O Globo: 50 anos do AI-5 – Colunistas  relembram o dia em que a ditadura recrudesceu

Míriam Leitão, Fernando Gabeira, Zuenir Ventura e Ancelmo Gois contam onde estavam e como viveram o 13 de dezembro de 1968.
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Míriam Leitão, Fernando Gabeira, Zuenir Ventura e Ancelmo Gois contam onde estavam e como viveram o 13 de dezembro de 1968

Por Miguel Caballero e Fernanda Krakovics, de O Globo

Na noite de 13 de dezembro de 1968, tendo a seu lado o ministro da Justiça, Gama e Silva, no Palácio Laranjeiras, o locutor Alberto Curi leu em cadeia nacional as oito páginas do Ato Institucional Nº 5.

Era o ato que representou uma inflexão do regime militar no Brasil. O documento de oito páginas conferia ao presidente da República autoridade para cassar mandatos parlamentares e fechar o Congresso.

Era facultado ao governo ainda nomear interventores para dirigir estados e municípios, demitir qualquer funcionário público e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão.

A censura prévia na imprensa e nas expressões artísticas e a suspensão do habeas corpus para crimes de motivação política completaram o cenário do período mais antidemocrático da história brasileira.

Era o endurecimento do regime em reação ao acirramento do clima político em 1968. Cinquenta anos depois, quatro colunistas do GLOBO contam onde estavam e como viveram aquele momento histórico.

» Ancelmo Gois

A locução do AI-5 pelo rádio no Colégio Estadual de Sergipe e a fuga de barco antes da prisão

Ouvi pelo rádio a leitura do AI-5. Estava na sala do grêmio estudantil do Colégio Estadual de Sergipe, em Aracaju. Tinha 20 anos, e na hora eu tremi. Sabia que estaria entre os visados pela repressão. Eu trabalhava no jornal “A Gazeta de Sergipe”, e militava no movimento estudantil. Àquela época, em Aracaju, nos inspirávamos no que acontecia no Rio. Quando se organizavam grandes passeatas aqui, nós fazíamos lá também, como nos protestos contra a morte de Édson Luís.

Fui ouvindo a possibilidade de se fechar o Congresso, o fim do habeas corpus, e a primeira decisão foi fugir. Naquela noite, dormi na casa de um amigo, e no dia seguinte já traçamos um plano. A família de outro amigo tinha uma propriedade na caatinga, distante um pouco de Aracaju, e lá havia um casebre, num lugar ermo, no mato, aonde só se chegava a pé. Decidimos ir para lá.

Mas antes havia um problema. Aracaju, naquela época, só tinha uma saída. Se você quisesse ir para João Pessoa ou para o Sul do país, a estrada para sair da cidade era a mesma. O pai de um colega, que tinha um jipe, saiu da cidade e verificou que de fato o Exército tinha instalado um controle na estrada.

Ele saiu e foi nos buscar em outro ponto do litoral, afastado da cidade, para onde nós fomos de barco. Éramos cinco líderes do movimento estudantil, entre eles a mulher com quem me casaria e com quem estou até hoje, Tina Correia.

Ficamos por cinco dias escondidos. Decidi voltar para casa no dia 18, e no mesmo dia foram me prender. Fiquei 40 dias no 28º Batalhão de Caçadores, em Aracaju, onde dividi cela com outro colega secundarista, Tonico, um deputado cassado, Durval Militão, e um rato. Não fui torturado.

Fui absolvido na 6ª Região Militar, graças, em parte, à ajuda de Dom Eugenio Salles, na época Arcebispo Primaz do Brasil, e à atuação da brava da advogada Ronilda Noblat.

» Zuenir Ventura

“Imaginávamos alguma reação da ditadura, mas não se esperava algo tão drástico”

Lembro que naquele dia eu estava na casa do (cineasta) Leon Hirszman, na Urca, que era perto de onde eu morava. Assistimos pela televisão à transmissão da leitura do AI-5. Fui dormir na casa de um amigo nosso, chamado Carlos Mariani, onde julgávamos ser um lugar mais seguro, ele era de uma família de banqueiros.

Aconteceu pela primeira vez aquilo que chamaríamos de “arrastão”, uma palavra que tempos depois passou a designar também ondas de violência comum. A polícia saiu prendendo todo mundo. A sensação era de que a todo mundo estava sendo preso. Juscelino (Kubitschek) foi preso na escadaria do Municipal, onde tinha ido ser paraninfo de uma formatura.

Lembro que nos ligávamos, uns para a casa dos outros, alertando para ter cuidado, procurar algum lugar mais seguro.

À época, eu trabalhava na revista “Visão”, que ficava bem perto do Calabouço, onde havia o restaurante universitário onde o estudante Edson Luís foi assassinado. Da janela da “Visão”, eu vi onde tudo começou.

Depois as coisas foram acirrando, houve confrontos com a polícia no velório e na missa de sétimo dia, depois houve a Passeata dos Cem Mil. Imaginávamos alguma reação da ditadura porque o clima vinha se endurecendo. Mas não se esperava que fosse tão drástico.

A censura começou antes. Já no dia do AI-5, os jornais saíram censurados.

Foi uma noite de terror. Tempos depois, o (escritor Carlos Heitor) Cony me contou que, ao ser preso, ouviu a conversa entre dois militares naquela noite: “Vamos ter muito trabalho esta noite, vamos fuzilar Juscelino e Lacerda”. Ele morreu inconformado de nunca ter conseguido apurar por que desistiram daquele plano.

» Miriam Leitão

“Cheguei à juventude em um país sob o AI-5. Em 1972, eu estava presa”

Eu tinha 15 anos, mas era uma adolescente muito politizada. Morava no interior, em Caratinga, Minas Gerais, mas seguia o noticiário e vinha acompanhando o movimento estudantil.

A gente tentava furar a censura, e percebeu que a situação estava ficando mais tensa. Era possível perceber. Eu me lembro claramente desse dia. O AI-5 marcou a minha vida radicalmente. A partir daí, começou um período no qual eu desabrocho, chego à juventude em um país sob o AI-5. Deu no que deu: em 1972, eu estava presa.

A gente tinha um grupo de amigos em Caratinga, de adolescentes, e começou a discutir muito sobre o que ia acontecer no Brasil. Era um momento de pessimismo —você ter pessimismo aos 15 anos de idade…

O AI-5 pegou a minha geração e passou o trator por cima. Todos os meus amigos daquele grupinho de Caratinga, que se reunia, trocava livros, conversava, todo mundo foi preso. Não naquele momento, mas ao longo dos anos 70, quando chegou na universidade.

Alguns foram para Brasília, foram para lugares diferentes, fazer cursos diferentes, Química, Sociologia, Jornalismo. Eu fui para Vitória. Mas todo mundo acabou preso.

Não foi uma lei qualquer, era uma lei presente. A gente não podia fazer reunião. As reuniões da UNE eram encontros clandestinos. A UNE era um perigo de vida. Era assim, esse tipo de maluquice.

Não foi uma coisa abstrata, que aconteceu em Brasília e atingiu os governantes. Atingiu todo mundo que tentou ter algum tipo de participação, ter voz ativa, entender o que estava se passando, todo mundo foi atingido de uma forma ou de outra. Era uma lei concreta.

» Fernando Gabeira

Frieza da população nas ruas e o impacto da censura na imprensa

Dois aspectos me marcaram muitos nos dias seguintes à promulgação do AI-5. Primeiro, uma reação com certo distanciamento da população em relação àquele agravamento do regime. Já nos dias seguintes ao ato, fizemos uma série de panfletos de contestação à medida, denunciando os abusos e ilegalidades do texto. A ideia era distribuí-los nas ruas.

Lembro de não haver uma repercussão como imaginávamos. As pessoas, nas ruas, não se mostravam interessadas. Havia uma reação de certa frieza.

Nós fomos às ruas panfletar nas semanas anteriores ao Natal, e até hoje tenho para mim que isso influenciou nesse distanciamento.

Por outro lado, no campo profissional a repercussão para mim foi muito maior, embora eu já exercesse uma militância política.

À época, eu chefiava ao departamento de Pesquisa do “Jornal do Brasil”. Não tenho lembranças específicas do dia 13 de dezembro, provavelmente eu estava na redação, mas me recordo bem das semanas seguintes.

A partir daquele dia, a censura foi interiorizada nos jornais. Isso foi um impacto muito grande para todos que trabalhavam na imprensa. Os jornais passaram a trabalhar sob análise prévia dos militares.

Pessoalmente, fui me tornar alvo mais direto da repressão violenta do regime militar mais tarde, após o episódio do sequestro (Gabeira estava entre os que participaram do sequestro do embaixador americano no Brasil, em setembro de 1969. Charles Elbrick foi libertado em troca da soltura de presos políticos da ditadura).

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