O Globo: ‘A História não se repete, mas os métodos de manipulação, sim’, diz pesquisadora alemã

Partindo da própria família, que apoiou o nazismo por conformismo, Géraldine Schwarz alerta para os riscos de se esquecer o passado.
Foto: Divulgação
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Partindo da própria família, que apoiou o nazismo por conformismo, Géraldine Schwarz alerta para os riscos de se esquecer o passado

Fernando Eichenberg, de O Globo

PARIS – O Brexit, no Reino Unido, a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e o crescimento do populismo na Europa fizeram com que a franco-alemã Géraldine Schwarz mergulhasse na história de sua família na busca de elementos para a compreensão do presente. Na Alemanha da Segunda Guerra Mundial, seus avós paternos, Karl e Lydia, habitantes de Mannheim, aderiram ao Terceiro Reich, não por ideologia, mas por oportunismo. Na França, seu avô materno, Lucien, atuou como gendarme em Mont-Saint-Vincent, sob a República de Vichy, regime colaboracionista do nazismo. Os avós, segundo ela, estão incluídos na categoria dos Mitläufer , definidos como aqueles que “seguem a corrente” e que aderiram ao regime nazista por conformismo e não por convicção.

Suas pesquisas resultaram no premiado ensaio “Os amnésicos” (ed. Flammarion), uma narrativa cruzada entre seu passado familiar, o papel exercido pelas populações nos regimes totalitários e o trabalho de memória realizado nas sociedades europeias do pós-guerra. Para ela, o fenômeno do Mitläufer pode ser notado na adesão de indivíduos a diferentes formas de populismos contemporâneos, Brasil incluído. Schwarz defende a memória como um dos instrumentos mais eficazes para a proteção da democracia e alerta para a ameaça dos extremismos na Europa do século XXI.

Na sua opinião, o Mitläufer está presente no mundo de hoje e a amnésia está contaminando a Europa.

No imaginário coletivo, temos tendência a dividir a sociedade em três categorias históricas no século XX: heróis, vítimas e carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto Moravia (“O conformista”, de Bernardo Bertolucci), que mostra muito bem como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável e se torna Mitläufer . No ensino da História, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante, pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo.

Ao narrar a história dos Mitläufer por meio a trajetória banal de meus avós, espero que o leitor possa se identificar e imaginar que poderia fazer a mesma coisa. O importante é tomar consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar também em um bárbaro, um trabalho que a maioria dos países europeus, à parte a Alemanha, não fez. Na França, há uma tendência a se jogar a responsabilidade sobre um grupo, os carrascos, a República de Vichy, os grandes colaboradores, também econômicos. Por outro lado, a atitude da população passou sob silêncio, diria que ainda até hoje. O que explica que a França seja bastante vulnerável ao populismo, de esquerda e de direita. Em 2017, cerca de metade dos franceses votou em partidos populistas nas eleições presidenciais. Na classe política italiana do pós-guerra, nunca houve uma vontade de trabalhar sobre os crimes do fascismo. Não se trata de uma censura oficial, mas é um trabalho de memória que não foi encorajado pelos fundos públicos. Quando se relativiza os crimes ligados a esse passado, é mais fácil de se reivindicar dessa ideologia. Ao minimizá-los, se adormece um pouco a vigilância do eleitorado e o fascismo se torna aceitável para uma parte da sociedade italiana, e não apenas nos extremos, mas também no centro.

A senhora diz que, hoje, se faz passar o ódio e os desvios autoritários por uma defesa das liberdades e da democracia, para torná-los aceitáveis. “Inverter a moral” é uma antiga técnica que contribuiu na aceitação do crime aos olhos da sociedade alemã dos anos 1930…

Hoje, se faz uma cópia do que foi posto em prática há um século. A História não se repete, mas os métodos de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade, como, por exemplo, apresentar a Europa como um projeto fracassado, à beira da ruína, que não respeita seus cidadãos. Trata-se de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como dizia (filósofa alemã) Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem já não o é mais hoje. É o que se observa hoje em várias sociedades do mundo. As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é capital. Na História há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento universal, que serve de alarme a todo mundo.

Por que a palavra alemã “Vergangenheitsbewältigung”, traduzida por “trabalho de gestão do passado”, é importante?

Não existe em nenhuma outra língua. Em inglês é “coming to terms with the past”, mas não é a mesma coisa. Depois da Segunda Guerra Mundial, na maioria dos países europeus se fez a escolha de enterrar o passado e dar coragem à população, ressaltando os movimentos de resistência na França, na Itália ou na Holanda. Exagerou-se esse papel. Este mito resistencialista se instalou também na Europa do Leste. A União Soviética impôs à maioria da população uma memória adequada à glorificação do soldado do Exército Vermelho e da grande vitória sobre o nazismo. Se fartou essas populações de comemorações antifascistas — o que explica também seu anti antifascimo de hoje —, de maneira a que se identificassem com o vencedor ou a vítima, enquanto cinco dos países do Leste colaboraram com o Terceiro Reich e o Holocausto. No início, é algo compreensível, para que a sociedade se una, se reconcilie, e que não haja risco de guerra civil. Mas em algum momento, o passado vai ressurgir.

Na Alemanha, ocorreu algo bastante incongruente, pois os próprios alemães conseguiram se identificar com as vítimas, algo que durou uns 20 anos. Como meu avô, que antes da guerra se aproveitou das medidas antissemitas nazistas para comprar uma empresa judia a baixo preço. Após o conflito, o único sobrevivente dessa família judia, que morreu em Auschwitz, reapareceu e pediu reparação. Meu avô se recusou a pagar o valor exigido. Se segue uma correspondência entre ele e os advogados deste sobrevivente judeu, e nessas cartas fiquei chocada em ver até que ponto meu avô estava na negação de ter sido cúmplice do regime nazista ao tomar a iniciativa de realizar esse negócio. Ele não somente testemunhou os crimes nazistas de maneira apática, mas participou. No Terceiro Reich havia esta arma extraordinária de legalizar o crime e, desta forma, torná-lo aceitável. Foi necessário à Alemanha um certo tempo para se mobilizar contra essa amnésia. Por um lado, para lutar contra a impunidade que beneficiou nazistas, mas também para consolidar a democracia no país, que até então era de fachada. O mais difícil quando a democracia é jovem não é instaurar instituições ou elaborar uma bela Constituição, mas ter cidadãos que compreendam seu papel e sua responsabilidade, senão não funciona. E penso que é o caso do Brasil.

Como foi este processo na Alemanha?

Na Alemanha, é algo que começou a se desenvolver nos anos 1960. Pouco a pouco houve a consciência de que o círculo de responsabilidades era bastante amplo: médicos, industriais, universitários, comerciantes. Todo mundo, de alguma maneira, participou. Meu avô é uma ilustração perfeita disso, pois seu crime é tão mínimo em relação a outros, mas isso que é o interessante. Se ninguém tivesse participado na arianização dos judeus, teria sido enviado um sinal ao regime. A primeira grande deportação dos judeus da Alemanha se deu na região dos meus avós, e foi também um teste. E a indiferença da população, como é frequente na História do século XX, mata mais do que os carrascos. Essa tomada de consciência começou a dar frutos na sociedade alemã a partir dos anos 1970, de uma forma totalmente inédita na História. As gerações subsequentes se questionaram, e o trabalho de memória irrigou o conjunto da sociedade. Não foi algo imposto pelo Estado nem por leis. É somente assim que se pode estabelecer valores perenes. As comemorações, as leis memoriais não bastam. Por meio do trabalho de memória os alemães conseguiram consolidar sua democracia. O que explica porque até 2017 nenhum partido extremista havia entrado no Parlamento alemão, nem de extrema esquerda, como o Die Linke, ou de extrema direita.

O que ocorreu para que o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD) pudesse entrar no Parlamento, em 2017, e avançasse nas eleições estaduais deste ano?

A Alemanha está, evidentemente, ameaçada. Hoje, vemos uma ruptura geracional na Europa, o que explica, na minha opinião, o crescimento de partidos extremistas. É importante constatar que na parte oeste, o escore da AfD é de menos de 10%. Já na ex-Alemanha Oriental (RDA), seu desempenho é três vezes maior. Há uma verdadeira cisão, que era menos visível há 20 anos, e estou finalizando um documentário sobre isso. Há cinco anos, essa divisão entre o Leste e o Oeste mostrou sua cara, à luz do número dos votos da AfD e do movimento Pegida (anti-imigração). Se focalizou na economia na ex-Alemanha Oriental, e se esqueceu que a democracia não se exporta. O capitalismo é bem mais exportável. A sociedade civil não existia sob o comunismo, e hoje ela se exprime. Neste quadro, há seminários organizados por Centros de Educação Política, nos níveis federal e estadual, e as empresas também se mobilizaram após os acontecimentos de Chemnitz (palco de protestos da extrema direita após a morte de um alemão de origem cubana). A ideia é dar elementos para reagir a propósitos racistas, antissemitas, extremistas, às falsas informações e teorias conspiratórias, e para ajudar a compreender essa divisão na sociedade. E acho que o Brasil precisaria disso. No Leste, há uma verdadeira divisão interior. Os traumas da queda do Muro de Berlim deixaram marcas, que são hereditárias. Mesmo aqueles que nasceram nos anos 1980, viram o que viveram seus pais. A ex-Alemanha Oriental afronta, hoje, fortemente seu passado.

Quais as consequências disso?

O slogan de campanha da AfD no Leste é “Nós somos o povo”. Era o mesmo slogan, em 1989, do movimento de resistência à ditadura comunista na Alemanha Oriental. Outro slogan é “Nós vamos acabar com a virada” da queda do muro. Fazem alusão à impressão completamente delirante no Leste de que estão novamente sob uma ditadura. Dizem que não têm liberdade de opinião, como era sob a RDA. E funciona. Esses partidos sabem jogar enormemente com a memória e os traumas dos passado. O Brasil é um exemplo por excelência de que o trabalho de memória não foi feito. Bolsonaro reatou com a ditadura. Quando ele não estiver mais no poder, será preciso recuperar o tempo perdido, e falar do papel do Mitläufer no Brasil da ditadura. Penso que as elites e classes dirigentes falharam completamente no Brasil em sua responsabilidade social. Para Espanha e Portugal, que resistem bastante à extrema direita, uma das explicações é a de que a ditadura é recente e que isso ainda está presente na sociedade. Em entrevistas que fiz no Leste alemão, muitas das pessoas não vivenciaram pessoalmente a ditadura, levavam sua vida de todo dia. Na Itália, o perigo está momentaneamente afastado, mas não se deve contar com essa conquista. Falar de extrema direita, hoje, se tornou banal. Para mim, a melhor definição para estes extremismos é “partidos antidemocráticos”. Eles não querem a democracia. (Donald) Trump, (Jair) Bolsonaro, (Matteo) Salvini (Itália), Marine Le Pen (França), Viktor Orbán (Hungria), AfD, FPÖ (Áustria), PiS (Polônia), quando estão no poder, a primeira coisa que fazem é atacar a democracia.

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