Maria Cristina Fernandes: Mourão rima, mas não é a solução

Sem interlocução com partidos, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, vice se coloca, com seus ataques, para fora do tabuleiro.
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Sem interlocução com partidos, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, vice se coloca, com seus ataques, para fora do tabuleiro

O vice-presidente da República deu início ao mandato do presidente Jair Bolsonaro como alvo número 1 do gabinete do ódio. Identificado como pretendente ao cargo, passou a ser tratado pelos filhos do presidente e seus acólitos como traidor em potencial e inimigo a ser abatido em todas as suas movimentações.

Hamilton Mourão nem parecia o general insubordinado que, mesmo punido, continuou a desobedecer o estatuto dos militares. Cultivou relações com empresários, partidos e até sindicatos, como a face civilizada de um governo cujo titular sempre demonstrou desapreço pela liturgia e pela missão constitucional da qual foi investido pelo eleitor. Acossado, se retraiu.

A bordo de um avião da FAB, passou a percorrer o país em palestras nas associações comerciais do interior para manter os motores em funcionamento sem o escrutínio da imprensa ou do gabinete do ódio.

Voltou à cena, primeiro com o artigo em que se apresentava como um vendedor de seguro para o titular. Mirou nos governadores e acertou todas as instituições. Um velho quatro estrelas diria a um ministro do Supremo: se parece difícil lidar com um capitão desabalado é porque ele ainda não topou com o general que o secunda.

Em novo artigo em “O Estado de S. Paulo”, o vice dobrou a aposta, desta vez, contra os manifestantes que foram às ruas no domingo e voltarão no próximo. A estes, que portavam faixas em defesa da democracia, denominou-os de baderneiros, extremistas, depredadores e criminosos. Voltou-se até contra “um ministro do STF”, que começa com Celso e termina com Mello, como “intelectualmente desonesto”.

Àqueles que ocupam a Praça dos Três Poderes nos fins de semana conclamando intervenção militar, agredindo enfermeiros em atos de solidariedade a colegas mortos e brandindo símbolos do ódio supremacista americano contra o Supremo Tribunal Federal, o vice limitou-se a denominar de portadores de “exagero retórico”.

Mourão se coloca como porta-voz não autorizado das Forças Armadas ao defendê-las da partidarização, mas acaba por atiçar os fantasmas da intervenção com a carta da baderna. Ao fazê-lo, distancia-se ainda mais de seus colegas da ativa que têm colecionado dissabores pela insistência com a qual Bolsonaro e seus ministros militares os empurram para a praça pública.

Com o artigo, Mourão se coloca como representante maior dos VIPs (valentes, inteligentes e patriotas), categoria em que os generais da ativa colocam os colegas que passam para a reserva e, sem tropas a comandar, se põem a ditar as ordens para a República.

À exceção de vozes solitárias como o ex-ministro e general Carlos Alberto dos Santos Cruz, tem faltado, à farda, apoio para que se mantenha longe das ruas, como o fez, nos Estados Unidos, o secretário de Defesa.

Mark Esper se manifestou ontem publicamente contra o uso da lei do fim do século 18 (“Insurrection Act”) para colocar a Guarda Nacional na repressão às manifestações de rua contra a violência policial que resultou na morte do ex-segurança George Floyd. Em vídeo que circula nas redes sociais, soldados da Guarda Nacional, depois de ouvirem o apelo de uma manifestante (“marchem conosco e nos protejam”), posam para uma foto com o grupo que os cerca.

Em artigo publicado no início desta semana na “The Atlantic”, Mike Mullen, que foi comandante do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas americanas, nos governos Bush e Obama, também se insurgiu contra o uso de seus ex-companheiros de farda para reprimir movimentos que têm sua solidariedade: “Os cidadãos não são nossos inimigos e nunca devem sê-lo”.

No Chile, que tem sido invocado por Bolsonaro desde as manifestações estudantis do ano passado, como exemplo de país em que as Forças Armadas, convocadas, agiram na repressão aos movimentos sociais, o que aconteceu foi exatamente o inverso.

Sebastián Piñera conseguiu arrancar um estado de sítio do Congresso e, durante duas semanas, as Forças Armadas foram para as ruas numa atuação sem violência em contraposição ao cassetete policial que vigorara até ali. Com o fim do prazo da medida, os militares voltaram pra casa mas os manifestantes, não.

O presidente chileno insistiu em nova incursão militar nas ruas de Santiago mas, desta vez, os comandantes se recusaram a acatar suas ordens. Não estavam dispostos a pôr em risco o prestígio reconquistado a duras penas junto à sociedade ao longo das três décadas passadas desde a sangrenta ditadura chilena.

A recusa levou Piñera a recuar, pedir desculpas à população e aceitar um acordo com os partidos que levou à convocação de um plebiscito, adiado pela pandemia, que vai decidir sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte.

O papel ao qual as Forças Armadas brasileiras têm sido forçadas a colocariam na contramão da história, a isolariam do mundo e, ao contrário do contexto do golpe de 1964, até de seus vizinhos e da própria sociedade. É a pandemia que impede que os signatários dos manifestos marchem ao lado das torcidas de futebol. Se as Forças Armadas se orgulham de terem golpeado a Constituição em 1964 para defender a marcha em defesa de Deus, da família e da propriedade, desta vez estariam ao lado de quem?

O presidente está seguro no cargo enquanto os partidos não se puserem de acordo em relação à alternativa de poder. É esta, na verdade, a razão de fundo para as dificuldades da grande frente anti-Bolsonaro. O vice-presidente é a opção constitucional para comandar o país em caso de impeachment, mas se força para fora do jogo ao tomar posições mais elaboradas mas tão inconsequentes quanto a do capitão e fortalece saídas como a cassação da chapa pelo TSE, que opõe quatro votos a 57 milhões.

Sem entrada nos partidos, sem interlocução com o empresariado que extrapole os viciados corredores da Fiesp, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, Mourão parece tentar se viabilizar junto ao que restou de apoio ao presidente, o bolsonarismo raiz, o mesmo do qual sempre foi vítimas. Se não deu com Cosme, aqui está Damião. Nem um nem outro. Se governar como escreve, Mourão pode até fazer rima, mas deixa de ser uma solução.

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