Míriam Leitão: Todas as forças

A crise da segurança pública é tão ampla, tão profunda e perigosa que as autoridades precisam abandonar as partições com que veem suas responsabilidades. Os estados pedem a presença das Forças Armadas, que acham que não é sua função. A União diz que está apenas auxiliando, porque é atribuição constitucional dos estados. Há uma emergência e as disputas de jurisdição aumentam o risco de todos.
Foto: Vladimir Platonow/Agencia Barsil
Foto: Vladimir Platonow/Agencia Barsil

A crise da segurança pública é tão ampla, tão profunda e perigosa que as autoridades precisam abandonar as partições com que veem suas responsabilidades. Os estados pedem a presença das Forças Armadas, que acham que não é sua função. A União diz que está apenas auxiliando, porque é atribuição constitucional dos estados. Há uma emergência e as disputas de jurisdição aumentam o risco de todos.

Existem brigas e rixas entre polícias e desentendimento entre instâncias administrativas sobre de quem é a responsabilidade em cada evento. As Forças Armadas dizem que não foram preparadas para a atuação dentro das cidades, mas sim para defender a integridade nacional e temem que a presença prolongada no combate aos narcotraficantes contamine a tropa. Os estados, muitas vezes, convocam as Forças Armadas porque querem reduzir os custos, aliviar suas responsabilidades e, na visão federal, estão banalizando esse ato. A Força Nacional virou uma forma de melhorar salários dos policiais e os estados se queixam de que custa caro.

Há, claro, diferentes competências, mas as forças do Estado brasileiro precisam estar unidas, porque o crime criou coalizões. Ninguém sabe hoje a separação entre tráfico de drogas e tráfico de armas. O narcotráfico é o grande cliente das armas ilegais que entram através de fronteiras que estão sob a supervisão das três forças. As facções de criminosos atravessaram divisas estaduais e se tornaram grupos interestaduais, portanto o que antes era enfrentado apenas dentro das unidades federadas passou a ser crime federal, no combate ao qual tem que estar a Polícia Federal também. As drogas e as armas entram pela terra, pelo mar, ou pelo ar, atravessam estradas e rios, cruzam fronteiras estaduais, chegam nas grandes cidades e alimentam o poder de grupos que tiram a soberania do Estado Nacional sobre partes do nosso território urbano. Quem deve nos proteger nessa disseminação do crime? Todas as forças. O cidadão quando paga seus impostos não escolhe a quem destinar o fruto do seu trabalho, se a essa repartição ou àquela.

A crise da segurança pública não é mais algo localizado, virou uma epidemia. Não é um problema segmentado, mas um risco generalizado. A violência está em níveis intoleráveis e números eloquentes mostram isso. O assassinato de jovens atingiu dimensão de país em guerra e não há nada mais ameaçador para uma nação do que a morte da juventude. A educação é atingida por diversas formas, a começar da impossibilidade de as escolas funcionarem em muitos dias, em muitas áreas das grandes cidades. O que os governos gastam para acudir os atingidos pela tragédia da segurança é muito mais do que gastariam se investissem na prevenção, com visão estratégica e a consciência de que esse é um problema de todos os que nos governam.

A Constituição, que dá essa atribuição aos estados, não pode ser biombo para que forças federais se escusem ou que se apresentem como auxiliares voluntários no combate ao crime. A presença do governo federal não pode ser entendida pelos estados como uma terceirização da responsabilidade. É de todas as forças que o Brasil precisa porque o inimigo é grande e ameaça não uma cidade, mas a Nação. As realidades locais são parte de um mesmo mosaico trágico.

Pela sua geografia urbana, o Rio dá ao morador a noção exata de como somos todos alvos da mesma guerra. De várias partes da cidade, é possível ouvir os tiros ecoando nas áreas pobres, onde grupos de criminosos disputam o controle territorial. Os moradores das favelas são avisados com antecedência sobre o momento em que haverá o choque entre os grupos de bandidos. No Rio, não há como não ver e ouvir, não é possível segregar a tragédia como se ela pertencesse a um grupo social. No Rio, desmascara-se a hipocrisia da sociedade desigual que fecha em redomas blindadas os mais ricos e expõe os pobres. A cidade tem que ser vista, não como um caso destoante, mas como o alerta do risco extremo que todos corremos. Há questões e momentos em que é preciso ter noção lúcida da dimensão da ameaça e, desta forma, construir a união entre as forças do Estado. Este é o caso da segurança pública.

 

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