Marco Aurélio Nogueira: Pandemia – o antes, o durante e o depois

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade.
Foto: Alex Pazuello/Semcom
Foto: Alex Pazuello/Semcom

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade

Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.

São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar comum.

Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.

O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como reagir.

A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus, especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.

Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.

A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo é ingênua. A competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A Sputnik, russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de uma “guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021, não há como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será feita sua aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a ideia for imunizar a população terrena. Além disso, o mundo superconectado, frenético e desigual em que vivemos é propício a novas ondas pandêmicas.

O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e sacrifícios. Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas, governos de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade, que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma vida com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais tempo em casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.

Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus vagões e ônibus que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar, com suas interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade. O que tem mais importância e valor? Como voltar a olhar para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da vida aberta, sem freios? Como controlar nossos desejos e pulsões, recompô-los e deixá-los fluir de outro modo? Teremos de experimentar de maneira distinta o prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?

São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam o enigma freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de “mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de nos haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da psicanálise, conhecimento e informação.

A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de sensações e possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações éticas e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição, difícil como qualquer outra.

A educação é o recurso de que dispomos para construir atitudes cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam um mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da escola, mas de educação com E maiúsculo.

Resta saber se venceremos a batalha.

*Professor titular de teoria política da Unesp

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