Marina Silva: A bem da verdade

Muito me espantou o artigo (“Déjà-vu”) publicado nesta Folha, do professor Sandro de Souza, mencionando uma suposta defesa minha do criacionismo em substituição à teoria da evolução, repetindo uma inverdade que ele mesmo plantou em outro artigo há mais de uma década (fake news não são um fenômeno tão recente).
Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil

Rotulações caluniosas alimentam a intolerância

Muito me espantou o artigo (“Déjà-vu”) publicado nesta Folha, do professor Sandro de Souza, mencionando uma suposta defesa minha do criacionismo em substituição à teoria da evolução, repetindo uma inverdade que ele mesmo plantou em outro artigo há mais de uma década (fake news não são um fenômeno tão recente).

Em tempos em que o culto ao obscurantismo ascende ao poder, torna-se imperativo um debate sem rotulações e ancorado em investigações isentas, ou seja, um debate verdadeiramente científico. Rotulações caluniosas são a base da indústria da intolerância, que hoje polui o ambiente da democracia e só serve àqueles que buscam “construir por oposição” —no dizer popular, só se levantam derrubando o outro.

Atualmente, em todo o mundo, mais de 3 bilhões de pessoas têm a fé e a crença na transcendência como um componente essencial de suas vidas. São expressões diversas das formas de ser e estar no mundo que têm atravessado a história da espécie humana e que, certamente, merecem respeito.

A fé, a arte e a filosofia antecipam ideias que a ciência explora com seu rigor metodológico e, ainda que sejam de natureza completamente distintas, como disse Jean Ansaldi (2003), “podem se estimular mutuamente, se interpelar, se convidar a ir mais adiante e mais fundo nas suas respectivas direções”.

A fé não se submete à ciência, nem esta àquela. Há uma colaboração entre as diferentes áreas do pensamento humano na construção dos saberes. A história mostra como esses processos criativos e sinérgicos resultam em maior riqueza da atividade intelectual. Não vejo isso apenas nos livros, mas na minha vida: sou uma pessoa de fé e de ciência.

Sempre pautei minha atuação pública, como parlamentar, ministra ou ativista, valorizando o saber científico e em permanente contato com as instituições acadêmicas e a comunidade científica, sem deixar de valorizar o diálogo respeitoso entre os saberes. Não há em minha trajetória qualquer marca de instrumentalização das atribuições públicas para fins religiosos. Infelizmente, não é a primeira vez que alguém tece inverdades sobre minhas falas públicas —quando deveria ser fiel ao fato, como a ciência ensina.

Mais uma vez, vou repetir: o que defendi, de verdade, foi que nas escolas declaradamente confessionais, que transmitem os conteúdos do criacionismo, se ensinasse também o evolucionismo. Essa é a minha visão: a educação, em escola laica ou religiosa, deve se dar em ambiente de liberdade, promovendo o desenvolvimento de todos os potenciais da inteligência de um ser humano e respeitando suas características pessoais, sociais e culturais.

Não por acaso, foi o apóstolo Paulo, profundo estudioso das diferentes formas de conhecimentos disponíveis em seu tempo, que nos estimulou a “olhar de tudo e reter o bem”. E o bem, tanto na ciência como na fé, é a verdade não apenas como resultado mas como meio de busca e procura. Quem quiser discordar do que eu digo tem o meu total respeito, mas, por favor, faça-o sem distorcer a realidade.

* Marina Silva é ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008, gestão Lula), ex-senadora (1995-2011) e candidata à Presidência da República pela Rede em 2018, pelo PSB em 2014 e pelo PV em 2010

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