Michel França: Pobreza estrutural

Intervenções voltadas à primeira infância ajudam a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Existe vasta literatura voltada para compreender os mecanismos que retroalimentam a pobreza. Com o intuito de enfrentar esse desafio, diversas iniciativas e políticas públicas têm sido propostas e adotadas. Na economia, epidemiologia e psicologia têm ampliado a discussão em torno dos potenciais efeitos positivos de investimentos na primeira infância e na juventude.

Durante esse período da vida, são aprendidas habilidades que influenciam os resultados alcançados na idade adulta. Considerando o contexto americano, estudos empíricos mostraram que o ambiente em que crianças e jovens estão inseridos consegue explicar uma parcela significativa das condições de saúde, desempenho educacional, engajamentos sociais e envolvimento futuro em atividades criminais.

Além do impacto social, também existem desdobramentos econômicos relevantes. Estima-se que cerca de 50% da variabilidade dos ganhos ao longo da vida entre as pessoas poderia ser explicada pelas habilidades desenvolvidas até os 18 anos de idade (“The economics of human development and social mobility”, 2014).

No entanto, construir essas habilidades não é algo trivial. Requer considerável esforço e políticas públicas bem orientadas. Existem inúmeros fatores que atuam conjuntamente no processo de formação de uma pessoa.

Um deles é a influência da família. Sabe-se que há uma expressiva correlação entre a renda domiciliar e o desempenho de um indivíduo. Isso ocorre porque a renda está associada a várias características que influenciam diretamente o progresso individual.

A literatura mostra, por exemplo, que crianças que vivem em ambientes desfavorecidos vão entrar em contato com um vocabulário significativamente menor, e isso leva a pior rendimento escolar.

Os pais, que podem ser considerados os primeiros professores de um indivíduo, costumam apresentar baixo conhecimento formal para transmitir a seus descendentes. Além disso, famílias carentes tendem a encorajar menos as crianças no seu processo de aprendizagem.

Possivelmente, o círculo de amizades dessas crianças será formado por pessoas que apresentam baixo nível educacional. Desse modo, o potencial aprendizado derivado das interações humanas também fica comprometido.

Isso tende a fazer com que transferências irrestritas de renda apresentem fraco efeito no processo de desenvolvimento das habilidades de um indivíduo. Deve-se pontuar que as políticas de transferências de renda desempenham um importante papel na suavização das restrições derivadas da pobreza. Entretanto, também é necessário realizar intervenções que ajudem a corrigir outras distorções sociais geradas pelos locais de nascimento.

Nesse cenário, estudos empíricos têm encontrado evidências de que intervenções voltadas para a primeira infância e juventude apresentam significativo potencial de ajudar a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza.

No caso dos Estados Unidos, iniciativas bem-sucedidas conseguiram impactar positivamente o desenvolvimento cognitivo de crianças e melhoraram as capacidades não cognitivas de adolescentes.

Simples programas de mentoria, por exemplo, têm significativo potencial de fornecer informações valiosas para os jovens desfavorecidos, ajudando, assim, a fazer melhores escolhas.

Sem uma intervenção profunda e organizada do Estado, é difícil imaginar que conseguiremos vencer a pobreza estrutural, pois existem muitos canais pelos quais o status socioeconômico se reproduz entre as gerações.

O texto é uma homenagem à música “Não é Sério”, interpretada por Charlie Brown Jr. e Negra Li.

*Michael França é doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/michael-franca/2021/05/pobreza-estrutural.shtml

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