Míriam Leitão: Visão de quem já liderou o PNI

Há um risco de que as pessoas se vacinem e não voltem para a segunda dose, tomem várias vacinas ou tomem vacinas diferentes. Nunca foi feita uma imunização em duas etapas.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Há um risco de que as pessoas se vacinem e não voltem para a segunda dose, tomem várias vacinas ou tomem vacinas diferentes. Nunca foi feita uma imunização em duas etapas. Quem aponta esses riscos é a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Carla Magda Domingues. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, deu ontem mais uma das suas respostas inaceitáveis. “Vai ser no dia D, na hora H”. Como sempre ele zomba da natural ansiedade do país.

O PNI sempre foi reconhecido pela excelência e capacidade aqui e no mundo, mas o governo Bolsonaro criou o Plano Nacional da Vacinação contra a Covid, um braço dentro do PNI. E o que está sendo divulgado até agora é insuficiente para entender o que o governo pretende, e como evitar os riscos, na opinião da Carla Magda, que teve a responsabilidade de comandar o Programa:

— O que temos hoje do plano é uma definição de vacinação dos primeiros grupos, os prioritários, mas acho que a gente para por aí. Não temos um detalhamento claro de como vai ser feita a vacinação e esta é uma realidade nova, nunca fizemos campanhas em massa de duas doses.

Ontem, Pazuello disse que na vacina da AstraZeneca, que será produzida pela Fiocruz, o governo está pensando num espaçamento maior. Isso é sustentado em estudos clínicos, me disse na semana passada a Fiocruz. De qualquer maneira, será necessária a segunda dose. A ex-coordenadora do PNI alerta que as duas doses tornam o programa mais complexo:

—Como convocar as pessoas duas vezes? O meu medo é de que elas vacinem e não voltem, que tomem vacinas diferentes. Na febre amarela, teve gente que tomou quatro vezes. Os supervacinadores vão querer tomar muitas. E elas não são intercambiáveis. Se toma uma, tem que seguir com o mesmo laboratório.

Ela diz que tem que ser montado um sistema nominal, porque diante da diversidade de vacinas de laboratórios e tecnologias diferentes, o que é uma novidade, a complexidade do programa aumenta muito.

— Vamos ter que pegar nome, CPF, endereço para fazer o registro nominal. Imagina fazer isso para 100 milhões ou mais. A ideia de fazer o sistema nominal está lá, mas é ainda intenção, muito incipiente. Já foi colocado que vai ter sistema de informação, o Conecta SUS, mas isso já deveria estar na rua, com campanhas de publicidade. Quanto tempo ficou rodando a campanha para o título eleitoral eletrônico? Pelo menos quatro meses. E deu problemas — diz.

Domingues acha que nenhuma agência vai autorizar vacina em quem tem menos de 20 anos porque não houve testes clínicos nessa faixa etária. E que não é necessário imunizar toda a população. Os adultos são 150 milhões, mas ela acha que basta ter como alvo 100 milhões. Na vacina de H1N1 foram 90 milhões imunizados.

Uma grande preocupação da especialista são as fakenews. Em qualquer população ocorrem eventos adversos como infarto fulminante, morte súbita, câncer, mortes sem qualquer nexo causal com a vacina:

— Já há notícia falsa circulando de que vai alterar o sistema imunológico das pessoas. Será preciso montar um sistema de vigilância rápido para investigar os casos, a população vai achar que a vacina está matando gente. O plano diz que isso precisa ser feito, mas não mostra como vai ser feito. Se eu tomar a vacina e passar mal, para onde ligo? Quem vai investigar? Isso não se sabe.

O Ministério terá que avisar que todos terão que continuar a usar máscara por pelo menos todo o ano de 2021, afirma ela. Porque uma parte estará vacinada, mas outra não, e nem todos terão a resposta imune. Se nem agora o Ministério faz isso, imagine depois de começar a vacinar.

Carla está preocupada também com as outras doenças que precisam de imunização, e a afirmação do presidente Bolsonaro de que vai esperar preço de seringa cair. Ou seja, não comprou quando deveria e agora posterga. Ela conta que existem 5 milhões de profissionais de saúde, que serão imunizados com o produto importado. Acha que depois deveriam ser os professores.

— As crianças precisam voltar para a escola. O risco é muito grande de ficarem sem aula. Depois da saúde é o professor, sem dúvida. Na minha época, era feita a decisão técnica e ninguém nunca se meteu. Agora já houve três interferências do governo — diz.

Com a responsabilidade de quem já comandou o programa, ela lamenta a politização da vacina.

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