Maria Cristina Fernandes: Um laboratório de Brasil

Penúria fiscal vira semente do pragmatismo político.
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Penúria fiscal vira semente do pragmatismo político

Presidente do terceiro maior sindicato do país, o dos professores do Rio Grande do Sul, Helenir Schürer, não mudou suas convicções contrárias ao pacote de reformas aprovado pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), em tempo recorde, durante convocação extraordinária da Assembleia Legislativa. O pacote, no entanto, forçou o sindicato a negociar com o MDB uma emenda para mitigar perdas no plano de carreiras da categoria, modificado substancialmente pela primeira vez desde sua adoção durante a ditadura militar – “A estratégia foi a de reduzir danos. Fizemos o que foi possível ante um governo que tem 40 das 55 cadeiras da Assembleia”.

O desfecho é prenhe de sinais sobre as mudanças em curso no país. O PT chegou ao Palácio do Piratini quatro anos antes de tomar posse do Planalto e também foi de lá desalojado antes de o impeachment varrê-lo da capital federal. A bancarrota fiscal dos pampas teve início nos anos 1990 e atravessou governos do MDB, PT e PSDB sem que nenhum deles tenha sido capaz de estancar a sangria.

O buraco com o qual o atual governador assumiu o Estado só perde para o do Rio de sucessivas pilhagens. A penúria foi a semente do pragmatismo. Há cinco anos os servidores têm recebido salário parcelado até o último dia do mês seguinte. Depois de um 2019 de longas greves, o governador emplacou um pacote que extingue gratificações e promoções por tempo de serviço, prevê perda de cargo por avaliação periódica de desempenho e antecipa medida que está na PEC Emergencial no Congresso Nacional e permite ao servidor pedir redução de jornada – e de salário – de até 25%.

Líder do governo anterior, derrotado por Leite, o deputado Gabriel Souza (MDB) percebeu a brecha e negociou uma emenda com Helenir que amenizou a proposta e permitiu algum aumento salarial este ano. A esquerda se dividiu na votação. O PDT votou a favor, mas o PT (partido ao qual a presidente do sindicato é filiada) votou contra, bem como o PSOL.

O governador ainda conseguiu tirar da Constituição estadual o dispositivo que obriga a realização de plebiscito para a privatização de estatais sem que uma única bomba de gás lacrimogênio fosse lançada sobre a Praça Marechal Deodoro, que divide a Assembleia e a sede do governo.

A façanha, no entanto, não autoriza a suposição de que a política hoje se move por uma nova mentalidade em curso entre brasileiros dispostos a aceitar todos os sacrifícios para sair do buraco. Uma semana depois, o prefeito de Porto Alegre, o também tucano Nelson Marchezan Jr, perdeu de forma acachapante a votação de um arrojado projeto de mobilidade urbana na Câmara dos Vereadores.

A proposta amplia a participação dos mais ricos no subsídio ao transporte público. Substitui o vale por uma taxa a ser paga por todos os trabalhadores e não apenas por aqueles que dele se beneficiam.

Além disso, institui uma taxa sobre viagens por aplicativo, estabelece um pedágio urbano para carros de fora da cidade, e promove uma retirada gradual dos cobradores dos ônibus que circulam de madrugada, além de não repor os aposentados. Com isso, a municipalidade poderia conceder tarifa zero para trabalhadores com carteira assinada, tarifa social de menos de R$ 2 para os demais e de simbólico R$ 1 para estudantes.

A primeira fatia que foi a voto, a dos cobradores de ônibus, foi rejeitada por 23 votos a nove sob o pretexto de que causaria desemprego. O prefeito, que vive às turras com seu próprio vice, já havia sido derrotado em sua tentativa de aprovar um IPTU progressivo e, desta vez, não conseguiu apoio nem mesmo na sua base parlamentar. Colaborou para sua derrota não apenas o clima mais radicalizado na política municipal por conta das eleições de outubro como também a falta de diálogo de Marchezan com os vereadores.

O feito do Piratini terá repercussão não apenas dentro do partido do governador mas para a esquerda e para o governo Jair Bolsonaro. O arrojo e a capacidade de negociação de Leite já fazem sombra sobre seu colega paulista, João Doria, quadro incapaz de arrebanhar os votos até mesmo dos seus correligionários paulistas nas votações internas da legenda, como aquela que tentou impor punições às estripulias do deputado Aécio Neves.

A aprovação do pacote tampouco lustra a imagem petista, que jogou no colo do MDB a interlocução com o maior sindicato de sua base política e ainda votou contra a emenda negociada por sua presidente.

E, finalmente, a façanha farroupilha não traz conforto ao presidente Jair Bolsonaro por mostrar a viabilidade, na região que mais aprova seu governo, de gestões liberal-conservadoras que não endossam a porção aloprada do bolsonarismo. Leite declarou voto no presidente da República no segundo turno, mas diverge de temas caros ao bolsonarismo como a redução da maioridade penal e deseducação sexual nas escolas.

O governador gaúcho enfrenta o funcionalismo de maneira mais desabrida que Bolsonaro. O presidente da República fez minguar a menção à reforma administrativa na mensagem presidencial enviada ao Congresso esta semana. E o faz, em grande parte, pela bolha das redes sociais fora da qual parece se sentir inseguro. Aferição da Bites constata que, nos últimos 12 meses, o Google registrou 8,2 milhões de buscas para a expressão ‘concurso público’, principalmente nos Estados do Norte e Nordeste. A página Concursos Brasil, com notícias de aberturas de vagas no país, tem uma audiência mensal de 6,3 milhões de visitas.

Eduardo Leite tem apenas 34 anos, vem de um Estado limítrofe do país e ainda tem uma estrada longa e esburacada pela frente. Já foi capaz, no entanto, de mostrar que há vida na política e não apenas nos auditórios de TV e das redes sociais. É da política que terá que se valer se quiser resolver a maior pendência do seu pacote legislativo, a elevação da alíquota previdenciária para os brigadianos, nome que os gaúchos dão para os integrantes de sua polícia militar. Depois do que foi capaz de aprovar, se recuar ante a farda terá que se ver com a acusação de que fala grosso com os professores e fino com os policiais militares.

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