Paulo Fábio Dantas Neto: Crise, reforma política e as âncoras da democracia brasileira

Se fosse possível escolheria não escrever sobre reforma política. Tenho, na contramão de certo senso comum que se formou no Brasil, a percepção de que no nosso atual sistema político, ancorado na Constituição de 88, há mais a conservar que a reformar. Mas não é possível ignorar um bordão que vive sendo repetido, mesmo que, na maioria dos casos, quem o repete não saiba exatamente o que quer reformar.
Foto: Wilson Dias Agencia Brasil
Foto: Wilson Dias Agencia Brasil

Se fosse possível escolheria não escrever sobre reforma política. Tenho, na contramão de certo senso comum que se formou no Brasil, a percepção de que no nosso atual sistema político, ancorado na Constituição de 88, há mais a conservar que a reformar. Mas não é possível ignorar um bordão que vive sendo repetido, mesmo que, na maioria dos casos, quem o repete não saiba exatamente o que quer reformar. Todo mundo quer políticos melhores, eu também. Mas penso ser ilusão supor que eles serão achados ao adotarmos sistemas de governo, de partidos e de eleições diferentes. Os problemas que temos estão em softwares, não no hardware. Partindo desse entendimento tentarei tratar do tema evitando caminhos argumentativos que, a meu ver, costumam ser estéreis.

O primeiro caminho a evitar é o de reiterar um diagnóstico áspero, por vezes indignado, sobre patologias da política brasileira. Nesse tom costumam convergir certezas ingênuas de senso comum e normativas nos campos jurídico, sociológico e econômico, bem como na imprensa e em hostes empresariais e do ativismo social. O mantra mais notável desse território argumentativo é o que proclama a reforma política como a “mãe de todas as reformas”. Um estribilho que reverbera em vozes certamente dissonantes se o debate for sobre qualquer outro tema. Ele garante simpatia, o aplauso é provável mas o resultado substantivo é o de não contribuir ao debate. Contribui para torná-lo medíocre, pois não esclarece de qual reforma se fala, cada qual pensa numa, ou em nenhuma.

O segundo caminho a evitar penso que é, na contramão do primeiro, o da defesa acrítica do status quo institucional do sistema político. Até teve sentido esse papel de contraponto cumprido, desde os anos 90, pela ciência política brasileira. Ela nos ofereceu pesquisas que permitiram enfrentar preconceitos frequentes em ambiente social hostil, que tende a estigmatizar a política, e evidenciou a racionalidade do assim chamado presidencialismo de coalizão, cujo fracasso é hoje diagnosticado. É preciso que a ciência política não capitule, por viés político e/ou timidez intelectual, perante esse senso comum, mas também não é sensato aferrar-se a achados pretéritos como se fossem dogmas infensos ao certo derretimento objetivo daquele arranjo institucional. Quem seguir esse caminho “teimoso”, de uma ciência que rejeita os fatos, também não dará contribuição positiva ao debate. O resultado seria contribuir para torná-lo esotérico.

Um terceiro caminho a evitar é o de buscar “culpados” pela necessidade de reforma política. Ele reduz a discussão a um embate de narrativas sob um emaranhado infindo e infinito de polarizações: liberais vs. desenvolvimentistas em economia; ativistas vs. garantistas em direito; conservadores vs. vanguardistas em cultura; direita vs. esquerda, ou governo vs. oposição, no campo estritamente político. Mais insolúveis, por intolerância, são polarizações entre autoproclamados democratas à esquerda e os que eles denunciam como golpistas, neoliberais e fascistas; bem como entre democratas juramentados à direita e os que esses últimos acusam de estatistas, stalinistas, bolivarianos e por aí vai. O preço a ser pago por quem ceder à tentação de visitar esse labirinto será o de, além de não contribuir ao debate, terminar contribuindo para torná-lo banal, ou interditá-lo.

Em fuga, tento manobrar entre esses três territórios minados para fixar, em termos de reforma política, apenas dois entendimentos. O primeiro é o de que a discutimos hoje sob o influxo de um equívoco que fez nascer a ideia de que ela é mãe de todas as reformas. Precisamente em 2013, após massivas manifestações públicas de insatisfações para com a política realmente existente, algum gênio do marketing sacou o bordão da reforma política (no sentido de mudança das regras do sistema político) e encontrou acolhida interessada em atores políticos com algum poder de fala e decisão. A partir daí vendeu-se à sociedade civil a ideia de que era preciso trocar o hardware da política brasileira, ideia que ajudou a esvaziar as ruas.

Até então, o eleitorado — um público mais amplo e menos informado que a sociedade civil — dava de ombros a essa questão, vista como técnica, como em parte realmente é. O que ele sentia na pele e compreendia bem eram os duros efeitos de políticas públicas (softwares) mal implementadas, cujo financiamento tornara-se problemático. Além disso, eleitorado e sociedade civil convergiam no ceticismo em relação ao desempenho da elite política. Através dos partidos ela exibe um padrão de interação política de má qualidade, outro software ruim. Só que o discurso de que mudar o hardware é solução para mazelas criadas pelos atores (do estado e da sociedade civil) ganhou terreno e acabou persuadindo até o eleitorado.

O segundo entendimento que desejo transmitir é sobre a crise que emoldura um discurso reformista forte, em relação ao tema. Vejo-a como crise de aperfeiçoamento e não de colapso da democracia brasileira. Estou longe de ignorar o potencial de risco que ronda o sistema político quando o cidadão comum deseja paz e grupos sociais e políticos organizados disputam um rude e surdo vale-tudo. Mas vejo no interior das nossas instituições as possibilidades de que essa crise seja vencida com uma subida de patamar. A modesta reforma eleitoral aprovada no Congresso Nacional há dois meses (sobre a qual já se falou e debochou fartamente como se fosse mero arranjo corporativo, para dizer o mínimo) sinaliza, a meu ver, uma rota: reformar, a cada momento, o que for praticável, em termos políticos, pois nenhuma convicção doutrinária é válida se não puder ser viabilizada democraticamente, logo, politicamente.

Sim, espero resultados de eleições para deputados em 2018, já com moderada cláusula de barreira e, a seguir, eleições sem coligações, para vereador (2020) e para deputados, em 2022. Após resultados objetivos, que venham análises de corpo presente sobre aquilo que realmente estiver morto. Creio ser essa atitude mais sensata e razoável do que ministrar extrema-unção a quem ainda não apenas respira, mas pode se reformar gradualmente, desde que mantido vivo. Penso — e o digo francamente — ser esse o caso do nosso sistema político.

Outras iniciativas moderadas serão necessárias para, por exemplo, resolver impasses nas regras de financiamento de partidos e campanhas. Sem demagogia, é preciso argumentar que a retirada completa do financiamento de empresas implica aumentar o fundo público destinado a esse fim. Mesmo que se baixem, como convém, os custos das campanhas, não é sensato (nem possível) querer fazê-lo como se as campanhas devessem retroceder ao tempo dos “santinhos” e do “corpo a corpo”. Somos uma democracia eleitoral de massas e, a menos que se queira substituir a democracia por outro regime, é preciso (e desejável) que a sociedade financie a competição política.

Penso que não estamos à beira de um precipício, como narrativas simplificadoras, eleitoralmente interessadas, querem nos fazer crer. Mas claro que há perigo na esquina. Há porque competidores preparam-se para eleições na contramão da política, com discursos intolerantes, salvacionistas ou justiceiros; e porque setores da sociedade civil veiculam discursos análogos. Apesar dessa babel — e em contraponto a ela — temos hoje, diferentemente da nossa experiência histórica, uma Constituição que cumpre um papel de agência. O País em que ela nasceu mudou e muda na direção do que ela apontou, isto é, na direção da complexidade das relações sociais e, consequentemente, dos mecanismos políticos que devem regulá-las. Complexidade que precisa ser conservada e não atirada ao lixo para dar passagem a qualquer tipo de solução simples, não política.

A Constituição e um calendário eleitoral são as âncoras que até aqui nos detém ante o precipício e nos prendem a um terreno áspero, mas real, de uma ampla democracia. O tema da reforma política é delicado pois afeta essas duas âncoras. Ideias, palavras e obras sobre ele podem ajudar a fixá-las mais solidamente, ou a fazerem-nas bambear.

* Paulo Fábio Dantas Neto é cientista político e professor da UFBA. Texto originário de exposição em Seminário sobre reforma política no TRE/ Ba, em 23.11.2017, e entregue para publicação no site Outra Bahia, em 08.12.2017.

 

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