Monica de Bolle: Os anos 20

Nesses anos 20 que se iniciam talvez o melhor que se possa fazer é olhar para os outros anos 20, os do século XX.
Foto: AP Photo
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Nesses anos 20 que se iniciam talvez o melhor que se possa fazer é olhar para os outros anos 20, os do século XX

É tentador começar o ano, para não dizer a década, fazendo prognósticos e traçando cenários. Contudo, prognósticos e cenários são perigosos, sobretudo em tempos de tamanha incerteza. Se antes já era difícil olhar para a frente e enxergar com alguma nitidez, hoje essa tarefa está ainda mais complicada devido à rapidez com que grandes acontecimentos se dão, além da falta de referências para os temas que dominam a formulação de qualquer visão de longo prazo. Penso, por exemplo, na crise climática, no agravamento das tensões geopolíticas globais, na falta de margem de manobra para as políticas de estabilização nos países avançados em caso de desaceleração econômica, no deslocamento da força de trabalho proveniente da automação, na ascensão do populismo-nacionalista. Um tema que tem, contudo, algum tipo de referência histórica para balizar nosso juízo é a ascensão do nacionalismo.

Tenho lido sobre aqueles anos 20 por várias razões, mas a principal delas é traçar possíveis paralelos entre a ascensão das políticas econômicas de cunho nacionalista de então e o ressurgimento do nacionalismo que temos testemunhado mundo afora. Evidentemente, as origens são um pouco distintas. No século passado, o nacionalismo começou a renascer no período entre guerras e ganhou força total depois da crise de 1929.

Nos países avançados, ao menos, a motivação nacionalista teve origem na necessidade de buscar a autossuficiência econômica, sobretudo durante a Grande Depressão. No nacionalismo atual, não há tendência à autossuficiência como outrora. O que há é uma reação aos deslocamentos provocados pela automação, pela ascensão da China, pela perda de poder econômico e político das classes médias tradicionais dos países avançados. É claro que há guerras culturais de todo tipo no meio do caminho, além de uma tendência nefasta de se agarrar a ideias e pensamentos mal formulados ou francamente equivocados, falsos. Mas, apesar das origens diferentes marcadas por épocas muito distintas, o instinto nacionalista é, na essência, o mesmo: tratar de que seu país não só não perca status, mas, sobretudo, avance, ainda que isso possa prejudicar os demais. Esse modo de pensar — em si equivocado, pois o avanço em detrimento dos demais não é sustentável — esteve presente nos anos 1920 e está de volta entre nós em 2020.

Não é uma tendência fácil de reverter, pois a retórica política é poderosa: quem não quer se sobrepor aos demais? Quem não aceita com facilidade a noção de que, se há problemas em determinado país, as causas só podem ser externas? Afinal, culpar os outros por suas deficiências e problemas é algo profundamente humano.

Na área econômica não é necessário ser estatizante para ser nacionalista. Mussolini elegeu-se democraticamente em 1922, com a plataforma: “Nosso sonho é uma Itália romana!”. O saudosismo e a busca pelo renascimento de um passado de glórias é a característica mais forte do nacionalismo. No entanto, entre 1922 e 1925, Mussolini adotou políticas econômicas para liberal nenhum botar defeito. Ajustou as contas públicas, permaneceu comprometido com o livre-comércio, implantou reformas para reduzir o tamanho do Estado e o grau de intervencionismo econômico.

Durante esses três anos, quem quisesse dizer que a Itália era um sucesso apesar do fascismo poderia fazê-lo sem susto. A economia cresceu, o comércio se expandiu, durante algum tempo a inflação ficou sob controle. Mas, nacionalista que é nacionalista não apenas quer se manter no poder — Mussolini largou as pretensões democráticas em 1925 —, como também não resiste à tentação de controlar a economia para seus próprios fins, a Itália romana. A partir de 1926, o regime fascista começou a flertar com o dirigismo estatal, o que se acentuou profundamente após a crise de 1929. Em 1935, todas as esferas da vida econômica eram controladas pelo Estado, inclusive os salários. Para conter a escalada inflacionária, o regime implantou não uma, mas três compressões salariais. Em cada uma delas reduziu os salários nominais entre 10% e 30%.

Não estou dizendo que a Itália dos anos 1920 seja o Brasil dos anos 2020, até porque esse não é um artigo sobre o Brasil. O que quero ressaltar é que, em um mundo em reviravoltas, o impensável pode acontecer. Em um mundo em reviravoltas, até um liberal exemplar é capaz de cortar todas as suas liberdades, a começar pela de ter um salário que garanta sua sobrevivência. Bem-vindos aos anos 20.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

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