O Globo: “Ameaça à democracia vem dos homens que estão no poder em nossos países”, diz biógrafo de Mussolini

Estratégia do ditador italiano de negar a política é a mesma empregada por Bolsonaro, Trump e Salvini , diz escritor Antonio Scurati.
Foto: Philippe Matsas
Foto: Philippe Matsas

Estratégia do ditador italiano de negar a política é a mesma empregada por Bolsonaro, Trump e Salvini , diz escritor Antonio Scurati

Ruan de Sousa Gabriel, O Globo

SÃO PAULO – Em março de 1919, o jornal italiano “Corriere dela Sera” dedicou apenas dez linhas à fundação dos Fasci di Combattimento, as milícias fascistas – o mesmo espaço reservado a um roubo de caixas de sabão. A elite liberal italiana confiava que, se chegassem ao poder, Benito Mussolini e seus companheiros arruaceiros seriam domesticados pelas instituições democráticas. Para o napolitano Antonio Scurati, autor de “M, o filho do século”, recém-lançado no Brasil, as elites cometem o mesmo erro hoje ao subestimar os novos populistas.

“M, o filho do século” é o primeiro volume de uma trilogia sobre Mussolini e o fascismo. Vendeu mais de 400 mil exemplares na Itália e vai virar série. É um romance, mas nada é inventado. Cada acontecimento ou diálogo narrado é historicamente documentado ou testemunhado por mais de uma fonte. Em capítulos curtos, Scurati apresenta os principais personagens do fascismo e seus crimes. Sem julgamentos, só fatos.

Em entrevista, por telefone ao GLOBO, Scurati sugeriu cautela no uso do adjetivo “fascista” e contou que o Brasil foi o primeiro dos 40 países que adquiriram os direitos de publicação de seu livro:

– Deve ter uma razão para isso.

Por que escrever um romance de não ficção sobre Mussolini e o fascismo?
Há centenas de estudos históricos sobre Mussolini, mas não havia um romance. Era meio que proibido escrever um romance, sem restrições ideológicas, sobre o fascismo. A democracia italiana foi fundada sobre a condenação do fascismo. Havia grupos neofascistas, mas nunca no governo. Mas, nos últimos anos, políticos como Mateo Salvini (vice-primeiro-ministro) começaram a citar Mussolini. Os valores antifascistas começaram a arrefecer. Paradoxalmente, isso tornou possível escrever um romance sobre o fascismo que não fosse um julgamento. Eu sou antifascista. Não podemos mais contar com a cultura antifascista do passado para proteger a democracia. Esse romance é minha contribuição para construir uma nova cultura antifascista. Conto uma história de violência, brutalidade e humilhação. Se o leitor chegar ao final do livro e não condenar o fascismo, é porque ele já era fascista antes.

Quais as semelhanças e diferenças entre Mussolini e os novos populistas?
A principal diferença entre os fascistas e o novos populistas é o uso da violência. Os fascistas usavam a violência, e até o assassinato, na luta política cotidiana. Os populistas de hoje recorrem à violência verbal, não a milícias. Jogam o jogo democrático e vencem eleições. A forma de liderança, no entanto, é parecida. Mussolini é o arquétipo de todo líder populista. Em vez de liderar as massas e guiá-las, ele as segue, explorando seus medos, seu ódio e descontentamento. O populista que não tem ideias políticas próprias, mas segue as massas é a mais terrível criação de Mussolini.

Você aprova o uso do adjetivo “fascista” para descrever populistas de direita como Salvini, Bolsonaro e Trump?
Nos últimos anos, na Itália ou no Brasil, sempre que alguém discorda de nós, chamamos de fascista, às vezes só porque torce para outro time de futebol. Isso é ruim para a democracia. Não precisamos dizer que Salvini, Bolsonaro ou Trump são fascistas. São populistas de direita e, nesse sentido, se parecem com Mussolini. Os “fascio” diziam não ser um partido político, mas um antipartido, que fazia antipolítica. É a mesma linguagem dos políticos de hoje, baseada em um sentimento de recusa à política. Os milhões que votaram em Bolsonaro ou Trump não são fascistas. Não andam por aí com camisas negras e porretes. São trabalhadores, gente decente que se sentiu traída pelas elites liberais.

 

Capa de "M, o filho do século", do italiano Antonio Scurati Foto: Divulgação

Capa de “M, o filho do século”, do italiano Antonio Scurati Foto: Divulgação

Na época de Mussolini, intelectuais como Luigi Albertini, editor do “Corriere della Sera”, acreditavam que as instituições domesticariam Mussolini. Esse discurso sempre se repete quando populistas são eleitos. Estamos cometendo o mesmo erro?
Sim. Não dá para dizer que o que aconteceu no tempo de Mussolini não vai acontecer de novo porque já está acontecendo. Não precisamos esperar que um camisa negra bata à nossa porta com um porrete, porque a ameaça à democracia vem dos homens que já estão no poder em nossos países.

Como fortalecer nossas instituições e proteger nossas democracias de líderes autoritários?
Devemos dizer adeus ao século passado, a suas ideias, formas políticas e partidos. Não podemos nos agarrar a fórmulas do passado, porque precisamos lutar pela democracia com novos meios, novas palavras. Mas ainda não sabemos qual será o resultado dessa luta. A democracia não é uma coisa que se conquista uma vez e pronto.

Antes de ingressar na política, Mussolini dirigiu o jornal socialista “Avanti” e o fascista “Il Popolo d’Italia”. A atividade jornalística preparou o caminho para o sucesso político?
A primeira revolução de Mussolini foi na linguagem do “Avanti!”. As frases eram curtas, afirmativas, cheias de “eu prometo” e despreocupadas com a realidade. As vendas do jornal quadruplicaram. Ele levou essa linguagem bruta para a política. Os intelectuais tiravam sarro dele, assim como hoje tiramos sarro de Trump. Para ele, a realidade não era nada complexa. Tudo era muito simples. O inimigo eram os socialistas, que não precisavam ser temidos, mas odiados e mortos. Apesar de absurda, essa redução da realidade funcionou no passado e funciona ainda hoje.

“M, o filho do século”
Autor: Antonio Scurati
Editora: Intrínseca
Páginas: 816
Preço: R$ 79,90

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