Mércio Gomes: Paidea – ou como ensinar moral e ética

O primeiro capítulo do meu livro O BRASIL INEVITÁVEL trata da moral e ética no Brasil. A pergunta que não pode calar é: Há moral e ética no Brasil? Quem detém esses atributos? Que raiz de moral nós temos? Ou somos um povo completamente sem moral, antiético?
Foto: Reprodução/Google
Foto: Reprodução/Google

O primeiro capítulo do meu livro O BRASIL INEVITÁVEL trata da moral e ética no Brasil. A pergunta que não pode calar é: Há moral e ética no Brasil? Quem detém esses atributos? Que raiz de moral nós temos? Ou somos um povo completamente sem moral, antiético?

Minha visão é que há moral no Brasil, sim, há ética – e faço a diferença entre esses dois conceitos. Mas é preciso saber como funciona, como poderá funcionar melhor, como não nos iludirmos sobre as “pegadinhas” antiéticas em nossas vidas.

O texto abaixo trata da Paideia, que é um conceito grego sobre a formação moral da criança pela educação e pela cultura. Vale a pena ler.

_________________________________________

Paideia

O sentido de aprender normas e regras de comportamento nos é dado desde a pequena infância de modo consciente, porém casual, pela palavra e pelo comportamento. Muito mais do que pela palavra, o ensino é passado, quase sempre, pela convivência cotidiana, sem que nem os adultos nem as crianças se deem conta de que estejam se realizando ensino e aprendizado. Assim, a criança aprende a se comportar ao modo de seus pais e irmãos, parentes, amigos, vizinhos, professores, colegas e, mais recentemente, pela influência da mídia (TV, internet, redes sociais etc.). Espera-se que ela siga os ensinamentos conscientes e se aperceba inconscientemente do que é aceito e não aceito no comportamento corriqueiro daquela cultura. Nada mais irritante para o adulto responsável do que ver a criança se comportando fora do padrão, mesmo que isso não tenha sido conscientemente ensinado. Mais do que por mimese, por imitação, aprende-se efetivamente por uma espécie de osmose, por um processo inconsciente de conformação comportamental. Osmose aqui é uma metáfora para algo como a pedagogia proxêmica ou de linguagem corporal, isto é, um ensinamento por gestos e atitudes corporais que se fazem significativos pelas distâncias interpostas, ou então, por palavras que, antes de terem significados, funcionam como signos (que evocam uma variedade de significados), enfim, ensinamentos que são incorporados sem que a pessoa, a criança, se dê conta de que está aprendendo alguma coisa.

Seguir as normas e os costumes de sua cultura parece ser o comportamento mais “natural”, sendo que a palavra dita, a “lição de moral” só deve ser usada preferencialmente para ensina aquilo que precisa de mais explicações, como é o caso do comportamento em público. Os pais presumem que ao ensinar conscientemente alguma coisa a seus filhos, eles aprenderão por consciência e cumprirão o ensinamento, por amor ou temor, se forem crianças genuinamente corretas, de bom coração e de boa mente. Mal sabem eles – ou sabem e apenas não querem se lembrar, em um claro processo daquilo que os biólogos evolucionistas chamam de autoengano –, que qualquer criança, desde a mais tenra idade, engana por fingimento, por estratégia, por tática, engana sem saber que está enganando, movida por um dispositivo inconsciente de autodefesa que ela jamais saberá de onde vem e para que serve. E os pais sabem e se deixam enganar, porque sentem que há algo nas crianças que não saberão jamais como controlar. Deixam-se enganar também, positivamente, por acharem que a criança, ao tentar enganar, está assim demonstrando que é inteligente e sagaz e que saberá se defender no futuro diante das adversidades ou das armadilhas impostas pela vida. Os pais estão cientes de que os filhos enganam, o que significa, estritamente, que estão sendo “desonestos” em relação a algum ensinamento recebido. Só esperam que o façam de um tal modo que lhes permita achar que são atos de uma estratégia inteligente de defesa ou de ataque, para o seu bem, e que, acima de tudo, não venha a ser verbalizada para que não se transforme em uma mentira. A mentira é o engano verbalizado ao quadrado, impossível de ser remediado, jamais esquecido. O menino mentiroso torna-se estigmatizado. Assim, ele precisa saber que só pode mentir um pouco e que pode enganar mais à vontade.

E aí, onde fica o ensino da honestidade, da moral e da ética? Nossa moral é hipócrita?

Nos países onde prevalece a honestidade nas esferas doméstica e pública, desde a infância, as crianças enganam em menor intensidade e frequência, porque aquele comportamento, que precisa ser disfarçado por um engano ou por uma mentira, não foge muito da norma aceitável. Isto se dá porque existe na sociedade ou um nível razoável de equidade social ou um nível de harmonia (ou ao menos equilíbrio) cultural. A criança é gratificada pelo seu bom comportamento, dentro de uma média de comportamentos infantis, e admoestada por seus deslizes, em uma média de deslizes toleráveis. Assim, os deslizes infantis parecem ser de pouca monta e, em geral, não precisam de artimanhas para disfarçar.

Os países ocidentais com boa equanimidade social são os mais estáveis culturalmente e, portanto, parecem ser os mais “éticos” na atualidade, como os países escandinavos, Holanda, Suíça etc. Os países culturalmente harmônicos são aqueles de pouca diferenciação étnica ou social, como o Japão e a China, ou com longa tradição de aceitação da iniquidade social, via religião, como a Índia. Esses países nivelam uma base de compreensão do comportamento de tal sorte que partem de um bom patamar de honestidade, antes de avaliar aquilo que pode ser engano, mentira e desonestidade.

Já o Brasil não se caracteriza nem por um lado nem por outro, muito pelo contrário. A nossa desigualdade social é intensa e abrangente: os conflitos entre classes, subclasses e, sobretudo, entre os dois estamentos sociais que estão acima das classes sociais e modulam o seu comportamento moral fazem parte de nossa cultura. Daí as nossas discrepâncias no comportamento. Em outras palavras, o nosso nível de desigualdade social já nos predispõe a um baixo nível de moralidade. Por isso mesmo, muitos consideram que qualquer esforço jurídico de coibir a falta de moralidade está destinado ao fracasso. Partimos de um patamar de aceitação comportamental desviante muito alto; nossos conflitos de comportamento surgem muito cedo, desde a infância, e assim nos prejudicam sobremodo. Para melhor esclarecer como a ética é ensinada ou absorvida em nosso modo de enculturamento ou paideia, vejamos agora três exemplos reais que podem ser considerados como representativos de modos comportamentais da paideia brasileira.

Privacy Preference Center