Número de células neonazistas no Brasil cresce cerca de 60% em dois anos

Pesquisadores alertam para o perigo da banalização do discurso de ódio no país
Foto: Paolla Serra / Paolla Serra
Foto: Paolla Serra / Paolla Serra

Pesquisadores alertam para o perigo da banalização do discurso de ódio no país

Eduardo Graça e Janaína Figueiredo / O Globo / Época

RIO E SÃO PAULO – Em 22 de agosto, uma prece virtual organizada pela Associação Religiosa Israelita do Rio (ARI) em homenagem a Dora Fraifeld, ex-diretora da escola Eliezer que morrera uma semana antes, foi invadida por um grupo neonazista. Imagens de Hitler, de suásticas e de soldados alemães foram reproduzidas nas telas, além da defesa da morte de judeus. A violência, que foi repudiada pelo Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil (OJDHB), não se trata de fato isolado.

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Pesquisadores e historiadores que acompanham a evolução do neonazismo no Brasil ouvidos pelo GLOBO alertam para o perigo da banalização do discurso de ódio no país e temem que a disseminação de desinformação nas redes sociais, ao lado da polarização política, que pode aumentar na campanha presidencial, impulsionem ainda mais o crescimento de grupos e células neonazistas.

Espécie de caçadora de neonazistas brasileiros, a antropóloga Adriana Dias estima que atualmente existam 530 células (formadas por pessoas que estão no mesmo município). Em 2019, a especialista detectara 334, o que indica um aumento de 58%. Há duas décadas, quando a antropóloga começou a vasculhar sites e blogs e não se tinha ainda a dimensão que tomariam as redes sociais e a deep web (onde os neonazistas atuam com total impunidade), o número não passava de dez. A pesquisa feita na Unicamp é permanente, e no momento em que a entrevista foi feita, a acadêmica e sua equipe tinham em mãos 200 perfis de usuários neonazistas, que podem pertencer a novas células ou a alguma detectada anteriormente.

— Em 2002, meus dados já me indicavam que em 2020 o Brasil teria um governo de extrema direita. À época, me chamavam de louca. A realidade foi confirmando minha pesquisa, e isso é assustador — afirma Adriana.

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Diretor-presidente e fundador da SaferNet Brasil, ONG focada há uma década e meia no estudo do discurso de ódio no país, Thiago Tavares também tem números preocupantes. Em 2019, foram recebidas e processadas 1.071 denúncias anônimas de neonazismo, envolvendo 544 páginas (URLs), das quais 212 foram removidas. Em 2020, foram 9.004 denúncias anônimas e 3.884 páginas, das quais 1.659 foram removidas.

— A radicalização do discurso político tem legitimado e empoderado células extremistas que atuam principalmente na região Sul do país e amplificado o ódio, o preconceito e a intolerância contra quem pensa diferente — diz.

Tavares fez uma apresentação na última terça-feira no Tribunal Superior Eleitoral sobre o problema. Ele mostrou como estes grupos radicais vêm utilizando as redes sociais para disseminar desinformação, amealhar seguidores e diminuir a reação da sociedade civil aos crimes que propõem.

Os anormais

Para especialistas, o problema não é apenas o aumento do número de casos, mas como eles vão se “normalizando”. Tavares lembra de um jovem no Recife andando no shopping com uma camisa com uma suástica, um outro em um bar em Belo Horizonte, a detecção de células nazistas em clubes de futebol, como o Grêmio…Os exemplos são cada vez mais comuns.

O aumento vertiginoso de militantes que aderem ao pensamento, discurso e estética neonazista, somado a outros que se declaram fascistas, integralistas ou promovem algum tipo de regime autoritário, levou especialistas de várias universidades a criarem o Observatório da Extrema Direita no Brasil. Seu coordenador é Odilón Caldeirão, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor do livro “O fascismo em camisas verdes”. Ele aponta que o neonazismo brasileiro surgiu com força a partir da transição democrática e não tem uma única faceta.

— Há diversas tendências e orientações. Nos últimos anos, tivemos muitos processos judiciais por apologia do nazismo e um aumento exponencial das investigações judiciais — diz o historiador.

Michel Gherman, coordenador do núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ, define características presentes, segundo ele, em todo neonazista brasileiro.

— O nazismo tem uma característica fundamental: o ressentimento. A ideia mobilizadora de que eu poderia ser melhor não fosse o outro, que pode ser o negro, o judeu, o gay, a mulher. São pessoas que atuam nas redes sociais e nelas se sentem fortalecidas.

Com a consolidação de uma agenda antiracista após a redemocratização, a sociedade viu a redução de prédios com quarto de empregada ou elevador de serviço e a elaboração de políticas públicas para a entrada de mais negros nas universidades. Os neonazistas são uma reação a isso, opina Gherman.

Conivência dos APPs

Estes grupos atuam no submundo virtual, mas também em aplicativos de mensagens de largo alcance, como o Telegram e o WhatsApp. Adriana Dias e sua equipe apresentaram recentemente uma denúncia judicial na qual afirmam que grupos “propagam discursos de ódio que envolvem neonazismo, racismo e negacionismo”.

A acusação lembra que a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, dispõe sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, e declara que é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos distintivos ou propagandas que utilizem a cruz suástica ou gamada para fins de divulgação do nazismo”. A denúncia enumerou mais de 20 grupos no Telegram que violam a lei.

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A historiadora Heloisa Starling, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mergulhou em pesquisas e teses acadêmicas para entender a raiz desse “nazismo à brasileira”.

Um dos trabalhos que mais a impressionou foi o da historiadora Ana Maria Dietrich, da Universidade Federal do ABC, autora de “Nazismo Tropical”. O livro afirma que o Partido Nazista mais forte fora da Alemanha atuou justamente no Brasil, entre 1928 e 1937 (quando Getúlio Vargas suspendeu partidos políticos, no Estado Novo, o nazismo brasileiro passou a ser um movimento clandestino).

A agremiação tinha sedes em 17 estados, contava com 3 mil integrantes, 57 núcleos organizados e 40 pontos de apoio. Patrocinava eventos esportivos e erguia escolas. O país teve Juventude Nazista, Associação de Mulheres Nazistas e uma constelação de associações nazistas. Parecia ser um problema que tinha ficado enterrado no passado

Fonte: O Globo/Época
https://oglobo.globo.com/epoca/numero-de-celulas-neonazistas-no-brasil-cresce-cerca-de-60-em-dois-anos-1-25258395

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