poder colonial. Segue seus passos, no 18, o incansável Gregório Matos, já com o apelido de Boca-do-Inferno. E, a seguir Castro Alves valeu-se de sua poesia condoreira para condenar o escravagismo e os desmandos dos escravocratas.
E óbvio que citamos os que mais se destacaram, mas, segura- mente, não foram os únicos. Assim, e para não mais nos alongar, saltemos aos dias de agora.
No ainda popular governo Lula, o escândalo do Mensalão agrediu a face democrática e republicana da nação. Mas o castigo, ainda que incompleto, veio a galope, instante em que ganha realce a figura do ministro Joaquim Barbosa, que, nos estritos termos da lei, puniu seus maiores responsáveis, todos de dentro das entranhas do poder.
E o quadro se agrava com a ação denodada, entre outros, do juiz Sérgio Moro, com decisões que já puniram altos dignitários da República e alguns dos maiores empresários do país.
Isto vem demonstrar que a vontade, expressada ou não, pelo povo, acaba por prevalecer. Devemos abandonar ao lixo da Histó- ria expressões como aquela de um líder político da época, para quem o povo assistiu passivamente à proclamação da República. Certo, não foi um instante apoteótico, mas efetivo e é isso o que interessa. Mas não foi passivamente que se criaram partidos republicanos em diversas províncias do Império, cabendo, ainda, destacar a vibrante convenção republicana em Itu, São Paulo. São fatos que, na prática, desmentem aquela passividade.
Este tipo de análise, digamos, epidérmica, não é incomum. Há exemplos os mais diversos. Temos visto, nestes dias, as comemora- ções dos 500 anos da reforma que Lutero impôs à Igreja. Mas ao meio de tantas homenagens ninguém se lembrou de destacar que, 200 anos antes, ainda que de forma mais humilde, Francisco de Assis já havia tentado algo semelhante. E que a luta de Lutero teve prosseguimento, tanto que, 200 anos depois dele, o nosso Castro Alves já se valia, no mesmo sentido destes brilhantes versos:
Quebre-se o cetro do Papa Faça-se dele uma cruz
Que a púrpura sirva ao povo Pra cobrir os ombros nus .
Em suma, o povo, protagonista maior da História, não deve ser alijado de qualquer importante decisão no bojo dessa mesma História, porque, afinal, lenta ou aceleradamente, ele retoma o timão de seu barco e o faz não apenas seguir adiante, mas, sobre- tudo, no rumo certo. É quando, para terminar, nos valemos do já citado Castro Alves para deixar esta advertência final:
Libertai tribunas, prelos, São fracos, mesquinhos elos,
– Não calqueis o povo rei,
Que esse mar de almas e peitos, Com a força de seus direitos, Virá partir-vos a lei.