Marcos Troyjo: Por que os Brics não formam uma área de livre-comércio?

Dado o protecionismo, é de supor que aliança pudesse oferecer iniciativa à altura dos desafios.
Foto: Agência Brasil
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Dado o protecionismo, é de supor que aliança pudesse oferecer iniciativa à altura dos desafios

Numa hipótese derivada de famosa frase de John Foster Dulles, secretário de Estado dos EUA nos primórdios da Guerra Fria, estipula-se que países não têm amigos, apenas interesses.

Quando os chefes de Estado dos Brics reunirem-se nesta décima cúpula que começa nesta quarta-feira (25) na África do Sul, a primazia dos interesses se fará sentir.

Dada a presente conjuntura de escalada protecionista e iminente guerra comercial, é de supor que a aliança entre as grandes economias emergentes pudesse oferecer uma iniciativa à altura dos presentes desafios.

Na medida em que os EUA se direcionam a uma via isolacionista, questionam tradicionais aliados econômicos ou geopolíticos como União Europeia (UE) e Otan (Organizado do Tratado do Atlântico Norte) e pouco se prestam à defesa da globalização liberal, caberia aos Brics precipitar um movimento em contrário.

Sua resposta mais contundente seria, sem dúvida, anunciar o lançamento de um acordo de livre-comércio que viesse a combater a atual tendência protecionista.

Do ponto de vista retórico, não há dúvida, os Brics, por meio de pronunciamentos individuais ou em declaração conjunta, buscarão mostrar seu apoio a um sistema multilateral de comércio baseado em regras. Membros como China, Brasil e Índia já o fizeram em diferentes ocasiões.

Nas últimas edições do Fórum Econômico Mundial de Davos, o presidente chinês, Xi Jinping, converteu-se no principal arauto da globalização econômica.

Seu colega brasileiro, Michel Temer, disse nesta terça-feira (24) durante encontro entre líderes do Mercosul e da Aliança do Pacífico que a aproximação desses dois blocos é uma “resposta a recaídas isolacionistas”.

E o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, aponta que seu país não pode ser prejudicado como vítima colateral de um conflito de comércio e investimento entre as duas maiores economias do mundo.

A realidade é que nesta conflagração geoeconômica não pode haver maniqueísmos. A constatação de que os EUA de Trump se equivocam gravemente em diagnóstico e posologia quanto aos males comerciais do mundo não permite a países como os dos Brics arvorar-se qualquer bom-mocismo.

Caso quisessem remeter sua boa-fé comercial à prova, os Brics já poderiam ter levantando nalgum momento desses últimos dez anos —período em que deixaram de simbolizar uma classe de ativos financeiros e passaram a se enxergar como aliança estratégica— um projeto de acordo de livre-comércio.

A bem de verdade, no segundo semestre de 2015 os chineses muito informalmente circularam uma tal ideia, com o que foram pesadamente rechaçados por seus associados nos Brics.

Países de considerável atividade industrial na agremiação —como Brasil, Rússia e Índia— estimam corretamente que um tal tratado comercial favorecia primordialmente a hipercompetitividade chinesa.

Dessa ótica, Brasil e Rússia seriam ainda mais relegados à função de economias exportadoras de commodities agrícolas e minerais. A Índia se resumiria a serviços de outsourcing, call center e a alguma atividade no campo do software e das demais tecnologias da informação.

Ademais, os chineses —e apesar de toda sua retórica atual em defesa da globalização econômica—, continuam a exercer proteção de mercado em diferentes formatos. São enormes as restrições para empresas estrangeiras como Google ou Facebook competirem no setor de tecnologia. Em muitos casos, o investimento estrangeiro direto para poder frutificar na China tem de acomodar um sócio local.

E, claro, são inúmeros —e muitas vezes em contrário a disposições de entidades multilaterais como OMC (Organização Mundial do Comércio) ou OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual)— os exemplos em que o governo chinês suplanta artificialmente suas empresas estatais ou estas desrespeitam direitos internacionais de patentes.

A Índia configura-se como uma dos mercados agrícolas mais protegidos do mundo. A Rússia é um gigante da imposição de medidas não tarifárias e barreiras fitossanitárias. O Brasil é comercialmente um dos países mais fechados. Ostenta o mais baixo percentual de comércio exterior (soma de exportações e importações) na composição de seu PIB dentre as quinze maiores economias do planeta.

Nesta Cúpula da África do Sul, os Brics entoarão recados diretos ou indiretos aos EUA com críticas ao crescente protecionismo. Será um típico caso do roto falando do rasgado.

Ao indisporem-se —mesmo entre si— ao estabelecimento de modalidades de livre comércio, os Brics demonstram as limitações do espaço de manobras do grupo.

Seus interesses específicos ainda falam mais alto do que a suposta camaradagem na construção de uma nova ordem econômica internacional.

Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia

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