Maria Cristina Fernandes: A contida expressão eleitoral do antirracismo

A intolerância, como o vírus, ainda paira no ar.
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

A intolerância, como o vírus, ainda paira no ar

As primeiras pesquisas depois da morte de João Alberto Freitas no supermercado Carrefour em Porto Alegre não confirmam a contaminação da disputa municipal pela brutalidade do episódio.

O precedente é o da invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), por tropas do Exército e da Polícia Militar. O episódio produziu três mortos e dezenas de feridos. Seis dias depois, elegeu-se uma bancada de prefeitos sindicalistas – do ex-metalúrgico de Volta Redonda, Juarez Antunes, a Luiza Erundina (São Paulo), passando por Olívio Dutra (Porto Alegre), Chico Ferramenta (Ipatinga) e Jacó Bittar (Campinas).

Desta vez, são escassos os sinais de que o fenômeno se repita. O primeiro Ibope do segundo turno em Porto Alegre, que colheu entrevistas ao longo do fim de semana depois do assassinato, mostrou que o líder, Sebastião Melo (MDB), distanciou-se ainda mais da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela d’Ávila.

Melo terminou o primeiro turno dois pontos percentuais à frente de Manuela, que havia liderado durante toda a campanha. Agora a distância aumentou para sete. O movimento sugere não apenas a continuidade da curva com a qual Melo terminou o primeiro turno, como a tradicional migração de votos do eleitorado de candidatos mais afinados ideologicamente com os finalistas. O crescimento de Manuela pouco supera a soma dos votos de Juliana Brizola (PDT) e Fernanda Melchionna (Psol).

Da mesma maneira, Melo cresceu com a adesão dos eleitores de todos os demais candidatos, do centro à direita, desde o atual prefeito Nelson Marchezan (PSDB) até mesmo o candidato do PSD, Valter Nagelstein, cuja declaração sobre a nova composição da Câmara (“muitos deles jovens, negros, sem nenhuma tradição política e com pouquíssima qualificação”) não foi rechaçada por Melo.

Foi a primeira vez que Porto Alegre elegeu vereadores negros (dois do Psol, dois do PCdoB e um do PT). Os dois que atualmente exercem mandato foram eleitos como suplentes. O Ibope, no entanto, indica que os dividendos eleitorais do antirracismo não invadiram o segundo turno.

Levantamento da Bites indica que nos cinco dias que se seguiram à morte de João Alberto Freitas, os 36 candidatos que disputam o segundo turno em capitais publicaram nas redes (Twitter, Facebook e Instagram) 5.213 “posts”. Desses, apenas 129 mencionaram racismo, Carrefour, João Alberto ou “vidas negras”. Quem mais tocou no assunto foi Manuela, com 45 “posts”, seguida de Guilherme Boulos, em São Paulo, com 30. Sebastião Melo publicou quatro e Bruno Covas, sete.

Ambos os finalistas de Porto Alegre mencionaram o episódio na sua propaganda eleitoral gratuita. Manuela chegou a ir para a passeata do dia da Consciência Negra, mas deixou o evento antes do confronto com policiais. Três dias depois, nova manifestação, em frente a uma outra unidade do Carrefour, também foi reprimida pela polícia. A candidata não estava lá, mas entre os que portavam adesivos nas camisetas, só se viam os de Manuela.

Para os jovens que lá estavam, como o vereador eleito pelo Psol, Matheus Gomes, que nem era nascido no massacre de Volta Redonda, a referência são as manifestações que pipocaram nos EUA e no mundo depois da morte do vigilante negro George Floyd em Minneapolis.

Se Manuela e Boulos foram os candidatos que mais indignação demonstraram, ambos foram cautelosos em demarcar distância dos conflitos com a polícia. Dos 97 “posts” sobre os protestos na unidade do Carrefour nos Jardins, bairro da zona sul de São Paulo, nenhum deles, na métrica da Bites, foi de autoria do candidato do Psol. O racismo, apesar da indignação nacional, não moveu o debate eleitoral. O total de “posts” dos 36 candidatos nas capitais nos cinco dias que se seguiram à morte geraram mais de 11 milhões de interações, sendo que apenas 2,5% delas trataram de racismo.

Marqueteiro da campanha de Boulos e daquela que elegeu Erundina em 1988, Chico Malfitani não usou o episódio 32 anos atrás nem pretende fazê-lo hoje. A única menção feita três décadas atrás foi nos segundos finais do último dia da propaganda eleitoral. O programa foi embalado por um tom de comemoração pela trajetória de Erundina na campanha. Ao final, ela dizia que a alegria nem sempre é completa e a dela havia sido abalada pela morte dos operários.

Se não explorou naquele momento em que ainda se tinha ódio e nojo da ditadura tampouco tem motivos para explorar hoje. Se, por um lado, Bruno Covas não é Paulo Maluf, o país hoje, diz, é mais reacionário: “O Brasil de 32 anos atrás estava ansioso por democracia. Agora tinha muita gente olhando o linchamento sem fazer nada”.

O marqueteiro de Boulos não atribui sua alavancagem entre homens negros com renda de até dois salários mínimos ao episódio, mas ao fato de o candidato hoje encarnar esse sentimento difuso de revolta que, dois anos atrás, beneficiou Jair Bolsonaro.

A canalização dessa revolta é pesada e medida porque o mote da campanha desde o início, na opinião de outra veterana em eleições, a diretora do Ibope, Márcia Cavallari, é a segurança. Aquela que indique ser possível sair da hecatombe que se abateu sobre o eleitor com a pandemia.

Em novembro de 2018, com a eleição de Bolsonaro ainda fresquinha, Márcia colocou uma pesquisa na rua para tentar identificar o perfil do eleitor. A fatia daqueles que se identificavam com a direita superava a soma dos eleitores de centro e de esquerda. Agora esta soma ultrapassa, com folga, os que se dizem de direita. Não porque a esquerda tenha crescido, mas graças ao centro, que se encorpou.

O racismo não é de esquerda, de centro ou de direita. É odiento. Mas este rechaço parece ter uma contida tradução eleitoral porque não é contra um candidato ou outro que se expressa, nem mesmo contra um presidente que o ignora, mas contra a intolerância que ainda paira no ar, como o vírus.

São tão grandes as incertezas da conjuntura que todos parecem movidos por um pacto de sobrevivência, guiado pela moderação. Há exceções, como a campanha do prefeito-bispo, no Rio, ou a lamentável disputa que sacode as tumbas ancestrais dos primos-candidatos no Recife. A batalha contra os fantasmas despertados em 2018 ainda demora.

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