Galdino Pataxó: O que aconteceu com os jovens que incendiaram indígena

Foto: Sérgio Marques/O Globo
Foto: Sérgio Marques/O Globo

William Helal Filho / Blog do Acervo / O Globo

BRASÍLIA, 1997

Galdino Jesus dos Santos estava em Brasília com outros integrantes da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe para participar de reuniões com representantes do governo federal sobre conflitos fundiários envolvendo as terras indígenas de seu povo, no Sul da Bahia. Na madrugada de 20 de abril de 1997, após participar de eventos do Dia do Índio, ele chegou na pensão onde estava hospedado, na Asa Sul, mas foi impedido de entrar. Sem opção, o agricultor de 44 anos, morador da Aldeia Caramuru Paraguaçu, decidiu repousar num ponto de ônibus a 20 metros do imóvel. Pouco depois, porém, foi acordado com o corpo coberto por chamas.

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Naquela madrugada, cinco jovens de famílias ricas da capital acharam que seria engraçado atear fogo numa pessoa que dormia na rua. Um dos criminosos era filho de um juiz federal. Outro, enteado de um ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Max Rogério Alves, Eron Chaves de Oliveira, Tomás Oliveira de Almeida, Antonio Novely e um menor de idade, todos de 17 a 19 anos, jogaram sobre Galdino um líquido inflamável e riscaram pálitos de fósforo. Enquanto a vítima era engolida pelas labaredas, o grupo fugia num Chevrolet Monza.

O menor envolvido era Gutemberg Nader de Almeida Júnior, hoje servidor concursado da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Atualmente, aliás, todos os participantes na morte do indígena são servidores de órgãos como o Senado Federal e até mesmo o Tribunal de Justiça (veja detalhes no fim do post).

Documento de identidade de Galdino Pataxó, assassinado por cinco jovens em Brasília | Foto de arquivo/Agência O GLOBO
A viúva de Galdino chorando entre familiares após a morte do pataxó | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO
Indígenas carregam caixão com corpo de Galdino Pataxó | Foto de Givaldo Barbosa/Agência O GLOBO
Assassinos de Galdino na delegacia: ‘Era para ser uma brincadeira’, disseram eles | Foto de Roberto Stuckert Filho/Agência O GLOBO
Cacique do povo Xavante no ponto de ônibus onde Galdino foi morto, em 1997 | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO
Protesto contra demora da Justiça, ao redor de placa que homenageia Galdino, em 2001 | Foto de Gustavo Miranda/Agência O GLOBO
Galdino Jesus, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, após ser incendiado, em 1997 | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO
Documentos de identidade dos assassinos de Galdino Pataxó | Foto de Roberto Stuckert Filho/Agência O GLOBO
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Documento de identidade de Galdino Pataxó, assassinado por cinco jovens em Brasília | Foto de arquivo/Agência O GLOBO
A viúva de Galdino chorando entre familiares após a morte do pataxó | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO
Indígenas carregam caixão com corpo de Galdino Pataxó | Foto de Givaldo Barbosa/Agência O GLOBO
Assassinos de Galdino na delegacia: ‘Era para ser uma brincadeira’, disseram eles | Foto de Roberto Stuckert Filho/Agência O GLOBO
Cacique do povo Xavante no ponto de ônibus onde Galdino foi morto, em 1997 | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO
Protesto contra demora da Justiça, ao redor de placa que homenageia Galdino, em 2001 | Foto de Gustavo Miranda/Agência O GLOBO
Galdino Jesus, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, após ser incendiado, em 1997 | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO
Documentos de identidade dos assassinos de Galdino Pataxó | Foto de Roberto Stuckert Filho/Agência O GLOBO
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O indígena chegou a ser socorrido com vida. O advogado Evandro Castelo Branco Pertence, filho do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Sepúlveda Pertence, estava saindo de uma festa de casamento por volta das 5h quando viu a bola de fogo humana a Avenida Asa Sul. Ele parou o carro e cobriu Galdino com seu paletó, auxiliado por outro homem, enquanto a vítima gritava pedindo ajuda. Depois, o advogado usou o extintor de incêndio de seu carro. O pataxó de 44 anos foi levado, consciente, ao Hospital da Asa Norte. Mas morreu horas depois.

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“Quando vi, pensei que a parada de ônibus estava pegando fogo. Não me conformo que alguém no mundo possa fazer isso”, disse Pertence ao GLOBO.

A vítima chegou ao pronto-socorro com 95% do corpo queimados. Ele estava lúcido e lembrou que tinha batido na porta da pensão na Asa Sul, mas que a responsável pelo imóvel, uma senhora chamada Vera Moretti, não o deixara entrar porque estava muito tarde. Pouco após ser admitido no hospital, Galdino apresentou insuficiência respiratória e renal agudas e começou a expelir sangue pela urina, o estágio terminal de uma pessoa queimada. O pataxó morreu momentos depois. Considerado um bom agricultor e também uma espécie de conciliador na aldeia onde morava, o líder indígena tinha mulher e era pai de três filhas.

Assassinos de Galdino Pataxó na delegacia: 'Era para ser uma brincadeira', disseram elesAssassinos de Galdino na delegacia: ‘Era para ser uma brincadeira’, disseram eles | Foto de Roberto Stuckert Filho/Agência O GLOBO

“Ele era uma pessoa muito feliz. Gostava de trabalhar na roça. A gente nadava no rio, pegava traíra, piaba e acari. Mas hoje não dá mais peixe. Os brancos vêm da cidade pescar muito, e o rio ficou batido”, descreveu o primo Tatuti Pataxó, de 22 anos, no dia seguinte ao crime. Ele e os demais indígenas tinham ido a Brasília procurar o governo federal devido a uma situação de conflito com fazendeiros em suas terras originárias. O crime hediondo que vitimou Galdino deixou todos revoltados. “Cadê o governo? Cadê a Justiça? Que país é este? Além de matar na aldeia, agora matam na cidade?”, protestou o cacique Tito Mowé.

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Os assassinos foram presos graças a uma testemunha que seguiu o carro dos rapazes até conseguir a anotar a placa. Eles foram detidos cerca de duas horas depois do crime. A polícia chegou primeiro na casa de Max, que dirigia o carro. Ele confessou o que tinha feito e conduziu os agentes até as residências de seus comparsas. Na delegacia, todos negaram a intenção de matar Galdino. Diziam que era para ter sido “uma brincadeira”. Na época, a Polícia Civil decidiu investigar a participação deles em episódios semelhantes. No ano enterior, dois moradores de rua haviam sido incendiados nas mesmas condições do indígena.

Cacique do povo Xavante no ponto de ônibus onde Galdino foi morto, em 1997Cacique do povo Xavante no ponto de ônibus onde Galdino foi morto, em 1997 | Foto de Sérgio Marques/Agência O GLOBO

As investigações mostrariam que o grupo comprou dois litros de álcool num posto de combustível minutos antes do crime. Em entrevista ao GLOBO dois dias após o assassinato, Max Rogério contou que eles tinham feito um lanche e estavam rodando aquele trecho da cidade de automóvel, procurando o que fazer na madrugada de Brasília, quando viram um homem dormindo no ponto de ônibus e tiveram a “ideia” de atear fogo nele. O criminoso garantiu que não sabia que a vítima era indígena e que, portanto, o crime não tinha relação com o Dia do Índio, celebrado na véspera.

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“A gente pensou em dar um susto. Foi só isso, uma brincadeira. Pensamos que ele ia acordar, dar um pulo e sair correndo”, contou Max Rogério, antes de explicar por que, então, nenhum deles prestou socorro quando viu que o indígena estava desesperado enquanto era engolido pelo fogo. “A gente ficou apavorado. Pensamos em voltar para acudir. Aí, chegou um carro, ninguém sabia o que fazer. Fomos embora. Era para ser uma brincadeira, só isso, mas acabou com a vida da gente”.

Documentos de identidade dos assassinos de Galdino PataxóDocumentos de identidade dos assassinos de Galdino Pataxó | Foto de Roberto Stuckert Filho/Agência O GLOBO

O assassinato gerou comoção no país. Galdino fora morto na madrugada após participar de eventos em celebração ao Dia do Índio na Fundação Nacional do Índio (Funai). Houve protestos em Brasília. No funeral do indígena, os pataxós se pintaram para a guerra e exigiram justiça das autoridades. O então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, que estava em viagem oficial no Canadá, disse que o “episódio trágico ultrapassou todos os limites” e que “nós queremos ser um país diferente, mas não estamos cumprindo esse objetivo”.

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Como era menor, Gutemberg cumpriu medida sócio-educativa. Em 2001, um júri popular condenou os quatro maiores de idade por homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e uso de recurso que impossibilitou defesa à vítima). Eles foram sentenciados a 14 anos de prisão em regime fechado. Em 2002, porém, a 1ª Turma Criminal deu aval para que exercessem funções administrativas em órgãos públicos e voltassem para dormir no Complexo Penitenciário da Papuda. Depois, os assassinos de Galdino tiveram permissão para estudar em universidades fora da cadeia. Até que, em 2004, os rapazes conquistaram direito a liberdade condicional.

Hoje, os cinco são servidores concursados em diferentes órgãos públicos. Além de Gutemberg, que atua na Polícia Rodoviária Federal (PRF), seu irmão mais velho, Tomás Oliveira de Almeida, é técnico do Senado Federal, com remuneração básica de R$ 21,4 mil, de acordo com a página de Transparência no site da Casa. Eron Chaves é agente de trânsito no Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) e recebe salário bruto de mais de R$ 15 mil, segundo a página de Transparência do site do governo do DF. Antônio Novely Vilanova é fisioterapeuta da Secretária de Saúde do Distrito Federal e também ganha mais de R$ 15 mil por mês, conforme a mesma fonte. Já Max Rogério é analista do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DF) desde que foi aprovado em concurso para o órgão, em 2016.

William Helal Filho / O Globo
Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Infoglobo pelo programa de estágio, foi repórter e editor de diferentes áreas da redação. Hoje é responsável pelo Acervo O Globo e o treinamento de estagiários e trainees.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/foi-so-uma-brincadeira-o-assassinato-de-galdino-pataxo-queimado-vivo-enquanto-dormia-na-rua.html

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