Monica de Bolle: Guerreiros de teclado

O resultado é uma arena de cacofonia onde tribos gritam e se esbofeteiam na internet e, de bom mesmo, nada sai.
Foto: Reprodução/Google
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O resultado é uma arena de cacofonia onde tribos gritam e se esbofeteiam na internet e, de bom mesmo, nada sai

“Há algo terrivelmente errado. Os Estados Unidos, hoje, são país obcecado pela adoração de sua própria ignorância. Não se trata do fato de que as pessoas não saibam muito sobre a ciência, a política, a geografia; elas não sabem, mas isso sempre foi assim. (…) O problema maior é que hoje nos orgulhamos de nossa própria ignorância. A ignorância, especialmente em relação a qualquer coisa associada à política pública, é virtude. (…) Tudo é passível de conhecimento, e toda opinião sobre qualquer assunto é tão válida quanto qualquer outra.” O trecho é de “The Death of Expertise”, livro de Tom Nichols publicado pela Oxford University Press esse ano.

Leiam novamente o início da segunda frase. Substituam “os Estados Unidos” por “Brasil”. Soou familiar? Não importa qual seja sua profissão, é provável que, em algum momento, tenha encontrado opiniões disparatadas sobre sua área de conhecimento em alguma mídia social. Talvez você tenha tentado explicar para o indivíduo que expôs opinião equivocada os motivos de seu equívoco. Talvez você tenha se indignado com a possível resposta malcriada que de volta recebeu. Talvez você tenha resolvido não perder seu precioso tempo com a estultice que predomina nas redes, forma menos suave de denominar aquilo que o sociólogo Manuel Castells chamou de “autismo eletrônico”.

Como economista, já observei inúmeras opiniões equivocadas sobre políticas relacionadas à minha área de atuação e conhecimento, opiniões untadas de qualquer matiz ideológico. Há, por exemplo, o batido argumento de que o sistema previdenciário brasileiro é superavitário, e que, portanto, não há necessidade de reforma alguma. Há, também, o argumento de que as desigualdades estonteantes que esgarçam o Brasil seriam resolvidas bastasse que se reduzisse o tamanho do Estado e que se desse maior protagonismo ao indivíduo. Ambas as visões estão erradas, não só em suas premissas, mas em termos da assertividade com que são apregoadas.

Contudo, se a primeira for combatida mostrando que, na ausência de uma reforma da Previdência – e a de Temer deixa muito a desejar – a matemática implacável do envelhecimento populacional brasileiro levará ao caos nos próximos anos, o especialista será desqualificado, acusado de não conhecer a Constituição, não saber fazer conta, ou de ser “de direita”, logo descartável. Caso trate-se da segunda opinião, a tentativa de explicar ao interlocutor que a velha ideia de Estado mínimo jamais funcionaria em um País onde a desigualdade fundamental é de acesso às oportunidades – sobretudo ao ensino de qualidade, mas também à saúde, à segurança, ao saneamento básico, e por aí vai – as chances de que o especialista seja desconstruído com argumentos que variam de um longo discurso sobre as vicissitudes do Estado brasileiro até a denominação de “esquerdopata” são imensas.

O resultado é uma arena de cacofonia onde tribos gritam e se esbofeteiam no Facebook, no Twitter, e, de bom mesmo, nada sai. O que sai é a raiva, a indignação, a necessidade de preservar a visão de mundo errada para não ser expulso do grupo ao qual pertence o sujeito nas anarquias virtuais. Há três semanas, a matéria de capa da revista The Economist cavucou essa ferida. O fato de estarem as pessoas sugadas por suas “linhas de tempo”, seus “news feeds”, absortas em seus teclados, faz com que sejam facilmente sorvidas por sentimentos negativos. O discurso de intolerância é, assim, explorado com enorme facilidade por políticos que se alimentam desse ambiente de conspirações e desilusões. Não é preciso citá-los – sabemos, no Brasil quem eles são. Eles, no plural.

Eventualmente, haverá adaptação. O apelo das redes e das emoções que destilam desgaste há de diminuir. Até lá, entretanto, más políticas endossadas por maus governantes e políticos poderão resultar das brigas incessantes no mundo virtual, e do nefasto pouco caso que se faz dos especialistas. Já ouviram falar da Lei de Pommer? Diz ela que: “A opinião de uma pessoa pode mudar ao ler alguma informação na internet. A natureza dessa mudança será a de não ter opinião alguma para ter a opinião errada”. Opiniões erradas não costumam dar bom resultado nas urnas.

Esse é o risco que corre o Brasil em 2018 com seus guerreiros de teclado.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

 

 

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