Monica de Bolle: Economia e saúde jamais foram separáveis

O país inteiro asfixia não apenas por ter ignorado aquele que seria o seu destino ante o descaso, mas porque continua preso na armadilha de que a economia importa mais do que as vidas que a sustentam.
Foto: Uesley Marcelino/Reuters/El País
Foto: Uesley Marcelino/Reuters/El País

O país inteiro asfixia não apenas por ter ignorado aquele que seria o seu destino ante o descaso, mas porque continua preso na armadilha de que a economia importa mais do que as vidas que a sustentam

A frase que intitula esse artigo está sendo dita e repetida por mim e muitas outras pessoas há mais de um ano. A insistência nunca foi por pura teimosia, menos ainda por pessimismo exagerado como muitos acreditaram no início da pandemia. A insistência, ao contrário, sempre veio do entendimento de que caso tratássemos a economia como soberana ao vírus entraríamos em colapso. Já não tenho noção de quantas vezes disse e escrevi que o colapso do sistema de saúde levaria, inevitavelmente, ao colapso econômico. Afinal, quando o sistema de saúde colapsa no país inteiro não são apenas os pacientes de covid-19 que morrem desnecessariamente ou que sofrem e agonizam. São também todos aqueles que precisam de atendimento hospitalar: do enfarte a uma perna quebrada, de uma crise de asma a um tornozelo torcido. Pensei na apendicite.

A apendicite é uma inflamação no apêndice, órgão que perdeu a funcionalidade no nosso intestino mas que lá reside. A apendicite acomete qualquer pessoa, em qualquer idade, com qualquer condição de saúde. Seja um adolescente saudável ou uma senhora de 80 anos com doença pulmonar obstrutiva, a apendicite pode, de uma hora para a outra, levá-los à emergência. Esse quadro inflamatório agudo, caso não mereça atenção imediata, pode supurar, levando as bactérias responsáveis pela inflamação à circulação. Quando isso ocorre, a pessoa acometida tem sepse e pode acabar morrendo. Hoje, uma pessoa com apendicite em qualquer canto do país tem de contar com muita sorte para ser atendida, ou mesmo contar terrivelmente com a morte de outra para que possa ter um leito de hospital. Hoje no Brasil, ter apendicite é uma quase sentença de morte. É isso que significa o colapso dos sistemas de saúde público e suplementar em todos os Estados. Para que fique claro, a saúde complementar é o sistema hospitalar privado. Portanto, não adianta ter dinheiro caso você tenha apendicite pois já não há hospital para atendê-lo.

Como chegamos a esse ponto? Alguns dizem que foram as festas de fim de ano, outros apontam o Carnaval e outros ainda culpam as pessoas que não usam máscaras e não respeitam as regras de distanciamento social. É claro que todos esses fatores contribuíram de alguma forma para o colapso, mas na realidade ele já estava contratado. Ele foi contratado no momento em que aceitamos a falsa dicotomia entre saúde e economia e jamais tratamos de abandoná-la.

Algo semelhante ocorreu aqui nos EUA, onde moro. Por muito tempo —tempo pandêmico, logo denso— a necessidade de limitar a circulação de pessoas para frear as cadeias de transmissão do vírus foi negada. O uso de máscaras se tornou objeto de embates políticos, as medidas de distanciamento social foram rechaçadas por uma parte da população, incitada pelo então presidente Donald Trump. Houve descontrole da pandemia e mais de meio milhão de pessoas morreram. Muitas das que sobreviveram e se “recuperaram” hoje vivem o calvário da covid-19 crônica, isto é, da convivência com sintomas debilitantes que jamais desapareceram ainda que tenham se livrado do vírus. Apesar dos números pavorosos da epidemia nos Estados Unidos durante a Administração Trump, planos de vacinação foram preparados, financiamentos para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos foram concedidos pelo governo. Além disso, os Estados Unidos jamais enfrentaram a situação que vive hoje o Brasil. Estados colapsaram, sim. Contudo, havia recursos em outros Estados que podiam ser deslocados para os mais necessitados. Profissionais de saúde viajaram de uma parte do país a outra, ventiladores mecânicos foram emprestados, equipamentos hospitalares em geral foram compartilhados. Dessa forma, cenas como as de Manaus, de pessoas morrendo por falta de oxigênio, de pessoas intubadas sem sedativos nos corredores dos hospitais, foram evitadas.

Entendam: hoje não há recursos hospitalares em qualquer parte do país que possam ser compartilhados. Quando todos os Estados colapsam simultaneamente, foi-se a capacidade de uns ajudarem os outros. O país inteiro asfixia não apenas por ter ignorado aquele que seria o seu destino ante o descaso, ou mesmo a política intencional de deixar morrer do Governo Bolsonaro, mas porque continua preso na armadilha de que a economia importa mais do que as vidas que a sustentam. Não fosse assim, teríamos medidas de lockdown —não as medidas disfarçadas de lockdown que fizemos em 2020, mas as de verdade— no país inteiro. Essas medidas estariam sendo defendidas por todos: governadores, prefeitos, pela população.

E o que são, realmente, essas medidas? Em poucas palavras, o fechamento do país. Todos os serviços e estabelecimentos não essenciais precisam fechar. A circulação de pessoas precisa ser severamente limitada. O uso de máscaras tem de ser obrigatório, e penalidades para quem infringir essas ordens devem ser postas em prática. Vários países fizeram isso, e não só as economias mais avançadas. Países como a Índia adotaram multas severas para quem não utilizasse máscaras em locais públicos, outros fizeram o mesmo. Afetado hoje, inclusive, por variantes mais agressivas do vírus —mais transmissíveis ou até mais letais, duas delas surgidas no Brasil— o país não tem tempo a perder. Mas perde tempo.

O Brasil perde tempo com a discussão sobre o lockdown e perde tempo ao propor um auxílio emergencial completamente inadequado. Não é possível fechar o país sem o auxílio emergencial. O auxílio não é apenas uma medida econômica, mas uma medida de saúde pública. No entanto, o Governo brasileiro deixou o auxílio acabar quando já estava claro que a pandemia iria piorar e hoje oferece de 150 a 375 reais mensais para as famílias de baixa renda e para a população vulnerável. O custo médio da cesta básica no Brasil —e a cesta básica contém realmente isso, o básico do básico —é de mais de 500 reais. Como que as pessoas que precisam ter meios para sobreviver sem ir aos seus locais de trabalho serão capazes de se alimentar com menos da metade do valor da cesta básica? O auxílio proposto é de baixo valor para preservar as contas públicas brasileiras, assim nos dizem. Pergunto-me desde quando as contas públicas brasileiras passaram a ser mais importantes do que a maior crise sanitária já vista no país segundo a Fundação Oswaldo Cruz.

Encerro respondendo a minha própria pergunta: as contas públicas são soberanas porque nós teimamos em separar a economia e a saúde. Esse é o caminho do colapso e é nele que nos encontramos.

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